versão impressa ISSN 1414-462Xversão On-line ISSN 2358-291X
Cad. saúde colet. vol.25 no.4 Rio de Janeiro out./dez. 2017
http://dx.doi.org/10.1590/1414-462x201700040094
This study aimed to verify the prevalence of binge eating and associated factors among overweight users of the primary health care.
This is a cross-sectional study including 360 overweight adults, both sexes, who attended five different health care centers covered by one Family Health Care Center in the city of Curitiba/Paraná. We used the Binge Eating Scale along with a questionnaire containing demographic, socioeconomic and health-related behavior, in addition to anthropometric measurements. The prevalence ratios (PR) and 95% confidence intervals (95%CI) were estimated through Poisson Regression.
The outcome was identified in 41.6% of the sample. Crude analysis revealed higher prevalence of the binge eating among women, unemployed individuals, with obesity and increased waist circumference. After adjusted analysis, only the gender remained significantly associated with the outcome (PR = 2.43; 95%CI 1.33-4.44).
In conclusion, we observed elevated prevalence of binge eating specially among women. There was no association between binge eating and the socioeconomic, health-related behavior and anthropometric variables.
Keywords: binge eating disorder; primary health care; obesity; overweight; cross-sectional studies
A prevalência de obesidade vem crescendo ao longo dos anos na população mundial e brasileira, constituindo-se, dessa forma, um problema de saúde pública 1 . Segundo dados da Organização Mundial da Saúde 2 (OMS) referentes ao ano de 2014, 39% da população mundial adulta apresentava excesso de peso. No Brasil, a Pesquisa Nacional de Saúde 3 (PNS), que avaliou homens e mulheres com 18 anos ou mais em 2013, indicou que 56,9% estavam com excesso de peso, dos quais 20,8% apresentavam obesidade. Para o Estado do Paraná, as prevalências foram similares: 57,4% com excesso de peso e 21,6% com obesidade 3 .
A obesidade é uma doença multifatorial, desencadeada e/ou mantida por fatores genético-biológicos, endócrinos, sociais, ambientais e, muitas vezes, psicológicos e psiquiátricos 4 .
Indivíduos com obesidade são vulneráveis a sofrimento psicológico devido à discriminação contra a doença, bem como aos padrões de beleza, cada vez mais magros, impostos pela sociedade 5 . A restrição alimentar usada como tentativa para reduzir o peso corporal pode desencadear episódios de compulsão alimentar como mecanismo compensatório, o que contribui para o fracasso no tratamento da obesidade 4-7 .
A compulsão alimentar é definida por
[…] ingestão, em um período limitado de tempo (aproximadamente duas horas), de uma quantidade de alimentos maior do que a maioria das pessoas consumiria no mesmo período, sob circunstâncias similares, associado a um sentimento de falta de controle sobre o episódio 8 (p. 350).
Segundo a OMS 9 , a prevalência de compulsão alimentar na população geral, identificada por meio de entrevista clínica, era de 1,4% em 2013. Prevalências superiores (entre 15 e 30,1%) foram obtidas em indivíduos que buscaram tratamento para perda de peso 10,11 , e valores ainda mais superiores (acima de 50%) foram identificados em indivíduos candidatos à cirurgia bariátrica, quando avaliados pela Escala de Compulsão Alimentar Periódica (ECAP) 12-15 .
A prevalência de compulsão alimentar pode variar conforme o método adotado para a investigação. Um dos instrumentos propostos para identificar indivíduos com risco de apresentar compulsão alimentar é a ECAP, um questionário autoaplicável, traduzido e validado para uso no Brasil, que permite rastrear a compulsão alimentar e identificar a gravidade dos sintomas 16 .
A qualidade de vida é afetada negativamente em indivíduos com esse distúrbio alimentar, principalmente em obesos 17-20 , os quais apresentaram associação com maior ganho ponderal, maior risco de desenvolver síndrome metabólica 19,21-23 , maior dificuldade de perder peso, importante insatisfação relacionada ao corpo, pior imagem corporal, maior distância entre o peso desejado e o real 24 , maiores índices de depressão e ansiedade 20 , uso de álcool e de outras drogas 25 e com ingestão de maior quantidade de calorias devido aos episódios de compulsão, comparados aos indivíduos obesos que não apresentaram compulsão alimentar 24,26 . Além disso, estudos sugerem que indivíduos obesos com compulsão alimentar ganham mais peso no ano anterior à busca por tratamento do que indivíduos obesos sem essa morbidade 21,23 .
