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Condições de saúde bucal da população indígena guarani moradora no Sul do Brasil

Condições de saúde bucal da população indígena guarani moradora no Sul do Brasil

Autores:

Julio Baldisserotto,
Alexandre Moreira Ferreira,
Cristine Maria Warmling

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1414-462Xversão On-line ISSN 2358-291X

Cad. saúde colet. vol.27 no.4 Rio de Janeiro out./dez. 2019 Epub 25-Nov-2019

http://dx.doi.org/10.1590/1414-462x201900040354

Abstract

Background

The oral health of Brazilian indigenous population has been historically neglected. Recently special attention started through a National Indigenous Oral Health Policy. However, little is known about the epidemiological oral data of these populations, especially in the south of Brazil.

Objective

To investigate the oral health status of the Guarani Indigenous.

Method

A cross-sectional study was carried out in 19 villages, totaling 203 subjects. WHO research methods were used.

Results

The mean DMFT at 12 and 15-19 years was 1.3 and 3.4, respectively. In adults, mean of 11.55 being the component lost (P) 69.3%. Among the elderly, a DMFT of 18.6. The DMF-T was significantly higher in females (p < 0.05) at 5 years. The presence of dental calculus was the most prevalent periodontal condition at all ages. 91% of the children had a normal occlusion pattern. Acceptable standards of fluorosis were found in 91.4% between 15 and 19 years. Oral hygiene and use of fluoride paste were reported by 95%.

Conclusion

The mean DMFT at different ages is lower in the Guarani people than in the general population. The access to oral hygiene items and access to health services may explain some of these results. Epidemiological data is fundamental for planning future actions for this population.

Keywords:  health of indigenous people; oral health; DMF index; epidemiology; dental caries

INTRODUÇÃO

De acordo com o censo de 2010 realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população considerada ou autodeclarada indígena do Brasil era de aproximadamente 896 mil pessoas1. Também foram listados um total de 305 grupos étnicos e mais de 200 línguas. O Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena (SIASI) do Ministério da Saúde registrou em 2013 uma população em torno de 650 mil indígenas que estavam cobertos pelo Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASISUS), cuja unidade gestora descentralizada eram os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs)2.

Em 2011, o Ministério da Saúde apresentou diretrizes para a organização da atenção à saúde bucal dos povos indígenas no Sistema Único de Saúde (SUS) por meio de iniciativas para controlar as doenças bucais, incorporando progressivamente a promoção, a proteção e a recuperação da saúde bucal3.

Os grupos indígenas, incluindo os guaranis, que habitavam a costa brasileira foram os primeiros a sofrer com o resultado da colonização no país, pois foram alvos de comércio intensivo, escravidão, catequese, guerra, doenças e epidemias, despovoando a área costeira do Sul do Brasil, o que fez com que se retirassem estrategicamente para o interior do continente.

O povo guarani da região Sul do Brasil vive em pequenas comunidades indígenas e grupos familiares distribuídos em vários municípios. Os guaranis estão em contato contínuo com as sociedades que cercam suas aldeias e, como resultado, absorvem hábitos que causam um choque cultural constante entre duas formas de pensar e experimentar o mundo. As mudanças econômicas, sociais e culturais desse processo introduziram novos alimentos, particularmente os industrializados, que são ricos em açúcares e gorduras e afetam os padrões de saúde bucal4.

Em relação à saúde bucal, existem poucos estudos epidemiológicos disponíveis, e, na maioria das vezes, são de populações indígenas que vivem no Norte do país. Além disso, há grupos indígenas com altos níveis de cárie dentária, enquanto outros apresentam níveis baixos, o que mostra uma diversidade epidemiológica5. Quanto às comunidades guaranis, não há dados epidemiológicos sobre as condições de saúde bucal no Estado do Rio Grande do Sul. Além disso, não há um estudo nacional semelhante ao SB-2010 sobre o quadro de saúde bucal da população indígena brasileira, e os existentes são muito heterogêneos, sendo difícil estabelecer um padrão nacional4,6.