A prevenção, a detecção precoce e as intervenções para compulsão alimentar, particularmente no tratamento do excesso de peso na Atenção Primária à Saúde (APS), a qual está mais próxima ao cotidiano de vida dos indivíduos e tem maior poder de compreensão da dinâmica social 1 , podem ser um ponto crítico na prevenção das formas mais graves de obesidade, pois a suspensão das compulsões evita o ganho acelerado de peso 21,23 .
A APS, por ser a porta de entrada dos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro, tem sido um dos locais mais indicados para o enfrentamento do excesso de peso e, portanto, deve ser a ordenadora do cuidado integral do paciente 1 .
O conhecimento das características associadas à compulsão alimentar entre usuários da APS permite rastrear e identificar os subgrupos expostos a maior risco e, dessa forma, traçar estratégias mais efetivas 27 .
Entretanto, os autores não encontraram na literatura pesquisada artigos publicados sobre a prevalência de compulsão alimentar em indivíduos com excesso de peso na APS, especialmente de Curitiba, no Paraná.
Diante do exposto, objetivou-se verificar a prevalência de compulsão alimentar e os fatores associados em indivíduos com excesso de peso que buscam atendimento na APS, na área de abrangência de um Núcleo de Atenção à Saúde da Família (NASF), em Curitiba.
Trata-se de um estudo transversal. A população de referência foram todos os adultos com excesso de peso atendidos em cinco unidades de saúde (US), representando a totalidade de US abrangidas por um NASF de Curitiba. Foram incluídas na pesquisa as pessoas adultas com excesso de peso que declararam saber ler e que aguardavam atendimento na sala de espera das referidas US, no período de maio a outubro de 2015, até ter atingido o tamanho de amostra estimado.
Em 2014, nas cinco US participantes, o número de pessoas adultas com excesso de peso, registrado no Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (SISVAN) do município, foi de 5.661.
Para cálculo da amostra, foi considerada uma prevalência desconhecida de compulsão alimentar (50%) na população estudada para maximizar o tamanho amostral, com nível de confiança de 95% e margem de erro de cinco pontos percentuais, o que resultou no número mínimo de 360 usuários. A fim de compensar perdas e recusas, foram adicionados 20%, obtendo-se amostra igual a 432 pessoas com excesso de peso. Entretanto, devido às recusas terem excedido a margem calculada, foi necessário aumentar o número para 526 até atingir a amostra mínima estimada de 360 indivíduos. O programa livre OpenEpi foi utilizado para realização das estimativas amostrais. O número amostral foi distribuído proporcionalmente de acordo com o número de adultos com excesso de peso de cada US participante do estudo.
Para o rastreamento da compulsão alimentar, foi utilizada a ECAP, um instrumento validado e traduzido para o português por Freitas et al. em 2001. É composto de uma escala Likert com 16 itens e 62 afirmativas sobre manifestações comportamentais, sentimentos e cognições relacionados à compulsão alimentar. Cada afirmativa possui uma pontuação de 0 (ausência) até 3 (gravidade máxima). Os indivíduos foram classificados sem compulsão alimentar quando a pontuação atingiu valores inferiores ou iguais a 17 e com compulsão alimentar quando a pontuação foi igual ou superior a 18 16 .
Adicionalmente, foi utilizado um segundo questionário construído especificamente para este estudo, com o qual foram obtidas informações demográficas, socioeconômicas e comportamentais relacionadas à saúde. As informações antropométricas foram aferidas em todos os participantes pelo mesmo nutricionista, em uma sala reservada da US, anteriormente ao preenchimento dos questionários.
As variáveis demográficas incluíram: sexo (masculino e feminino), faixa etária (18-29 anos, 30-39 anos, 40-49 anos e 50-59 anos), cor de pele autorreferida (branca e outras – parda, preta, amarela e indígena) e presença de companheiro(a) (sim e não). As socioeconômicas foram: escolaridade em anos de estudo (até 7 anos, 8-10 anos e 11 anos ou mais), renda familiar per capita (1º tercil: R$21,40-R$389,90, 2º tercil: R$390,00-R$699,90 e 3º tercil: R$700,00-R$2.364,00) e trabalho remunerado (sim e não). O salário mínimo vigente no momento da coleta de dados era de R$788,00 28 . Os comportamentos relacionados à saúde abrangeram: fumo (nunca fumou, ex-fumante e fumo atual) e frequência de consumo de bebida alcoólica (nunca ou raramente e duas vezes por mês ou mais).