Portanto, este estudo teve como objetivo descrever e analisar o perfil epidemiológico de saúde bucal associado a fatores sociodemográficos da população indígena guarani no Rio Grande do Sul, Brasil.

MÉTODO

Esta investigação é um estudo transversal, tipo inquérito, realizado no período de setembro de 2009 a julho de 2010, por meio de levantamento epidemiológico de dados sobre saúde bucal e de informações demográficas e socioeconômicas.

O estudo centrou-se na população indígena guarani que vive em aldeias no Estado do Rio Grande do Sul, atendidas pelo SASISUS no âmbito de abrangência dos DSEIs. Essa é a população indígena que ficará aos cuidados desse modelo preconizado de atenção à saúde bucal e foco deste trabalho.

Os guaranis fazem parte da família tupi-guarani, do grupo de línguas tupis. Eles moram, principalmente, na costa do Sul e Sudeste do país e se caracterizam pela manutenção de sua cultura, sua religião e seu idioma, apesar do contato íntimo com o meio ambiente urbano das principais cidades. No passado, os guaranis viviam e subsistiam com o que a natureza oferecia, mas, ao longo do tempo, mudanças significativas ocorreram nesse processo em razão de contato interétnico, disputas e pressões pela posse da terra e desmatamento7. A população estimada no Estado era de 1.146 habitantes indígenas de 30 aldeias em 19 municípios, de acordo com dados de 2013 (IBGE) 1.

Atualmente, existem três diferentes grupos guaranis de dialetos e fundações culturais no Brasil: ñandeva, mbyá e kaiowá. Este estudo incluiu 19 aldeias cujas terras indígenas se localizavam em torno de 12 municípios na área de abrangência dos DSEIs do litoral sul e interior sul, com uma população total de 403 habitantes nas idades específicas estudadas. Embora fossem culturalmente muito semelhantes, essas comunidades tinham várias diferenças em termos de território ou infraestrutura da aldeia indígena.

O território de algumas aldeias era demarcado e oferecia atendimento de saúde, água tratada, escola, casas e eletricidade. Contudo, outras eram acampamentos na estrada e sem recursos. Das 30 aldeias existentes, quatro foram excluídas por ter habitantes não indígenas ou pessoas de outras etnias e sete porque eram pequenas comunidades com menos de 50 habitantes e não podiam ser visitadas por falta de transporte.

Para exames, análise e descrição dos resultados, a população estudada foi estratificada nas idades de 5 e 12 anos e nas faixas etárias de 15-19, 35-44 e 65-74 anos. As idades, as faixas etárias e os exames clínicos foram realizados de acordo com os critérios estabelecidos pela OMS para pesquisas em saúde bucal8, pelas Diretrizes para Cuidados de Saúde Bucal em Distritos de Saúde Indígenas Especiais9 e pela Pesquisa de Condições de Saúde Bucal na População Brasileira10.

Os dados clínicos coletados foram: cárie dentária, necessidade de tratamento odontológico, doença periodontal, oclusão dentária, fluorose, necessidade e uso de serviços odontológicos.

Os exames foram realizados em cada comunidade durante visita às aldeias para coleta de dados. A amostragem foi do tipo censitária de todos os indivíduos dos respectivos grupos etários que estavam presentes durante a visita e concordaram em participar do estudo. Os exames foram feitos durante a luz do dia usando espelho e sonda exploratória, sendo realizados por um único examinador com experiência de trabalho com comunidades guaranis no Estado do Rio Grande do Sul. O coeficiente kappa para medir a concordância intraexaminador foi de 0,91, considerado excelente11.

Um questionário estruturado foi utilizado para coletar variáveis relacionadas a fatores socioeconômicos e demográficos, presença de fluoreto artificial na água potável, hábitos de higiene bucal, autopercepção de saúde, autopercepção de saúde bucal e acesso a serviços odontológicos. Quando necessário, foi solicitada a ajuda de um tradutor nativo. Esses dados foram coletados para as faixas etárias de 15-19, 35-44 e 65-74 anos.