A antropometria compreendeu peso, altura e circunferência da cintura. Para aferição de peso, foi utilizada balança digital da marca Marte, modelo LC-200 PS, com capacidade máxima de 200 Kg e precisão de 100 g. O usuário foi posicionado ereto, com pés descalços e roupas leves 29 .
Para a altura, foi utilizada fita métrica de 150 cm, fixada em parede sem rodapé a 100 cm do chão. O usuário foi posicionado de forma ereta, pés unidos e descalços, com os calcanhares, as panturrilhas, as nádegas, as costas e a cabeça encostados na parede, com esta última posicionada respeitando o plano de Frankfurt. A aferição foi realizada com auxílio de um esquadro durante a inspiração 29 .
A circunferência da cintura foi aferida com o indivíduo posicionado de forma ereta. A medida foi realizada com auxílio de uma fita métrica no nível da menor curvatura entre a última costela e a crista ilíaca no momento da expiração 30 .
O peso e a altura foram utilizados para o cálculo do índice de massa corporal (peso/altura 2 ). Para a classificação de excesso de peso, foram adotados os critérios propostos pela OMS 31 , e para a classificação da circunferência da cintura, aqueles propostos por Han et al. 30 . As variáveis antropométricas compreenderam: excesso de peso (sobrepeso e obesidade) e circunferência da cintura (adequada ou aumentada e muito aumentada).
Ambos os questionários foram preenchidos pelos participantes da pesquisa, com auxílio do nutricionista pesquisador para sanar possíveis dúvidas relacionadas à forma de preenchimento, todavia sem interferir na interpretação das questões e nas respostas dos participantes. Para manter o sigilo das informações, os pacientes foram codificados por números. Os questionários foram pré-codificados e duplamente digitados para conferência. As inconsistências foram corrigidas.
Para análise dos dados, foi considerada como variável desfecho a presença de compulsão alimentar (escore ECAP igual ou superior a 18 pontos). As variáveis foram descritas por meio de frequências absolutas (n) e relativas (%). A associação entre a prevalência do desfecho (compulsão alimentar) e as variáveis de exposição (categóricas) investigadas foi averiguada por meio do teste do qui-quadrado de Pearson.
Foram calculadas razões de prevalência (RP) brutas e ajustadas e respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%) por meio da regressão de Poisson robusta. As variáveis com valor de p≤0,25 na análise bivariável foram incluídas no modelo multivariável e permaneceram quando p≤0,05. A ordem de entrada das variáveis na análise seguiu modelo hierárquico 32 , por blocos, com características consideradas determinantes distais do desfecho inseridas inicialmente (demográficas), seguidas das variáveis socioeconômicas e, por fim, dos comportamentos relacionados à saúde e das variáveis antropométricas ( Figura 1 ). O ajuste dos modelos foi avaliado por meio do Deviance goodness-of-fit, e os valores de p<0,05 indicaram bom ajuste do modelo. As análises estatísticas descritivas e multivariáveis foram realizadas no programa Stata 12.
Figura 1 Modelo teórico conceitual de compulsão alimentar em usuários com excesso de peso de unidades de saúde (Curitiba, Paraná), 2015. IMC: Índice de Massa Corporal
Os participantes foram informados sobre os objetivos, procedimentos, benefícios e desconfortos da pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa das Faculdades Pequeno Príncipe (Certificado de Apresentação para Apreciação Ética - CAAE: 42999415.0.0000.5580) e recebeu parecer favorável quanto à viabilidade do Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde de Curitiba (CAAE: 42999415.0.3001.0101).