A coleta de dados exigiu ao pesquisador viajar mais de 3 mil km pelas estradas do Rio Grande do Sul durante um período de três meses para visitar 19 aldeias em 12 municípios

O projeto de pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Grupo Hospitalar Conceição e encaminhado para revisão pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. Foi aprovado em 2 de setembro de 2009, sob o número de projeto CEP/GHC 083/09 e CONEP 588/09. Por razões éticas e em deferência à tradição e ao povo guarani, o projeto de pesquisa foi discutido e analisado em suas comunidades com líderes locais e representantes do Conselho Distrital de Saúde Indígena. Os indivíduos diagnosticados com problemas orais ou que precisavam de cuidados de urgência foram devidamente referidos para as equipes multidisciplinares de saúde indígena (EMSIs) e para os respectivos polos-base responsáveis pelo atendimento odontológico. Os autores declaram não haver conflito de interesses.

Análise dos dados

Para os dados de prevalência das doenças bucais, foram calculadas as médias e as porcentagens dos índices, com um intervalo de confiança de 95%. Foi utilizado também o teste não paramétrico U de Mann-Whitney para duas amostras independentes da média dos CPOs.

RESULTADOS

Foi examinado um total de 204 (50,3% da população-alvo) indivíduos guaranis em 19 aldeias indígenas espalhadas pelo Estado do Rio Grande do Sul, dos quais 51% eram do sexo masculino, e 49%, do sexo feminino.

A Tabela 1 descreve os dados sociodemográficos dos participantes de acordo com o tipo de terra indígena em que viviam, onde obtinham água para consumo e uso geral e a presença de banheiros. Houve paridade de gênero entre os participantes, 73% viviam em terras indígenas reconhecidas e cerca de 1/3 da população ainda morava em campos precários. Além disso, 58,3% dos nativos usavam poço artesiano como fonte e distribuição de água encanada, ao passo que 59,3% não tinham banheiro para uso pessoal. Das 19 aldeias do estudo, 90,9% não tinham água potável fluoretada, e em apenas duas apresentavam abastecimento de água fluoretada conectado à rede pública. Isso significa que menos de 10% da população total estudada era beneficiaria da fluoretação das águas de abastecimento público.

Tabela 1 Descrição demográfica dos participantes por tipo de terra indígena, acesso à água e banheiros na população guarani do Rio Grande do Sul, Brasil (setembro de 2009 a julho de 2010) 

Idade/faixa etária 05 12 15-19 35-44 60-74 Total
n % n % n % n % n % n %
Participantes
Masculino 24 11,8 12 5,9 39 19,1 12 5,8 13 6,4 100 51
Feminino 21 10,3 23 11,3 35 17,1 19 9,3 6 2,9 104 49
Total 45 22 35 17,2 74 36 31 15,2 19 9,3 204 100
Posse da terra
Reconhecida 34 16,7 25 12,3 55 27 21 10,3 14 6,9 149 73
Acampamento 11 5,9 10 4,9 19 9,3 10 4,9 5 2,4 55 27
Água
Natural 6 2,9 5 2,4 3 1,5 4 2 2 1 20 9,8
Poço 3 1,5 5 2,4 4 2 1 0,5 12 5,9 25 12,3
Encanada de poço 27 13,2 20 9,8 50 24,5 18 8,8 4 2 119 58,3
Encanada pública 8 3,9 4 2 16 7,8 7 3,4 1 0,5 36 17,6
Outros 1 0,5 1 0,5 1 0,5 1 0,5 1 0,5 4 2
Banheiros
Não disponível 27 13,2 18 8,8 39 19,1 23 11,3 14 6,8 121 59,3
Disponível 18 8,8 16 7,8 35 17,1 9 4,4 5 2,4 83 40,7