Foram abordadas 526 pessoas que atendiam aos critérios de inclusão para a pesquisa, entretanto houve perda amostral de 31,6% devido a recusas, totalizando 360 participantes. A distribuição dos participantes e dos não participantes em relação ao sexo (85,8 e 83,7% mulheres, respectivamente) e à média de idade foi similar, com idade ligeiramente superior entre os não participantes (43,1 anos – e 40,9 anos entre participantes). A maioria era do sexo feminino (85,8%), com 40 ou mais anos de idade (55,4%), com cor de pele predominantemente branca (56,7%) e que vivia com companheiro(a) (72,1%). Além disso, 39,1% dos avaliados possuíam 11 anos ou mais de estudo; a renda familiar per capita variou entre R$21,40 e R$2.364,00; e 63,5% declararam trabalhar de forma remunerada ( Tabela 1 ).
Tabela 1 Características demográficas, socioeconômicas, comportamentais relacionadas à saúde e antropométricas em indivíduos com excesso de peso de cinco unidades de saúde de Curitiba, 2015 (n=360)
Variáveis demográficas | n | % |
---|---|---|
Sexo (n=360) | ||
Masculino | 51 | 14,2 |
Feminino | 309 | 85,8 |
Faixa etária (n=354) | ||
18-29 anos | 72 | 20,3 |
30-39 anos | 86 | 24,3 |
40-49 anos | 106 | 29,9 |
50-59 anos | 90 | 25,4 |
Cor de pele (n=351) | ||
Branca | 199 | 56,7 |
Outras | 152 | 43,3 |
Vive com companheiro (n=354) | ||
Sim | 252 | 71,2 |
Não | 102 | 28,8 |
Variáveis socioeconômicas | ||
Escolaridade (n=322) | ||
Até 7 anos | 96 | 29,8 |
8-10 anos | 100 | 31,1 |
11 anos ou mais | 126 | 39,1 |
Renda familiar per capita (n=236) | ||
1º tercil - R$21,40-R$389,90 * | 81 | 34,3 |
2º tercil - R$390,00-R$699,90 | 79 | 33,5 |
3º tercil - R$700,00-R$2.364,00 | 76 | 32,2 |
Trabalho remunerado (n=345) | ||
Sim | 219 | 63,5 |
Não | 126 | 36,5 |
Variáveis comportamentais relacionadas à saúde | ||
Fumo (n=276) | ||
Nunca fumou | 175 | 63,4 |
Ex-fumante | 66 | 23,9 |
Fumo atual | 35 | 12,7 |
Frequência de consumo de bebida alcoólica (n=266) | ||
Nunca ou raramente | 227 | 85,3 |
Duas vezes por mês ou mais | 39 | 14,7 |
Variáveis antropométricas | ||
Excesso de peso (n=355) | ||
Sobrepeso (IMC≥25) | 174 | 49,0 |
Obesidade (IMC≥30) | 181 | 51,0 |
Circunferência da cintura (n=357) | ||
Adequada ou aumentada ** | 70 | 19,6 |
Muito aumentada *** | 287 | 80,4 |
Desfecho | ||
Compulsão alimentar (n=327) | ||
Não | 191 | 58,4 |
Sim | 136 | 41,6 |
* Salário mínimo vigente no período de coleta de dados era de R$788,00
**Mulheres: ≤88 cm; homens: ≤102 cm
***Mulheres: >88 cm; homens: >102 cm
Apenas 12,7% referiram fumar atualmente e 14,7% mencionaram consumo de bebida alcoólica duas vezes por mês ou mais. A obesidade foi identificada em 51% da amostra (mediana de IMC de 30,1 Kg/m2) e a circunferência da cintura mostrou-se muito aumentada em 80,4% dos participantes, mas apenas 4,5% (n=16) tiveram seus valores considerados adequados para essa medida antropométrica. A compulsão alimentar foi identificada em 41,6% da amostra ( Tabela 1 ). Para 33 avaliados (9,2%), não foi possível classificar a compulsão alimentar em função do não preenchimento de ao menos uma das questões da ECAP. A não resposta à ECAP foi mais frequente entre aqueles com mais de 50 anos de idade (18,9%), com menos de sete anos de estudo (15,6%) e com circunferência da cintura muito aumentada (10,8%) (dados não apresentados em tabelas).
Na análise bruta, verificou-se que a prevalência do desfecho foi maior entre mulheres (RP=2,43; IC95% 1,33;4,44, p=0,004), indivíduos que declararam não trabalhar de forma remunerada (RP=1,31 IC95% 1,01;1,69, p=0,040), pessoas com obesidade (RP=1,40 IC95% 1,08;1,83, p=0,012) e com circunferência da cintura muito aumentada (RP=1,56 IC95% 1,05;2,32, p=0,026); menores prevalências foram observadas na faixa etária de 30 a 39 anos (RP=0,65 IC95% 0,44;0,94) comparada àquela entre 18 e 29 anos de idade ( Tabela 2 ).