A Tabela 2 mostra os resultados de saúde bucal em crianças guaranis de 5 anos de idade. O índice de cariados, extraídos e obturados (ceo) nos dentes decíduos foi de 2,8, consistindo em 85,7% do componente cariado e 14,3% de dentes restaurados, para um total de 45 crianças examinadas. A porcentagem de crianças livres de cárie foi 44,4% aos 5 anos e de 54,3% aos 12 anos. A Tabela 2 ainda apresenta os dados da experiência de cárie por meio do índice CPOD para dentição permanente em diferentes idades e grupos etários de residentes em aldeias guaranis no Rio Grande do Sul. Pode-se observar que crianças e adolescentes de 12 anos e entre 15 e 19 anos apresentaram CPOD de 1,3 e 3,4, respectivamente. A maior porcentagem foi registrada para o componente cariado (C) aos 12 anos (54,3%) e para os dentes obturados (O) no grupo de 15-19 anos (49,4%). Quanto à evolução na perda dentária, a faixa dos 15-19 anos apresentou 21,5% do CPO, enquanto a faixa etária de 35-44 anos obteve um CPO médio de 11,5 e o componente P representando 69,3% do total. O CPOD médio entre os idosos (65-74 anos) foi de 18,6, com o componente (P) dentes perdidos em razão de cárie aumentando com a idade quando comparados aos adultos (88,7%).

Tabela 2 Índice CPOD, ceo médio e porcentagens de cariados, cariados/obturados, obturados e perdidos nas idades de 5 e 12 anos e nas faixas etárias de 15-19, 35-44 e 65-74, em indígenas guaranis, Rio Grande do Sul, Brasil (setembro de 2009 a julho de 2010) 

Índice n Sadio média Cariado
média (%)
Obtur/cárie
média (%)
Obturado
média (%)
Perdido
média (%)
CPO-D/ceo-d
média CI 95%
Idade
5 45 17,4 2,4 85,7 0 0 0,4 14,3 0 0 2,80 1,77 – 3,83
12 35 25,6 0,7 54,3 0,1 4,3 0,4 34,8 0,1 6,5 1,3 0,86 – 1,77
15-19 74 24,8 0,9 27,9 0,0 1,2 1,6 49,4 0,7 21,5 3,4 2,72 – 4,06
35-44 31 18,9 1,6 14,5 0,1 0,5 1,8 15,7 8,0 69,3 11,5 9,29-13,80
65-74 19 11,5 1,1 5,9 0,0 0,0 1,0 5,4 16,5 88,7 18,6 13,95-23,20

Pode ser visto na Tabela 3 que não houve diferença no CPOD entre os sexos, exceto aos 5 anos, em que o ceo-d foi maior em mulheres.

Tabela 3 Comparação do CPOD (ceod) médio entre os sexos de acordo com idade e faixas etárias nos indígenas guaranis, Rio Grande do Sul, Brasil (setembro de 2009 a julho de 2010) 

CPO-D (ceo-d) média
Idade (anos) Masculino Feminino p*
5 1,46 ± 2,35 3,81 ± 3,99 0.04
12 0,83 ± 1,26 0,91 ± 1,24 0.82
15-19 2,77 ± 2,46 2,31 ± 2,69 0.27
35-44 8,67 ± 5,88 10,84 ± 7,27 0.56
65-74 18,54 ± 11,63 15,00 ± 7,58 0.57

*p < 0,05. Teste de Mann Whitney

Em relação à má oclusão, a pesquisa mostrou que 91,1% dos indígenas aos 5 anos tinham uma oclusão normal. Aos 12 anos, 91,4% não apresentavam sinais de fluorose e possuíam condição dentofacial normal. Quanto à faixa etária de 15-19 anos, 91,4% não tiveram fluorose e 89,2% apresentavam uma condição dentofacial normal, para um total de 74 crianças examinadas.