Tabela 2 Análise bruta e ajustada de compulsão alimentar segundo variáveis em usuários com excesso de peso de cinco unidades de saúde de Curitiba, 2015 (n=227)
Variáveis demográficas | Compulsão alimentar n (%) | RP Bruta (IC95%) | Valor p* | RP ajustada (IC95%) | Valor p* | |
---|---|---|---|---|---|---|
Sexo (n=327) | 0,004 | 0,006 a | ||||
Masculino | 9 (18,8) | 1,00 | 1,00 | |||
Feminino | 127 (45,5) | 2,43 (1,33;4,44) | 2,34 (1,28;4,27) | |||
Faixa etária (n=324) | 0,190 | 0,291 a | ||||
18-29 anos | 38 (52,8) | 1,00 | 1,00 | |||
30-39 anos | 27 (34,2) | 0,65 (0,44;0,94) | 0,67 (0,46;0,97) | |||
40-49 anos | 42(42,0) | 0,80(0,58;1,09) | 0,82 (0,60;1,11) | |||
50-59 anos | 28(38,4) | 0,73(0,50;1,05) | 0,77 (0,54; 1,10) | |||
Cor de pele (n=322) | 1,00 | |||||
Branca | 76 (41,3) | 1,00 | ||||
Outras | 57 (41,3) | 1,00 (0,77;1,30) | ||||
Vive com companheiro (n=323) | 0,229 | |||||
Sim | 92 (39,5) | 1,00 | ||||
Não | 42 (46,7) | 1,18 (0,90;1,55) | ||||
Variáveis socioeconômicas | ||||||
Escolaridade (n=302) | 0,146 | 0,097 b | ||||
Até 7 anos | 40 (49,4) | 1,00 | 1,00 | |||
8-10 anos | 39 (40,2) | 0,81 (0,59;1,13) | 0,77 (0,53;1,11) | |||
11 anos ou mais | 48 (38,7) | 0,78 (0,57;1,07) | 0,72 (0,49;1,04) | |||
Renda familiar per capita (n=229) | 0,731 | 0,187 b | ||||
1º tercil - R$21,40-R$389,90 ** | 33 (41,2) | 1,00 | 1,00 | |||
2º tercil - R$390,00-R$699,90 | 31 (41,9) | 1,02 (0,70;1,48) | 1,14 (0,78;1,65) | |||
3º tercil - R$700,00-R$2.364,00 | 33 (44,0) | 1,07 (0,74;1,54) | 1,26 (0,86;1,85) | |||
Trabalho remunerado (n=317) | 0,040 | |||||
Sim | 78 (37,9) | 1,00 | ||||
Não | 55 (49,5) | 1,31 (1,01;1,69) | ||||
Variáveis comportamentais relacionadas à saúde | ||||||
Fumo (n=264) | 0,172 | |||||
Nunca fumou | 77 (45,0) | 1,00 | ||||
Ex-fumante | 22 (36,1) | 0,80 (0,55;1,16) | ||||
Fumo atual | 11 (34,4) | 0,76 (0,46;1,27) | ||||
Frequência de consumo de bebida alcoólica (n=253) | 0,609 | |||||
Nunca ou raramente | 92 (43,0) | 1,00 | ||||
Duas vezes por mês ou mais | 15 (38,5) | 0,89 (0,58;1,37) | ||||
Variáveis antropométricas | ||||||
Excesso de peso (n=325) | 0,012 | 0,142 c | ||||
Sobrepeso (IMC≥25) | 56 (34,6) | 1,00 | 1,00 | |||
Obesidade (IMC≥30) | 79 (48,5) | 1,40 (1,08;1,83) | 1,25 (0,93;1,70) | |||
Circunferência da cintura (n=325) | 0,026 | |||||
Adequada ou aumentada *** | 20 (29,0) | 1,00 | ||||
Muito aumentada **** | 116 (45,3) | 1,56 (1,05;2,32) |
a =ajustada para demográficas. Deviance goodness-of-fit 227,6; p=1,000
b =ajustada para demográficas e socioeconômicas. Deviance goodness-of-fit 155,1; p=1,000
c =ajustada para demográficas, socioeconômicas e obesidade. Deviance goodness-of-fit 153,9; p=1,000
*Teste de Wald
** Salário mínimo vigente no período de coleta de dados era de R$788,00
***Mulheres: ≤88 cm; homens: ≤102 cm
****Mulheres: >88 cm; homens: >102 cm
Na análise ajustada, optou-se por não utilizar a variável circunferência da cintura devido à sua forte correlação com obesidade; além disso, na análise bruta, a variável obesidade mostrou maior significância estatística com o desfecho. Não foram observadas associações estatisticamente significativas entre o desfecho e as variáveis cor de pele, presença de companheiro(a), escolaridade, renda familiar per capita, fumo e consumo de bebida alcoólica.