A Tabela 4 mostra os resultados da prevalência da doença periodontal nos guaranis para as faixas etárias 15-19, 35-44 e 65-74 anos, considerando o Índice Periodontal Comunitário mais alto por indivíduo. Entre os jovens de 15 a 19 anos, 10,8% tinham todos os sextantes saudáveis, enquanto 1,4% já tinha sextantes excluídos. A presença de cálculo em 50% dos indivíduos foi a necessidade periodontal mais marcante nessa faixa etária.

Tabela 4 Índice Periodontal Comunitário distribuído por idade e faixa etária nos indígenas guaranis, Rio Grande do Sul, Brasil (setembro de 2009 a julho de 2010) 

Condição periodontal
Condição/
Idade
Sadio Sangrante Cálculo Bolsa
4-5 mm
Bolsa
≥ 6 mm
Excluídos
n % n % n % n % n % n %
15-19
(n = 74)
8 10,8 28 37,8 37 50 0 0 0 0 1 1,4
35-44
(n = 31)
4 12,9 5 16,1 19 61,3 2 6,5 0 0 1 3,2
65-74
(n = 19)
0 0 0 0 6 31,6 8 42,1 1 5,3 4 21

No grupo de 35-44 anos, o pior resultado obtido foi para sextantes com cálculo (61,3%), enquanto 12,9% tiveram todos seus sextantes saudáveis. Além disso, apenas 6,5% apresentavam bolsas periodontais rasas.

Dos sujeitos considerados idosos, com idade entre 65 e 74 anos, apresentaram 31,6% dos sextantes com cálculo dental, e 21%, excluídos, além de uma alta taxa (47,4%) com bolsas periodontais, das quais 42,1% eram rasas. A proporção de indivíduos indígenas saudáveis sem problemas periodontais foi baixa e declinava com a idade.

A Tabela 5 mostra as variáveis de acesso a serviços odontológicos, higiene oral e autopercepção de saúde nos grupos de 15-19 e 35-44 anos. Na faixa etária de 15-19 anos, 55,6% visitaram o dentista nos últimos 12 meses e cerca de 44,4% nunca o fizeram. Dos que visitaram o dentista, 97,5% usaram o SASISUS/DSEI. Os principais motivos das visitas foram o exame de rotina e a manutenção da saúde bucal (33,8%), enquanto 12,2% procuraram atendimento odontológico por causa de dor. Especificamente quanto à dor de dente nos últimos seis meses, 68,9% dos entrevistados não relataram dor e 39,2% afirmaram que precisavam de tratamento odontológico. No inquérito sobre higiene bucal, 98,6% disseram que realizavam regularmente higiene bucal e tinham escova de dentes e 98,6% utilizavam creme dental. No entanto, 43,1% relataram que não usavam fio dental.

Tabela 5 Acesso a serviços, higiene bucal e autopercepção de saúde bucal de indígenas guaranis, Rio Grande do Sul, Brasil (setembro de 2009 a julho de 2010) 

Grupo etário 15-19 35-44
n % n %
Visita a dentista/últimos 12 meses*
Não/Nunca visitou 32 44,4 12 41,4
Sim 40 55,6 17 58,6
Tipo de serviço usado*
Nunca foi ao dentista 32 44,4 12 41,4
Serviço público 39 54,2 17 58,6
Serviço privado 1 1,4 0 0
Realiza higiene bucal?*
Sim 71 98,6 27 93,1
Não 1 1,4 2 6,9
Tem escova dental?*
Sim 71 98,6 27 93,1
Não 1 1,4 2 6,9
Usa pasta dental?*
Sim 70 97,2 25 86,2
Não 2 2,8 4 13,8
Usa fio dental?*
Sim 41 56,9 14 48,3
Não 31 43,1 15 51,7
Autopercepção de saúde bucal
Ruim 13 17,6 2 6,5
Mais ou menos 27 36,5 11 35,5
Boa 31 41,9 16 51,5
Não sabe 3 4,7 2 6,5
Aparência
Ruim 20 27,0 11 35,5
Mais ou menos 24 32,4 5 16,1
Boa 26 35,1 13 41,9
Não sabe 4 5,5 2 6,5
Total 74 100 31 100