Após ajuste para sexo, renda e escolaridade, a associação das variáveis trabalho remunerado e obesidade perdeu a significância estatística com o desfecho; apenas a variável sexo permaneceu associada à compulsão alimentar. Todos os modelos apresentaram bom ajuste ( Tabela 2 ).
Observou-se elevada prevalência de compulsão alimentar em usuários com excesso de peso na APS (41,6%), dos quais as mulheres apresentaram maior prevalência do desfecho do que os homens. Após análise ajustada, não foi observada associação entre compulsão alimentar e demais variáveis demográficas, socioeconômicas, comportamentais relacionadas à saúde e antropométricas avaliadas na presente pesquisa.
A prevalência encontrada pode ser considerada elevada em relação àquela observada na APS em outro estudo realizado em ambiente de cuidados primários (20%) 33 , embora a comparabilidade seja prejudicada devido às diferenças na composição da amostra, a qual foi realizada apenas com mulheres e incluiu pessoas eutróficas. Prevalência de compulsão alimentar similar foi observada em estudo realizado no Ambulatório de Cirurgia Bariátrica da Universidade de Tocantins com 96 pacientes adultos obesos (80,2% mulheres), o qual obteve prevalência de 44,2% de compulsão alimentar de acordo com a ECAP 34 .
Apesar de mulheres apresentarem maior prevalência de compulsão alimentar 35 , pessoas que possuem diagnóstico de compulsão alimentar tendem a apresentar maior peso 21 , o que pode justificar a grande prevalência observada no presente trabalho, cuja realização se deu apenas com indivíduos com excesso de peso.
Petribu et al. 12 , ao analisarem a prevalência de compulsão alimentar, utilizando também a ECAP, em 67 indivíduos candidatos à cirurgia bariátrica, encontraram prevalência do desfecho de 56,7%. Outros autores 15 , em estudo realizado com pacientes em pré-operatório de cirurgia bariátrica (n=30), obtiveram prevalência de 53,2%. Essas prevalências são mais elevadas do que aquela observada na presente pesquisa, entretanto a amostra desses dois estudos 12,15 foi composta apenas por pessoas com obesidade moderada e grave, o que pode explicar as maiores prevalências observadas.
Entre as mulheres, a prevalência do desfecho foi 2,43 vezes maior do que aquela observada entre os homens. Bertoli et al. 35 , em um estudo realizado com 6.930 adultos e idosos (73% mulheres) que buscaram tratamento para perda ponderal em uma Clínica de Nutrição na Universidade de Milão, na Itália, também encontraram resultado semelhante com relação ao sexo. A prevalência de compulsão alimentar de acordo com a ECAP na versão italiana foi 2,49 vezes maior na população feminina.
Melo e Peixoto 36 , em pesquisa realizada com 94 mulheres adultas com obesidade acompanhadas no Ambulatório de Nutrição em Obesidade Grave da Universidade Federal de Goiás, com a utilização do mesmo instrumento e pontos de corte utilizados neste estudo para rastreamento da doença, encontraram uma prevalência de compulsão alimentar de 53,2%, resultado um pouco acima do encontrado na população feminina desta pesquisa. Talvez essa diferença tenha ocorrido devido à amostra ser composta apenas por mulheres com obesidade maior ou igual a grau II, diferentemente deste trabalho.