*2 excluídos

Na faixa 35-44 anos de idade, 58,6% tinham sido atendidos pelo dentista nos últimos 12 meses, e todos relataram ter visitado um dentista em algum momento de suas vidas. As principais razões para a procura de tratamento odontológico foram: consultas de controle e manutenção de rotina (19,4%) e cavidades dentárias (16,1%). Além disso, 64,5% dos indivíduos examinados relataram que não sofreram dor de dente nos últimos seis meses, enquanto 54,8% sentiram que precisavam de tratamento odontológico. Ainda, quase todos os indivíduos indígenas que receberam atendimento odontológico nos 12 meses antes da entrevista usaram o serviço de saúde pública.

Em termos de saúde percebida e saúde bucal, os resultados da pesquisa se referem aos grupos de 15-19 e 35-44 anos de idade. A saúde bucal percebida foi considerada deficitária para 17,6% dos adolescentes e apenas para 6,5% dos adultos. Quanto à percepção da aparência dentária, observou-se que 27% dos sujeitos de 15-19 anos e 35,5% de 35-44 anos avaliaram sua aparência dental como não satisfatória. Em relação à saúde geral percebida, 67,6% dos adolescentes e 61,3% dos adultos relataram ter uma boa saúde geral.

DISCUSSÃO

As morbidades orais têm múltiplos elementos causadores relacionados a diferentes fatores socioeconômicos e que são mais proeminentes entre os povos indígenas em razão de suas condições de vida precárias e únicas. As populações indígenas em todo o mundo têm uma saúde bucal significativamente pior, e as desigualdades no acesso aos cuidados dentários são atribuídas, em grande parte, aos determinantes sociais da saúde12. Uma comparação da magnitude de iniquidades entre populações indígenas e não indígenas do Brasil, da Austrália e da Nova Zelândia mostrou que, independentemente do país, os indivíduos indígenas têm pior condição de saúde oral13.

Nosso estudo encontrou que 27% dos sujeitos viviam em acampamentos na beira de estradas, sem uma sustentabilidade adequada para o povo guarani, e que 59,3% não possuíam instalações de saúde ou sanitários. Uma descoberta positiva é que 75,9% tinham acesso à água tratada, seja por meio de sua própria rede de abastecimento (poços artesianos), seja por abastecimento público de água. Esses fatores estão intimamente relacionados com as condições de saúde de qualquer indivíduo, indígena ou não. Fazem parte de uma rede de determinantes sociais como posse da terra, habitação e sustentabilidade, e não apenas de questões diretamente relacionadas à saúde e que se aplicam ao modo de vida da população indígena14. A 6ª Conferência Nacional de Saúde Indígena reforçou o necessário entendimento de que a saúde dos povos indígenas está ligada à regularização, à proteção e ao reconhecimento das terras e dos territórios indígenas, aos cuidados ambientais e à proteção da fauna e da flora15.