Um estudo realizado nos Estados Unidos, com uma amostra epidemiológica de mais de 40 mil pessoas, encontrou maior prevalência de distúrbios de humor e ansiedade em mulheres. Adicionalmente, verificou que, dos indivíduos que haviam sido diagnosticados com transtorno de humor, as mulheres apresentavam maior propensão ao aumento do apetite 37 . Outros estudos identificaram que o sexo feminino está mais exposto à mídia 38,39 e à pressão social, que veiculam o corpo magro como ideal de beleza e aceitação social, o que pode contribuir para aumentar o sofrimento psíquico e o risco do desenvolvimento de transtornos alimentares nessa população 38 . Ademais, mulheres de pior condição socioeconômica são mais expostas a cargas elevadas de trabalhos domésticos, o que pode aumentar os níveis de estresse e dificultar a adoção de comportamentos relacionados à saúde considerados saudáveis 40,41 .
Do mesmo modo, dificuldades financeiras ocasionam limitações, insegurança e estresse, afetando, dessa forma, o bem-estar físico e mental, o que pode corroborar o desenvolvimento de transtornos alimentares 42 . Provavelmente, indivíduos com maior escolaridade possuem maiores chances de ter um trabalho remunerado e maior renda, entretanto, no presente estudo, 60,9% da amostra possuía escolaridade inferior ao ensino médio completo; apesar de 63,5% dos participantes da pesquisa possuírem trabalho remunerado, a renda familiar per capita relatada pela maioria foi inferior a um salário mínimo.
Segundo a Pesquisa Brasileira de Mídia, mulheres e pessoas de menor nível de escolaridade permaneciam muito tempo em frente à televisão 39 , o que pode causar uma maior exposição a padrões de beleza impostos pela mídia e a dietas restritivas veiculadas por esse meio de comunicação. A relativa homogeneidade socioeconômica da população investigada pode ter dificultado a identificação de associações entre o desfecho e tais variáveis.
Rosenberger e Dorflinger 43 verificaram que a compulsão alimentar não estava associada à faixa etária, assim como na presente pesquisa. Outros autores 43-45 também não encontraram associação entre etnia e compulsão alimentar. Todavia, alguns estudos apontam diferenças étnicas nas trajetórias de desenvolvimento 46,47 e apresentação clínica do referido transtorno 46-48 , características não investigadas no presente estudo.
Em pesquisa realizada pela OMS, não foi encontrada associação entre situação conjugal e compulsão alimentar 9 , resultados congruentes com os achados desta pesquisa. Verificou-se que, na literatura, há uma lacuna quanto à investigação da associação de faixa etária, etnia e situação conjugal com a compulsão alimentar, o que destaca a necessidade de estudos adicionais.
Referente aos fatores comportamentais relacionados à saúde, um estudo realizado com trabalhadores urbanos de um município do Nordeste do Brasil 42 encontrou prevalência de compulsão alimentar 2,49 vezes maior em indivíduos alcoólatras. Os indivíduos foram identificados com o questionário CAGE (acrônimo de Cut down, Annoyed by criticism, Guilty e Eye-opener ), um instrumento validado para identificar pessoas com abuso ou dependência de álcool. Já para o tabaco, apesar de a compulsão alimentar ter sido mais prevalente em indivíduos não fumantes, não foi encontrada associação significativa para essa variável, assim como na presente pesquisa. Todavia, uma meta-análise identificou que indivíduos com compulsão alimentar são significativamente mais propensos a ser fumantes ao longo da vida 49 .
No presente trabalho, uma amostra muito pequena da população estudada referiu uso de bebidas alcoólicas e de fumo; ainda, 26,1 e 23,3% não responderam as perguntas relacionadas à bebida alcoólica e ao fumo, respectivamente, o que pode ter limitado o encontro de associações significativas com o desfecho. A pesquisa, realizada em US, pode ter influenciado os participantes a responder o que seria considerado desejável, pois, segundo Selltiz 50 , as respostas podem ser influenciadas por fatores de situação e medo do julgamento do outro. Contudo, o formato de autopreenchimento do questionário pode ter minimizado esse viés. Recomenda-se que estudos futuros utilizem instrumentos validados para investigar a associação entre compulsão alimentar e comportamentos relacionados à saúde, como uso de fumo e de álcool.
Uma revisão sobre a compulsão alimentar mostrou que a maioria dos estudos sobre a temática foi realizada com amostras clínicas de indivíduos obesos 51 e que pessoas com compulsão alimentar tendem a apresentar maior peso devido aos episódios de compulsão 21 . Além disso, como mostrado em outros estudos 4-7 , a obesidade pode desencadear a compulsão alimentar. Entretanto, neste estudo, a obesidade foi associada à compulsão alimentar apenas na análise bruta. O valor da circunferência da cintura pode identificar pessoas com maior risco de doenças cardiovasculares e morbidades associadas 30 , porém, em razão da sua forte correlação com a obesidade, optou-se por não incluir essa variável na análise ajustada, visto que a variável obesidade havia apresentado maior significância estatística com o desfecho na análise bruta.
Dentre as limitações do estudo, ressalta-se o delineamento transversal, o qual impossibilitou estabelecer uma relação de causalidade entre as variáveis, uma vez que estas são observadas em um mesmo momento. Destaca-se também que muitos participantes não preencheram os questionários de forma completa, o que reduziu o tamanho amostral para as análises ajustadas. Ainda, a escolha da amostra foi realizada por conveniência. Houve elevado percentual de recusas, porém foi corrigido com o aumento proporcional da amostra. Os principais motivos declarados pelos indivíduos que recusaram participar da pesquisa foram: falta de interesse (50,6%), falta de tempo (20,5%) e letra muito pequena dos questionários (19,9%), fatores que devem ser levados em consideração para minimizar as perdas em estudos futuros. Ainda, observaram-se perdas diferenciais em relação à não resposta da variável desfecho, especialmente entre os participantes com mais de 50 anos de idade e com menor escolaridade, o que destaca a importância de considerar necessidade de adaptação dos instrumentos a outros contextos com maior diversidade socioeconômica do que aqueles usualmente escolhidos no processo de validação dos instrumentos.
Adicionalmente, é importante destacar que o uso exclusivo da ECAP não permite diagnosticar a presença de compulsão alimentar, pois o diagnóstico precisa ser confirmado por uma entrevista clínica seguindo os critérios estabelecidos no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, V edição 8 . Contudo, com sua aplicação é possível realizar o rastreamento da compulsão alimentar, avaliar a evolução do tratamento e auxiliar no planejamento de estratégias terapêuticas mais adequadas a esses pacientes 16 .
Outra limitação a ser destacada foi a impossibilidade de uma análise estratificada por sexo, pois a população masculina foi pequena para esse tipo de análise. Contudo, conforme mostram outros estudos 52,53 , há baixa procura masculina nos serviços de saúde, em especial para cuidados preventivos, o que explica a pequena amostra masculina na população estudada.
Houve dificuldades em comparar os resultados obtidos com outros estudos semelhantes, uma vez que a presente pesquisa foi uma das primeiras a investigar a prevalência e os fatores associados à compulsão alimentar na população com excesso de peso atendida na APS.
Apesar das limitações informadas, a presente pesquisa contribuiu para destacar a magnitude da compulsão alimentar em indivíduos com excesso de peso e estimular a identificação dessas pessoas já na APS como uma das estratégias de prevenção das formas mais graves de obesidade.
O estudo foi um dos pioneiros a abordar o tema nesse nível de atenção e poderá servir de embasamento para estudos futuros mais detalhados.
A prevalência de compulsão alimentar na APS foi elevada nos indivíduos com excesso de peso, e as mulheres apresentaram prevalência 2,43 vezes maior de compulsão alimentar em relação aos homens. As demais variáveis demográficas, socioeconômicas, comportamentais relacionadas à saúde e antropométricas não apresentaram associação com o desfecho.
Enfatiza-se a importância da realização de mais estudos, preferencialmente longitudinais, para investigar as causas e os fatores associados à compulsão alimentar, bem como com o uso de instrumentos específicos para investigar comportamentos relacionados à saúde, como uso de álcool e de fumo.
Este estudo buscou dar visibilidade para a compulsão alimentar nos indivíduos com excesso de peso atendidos da APS, pois o tratamento para o excesso de peso e para os transtornos alimentares inicia-se nesse nível de atenção.
Espera-se que sirva de subsídio para formulação de políticas públicas voltadas a essa população e que estimule a equipe de profissionais que trabalha com excesso de peso a investigar a presença de compulsão alimentar em seus pacientes para definição de um plano alimentar mais flexível e liberal, associado a suporte psíquico, visando à melhor atenção ao usuário.