Em relação à carie dentária, comparando as metas da OMS para 201016 e o levantamento de saúde bucal da população (urbana) brasileira no SB-201010 conduzido pelo Ministério da Saúde, incluindo dados do Rio Grande do Sul17, com os resultados desta pesquisa, pode ser visto que a porcentagem de crianças indígenas aos 5 anos sem cáries (44,4%) foi ligeiramente inferior à da população brasileira10 (46,6%) e maior do que a da região Sul (39,4%). Essa diferença é quase 5% menor do que a meta de 50% estabelecida pela OMS para o ano 2000, e ainda mais do objetivo de 90% estabelecido pela OMS para 201016. Em relação à idade de 12 anos, a população indígena guarani possuía um CPOD médio mais baixo (1,31) do que a população brasileira em 2010 (2,07)18, do Sul (2,06) e do Rio Grande do Sul (2,45)17, mas melhor do que o objetivo proposto pela OMS para 2000 (< 3) e próximo ao alvo de 2010 (≤ 1)16. Uma possível explicação para a menor prevalência de cárie nessas faixas etárias pode ser de que os guaranis, diferentemente de outras etnias4, caracterizam-se pela permanência de hábitos alimentares saudáveis, os quais estão ligados à cultura indígena. O uso e a disponibilidade de flúor por meio da distribuição de escovas e pastas de dentes, além dos cuidados de saúde especializados fornecidos a essa população, também são fatores decisivos. Esses achados vão em direção contrária a estudos semelhantes que sugerem uma tendência de aumento da prevalência da cárie nessas populações19.

Para os grupos etários subsequentes, o CPOD médio (3,39) nos guaranis de 15-19 anos foi menor do que o índice CPO na população brasileira no SB-2010 (4,25)10. A composição do índice também é digna de nota, com uma diferença importante nas taxas de dentes cariados (C): 27,9% nos guaranis e 35,8% no SB-201010.

Nos adultos de 35-44 anos, o CPOD também apresentou um menor valor médio nos guaranis (11,55) do que no resto da população no SB-2010 (16,75)18, sendo o componente faltante (P) responsável por 69,3% do índice neste estudo, bem acima do SB-2010 (44,7%)20. Para o grupo etário de 65-74 anos, o índice de CPOD foi de 18,58, bem abaixo do SB-2010 da população brasileira, que registrou 27,53. O componente (P) foi o mais significativo para essa idade em ambos os estudos, com taxas próximas, de 88,7% e 91,9%, respectivamente.

O componente P do índice pode indicar que os adultos indígenas tiveram acesso a serviços odontológicos, mas predominantemente para a extração de dentes. Em nenhuma das aldeias havia a possibilidade de encaminhamento aos Centros de Especialidades Odontológicas para tratamentos mais complexos. Em um estudo que avaliou a prevalência de cáries na população indígena brasileira residente em áreas urbanas com base no levantamento do SB-2010, concluiu-se que existem disparidades desfavoráveis entre indivíduos indígenas e não indígenas. Esses achados demonstram a vulnerabilidade dessa população, em especial quando passam a residir em centros urbanos21.

Em relação às condições periodontais da população guarani, o índice IPC foi utilizado para identificar a presença de sangramento, cálculo, bolsas periodontais rasas (3 mm a 5 mm) e profundas (6 mm ou mais) nas diferentes faixas etárias. Ao analisar as condições periodontais, existiu uma maior prevalência de doença periodontal e menos sextantes saudáveis em todas as faixas etárias entre os guaranis examinados em comparação com o SB-201010. Entre os idosos, a concentração mais alta em termos de condição periodontal era de bolsas de 4-5 mm, sem nenhum dos sextantes restantes livres de doença periodontal. A baixa porcentagem de sextantes excluídos (21%) em relação ao SB-2010 para o Brasil e a região Sul (90,5% e 88,7%, respectivamente) mostra maior presença de dentes nessa faixa etária na população guarani10. Mas esses resultados em idosos são limitados por causa do pequeno número de pessoas examinadas nesse grupo.

Após a introdução, em 1999, de um novo modelo de saúde indígena no Brasil20, permitiu-se que os profissionais de saúde trabalhassem em estreita colaboração com a realidade das aldeias. Com isso, houve pequeno aumento, embora insuficiente, do número de estudos sobre saúde bucal indígena em diferentes grupos étnicos no país. No entanto, esses estudos devem ser cuidadosamente analisados, uma vez que alguns deles utilizam metodologias que não seguem as mesmas recomendadas pela OMS, dificultando a análise comparativa. Para estabelecer comparações com essa investigação, foram selecionados alguns estudos que possuíam metodologias e grupos etários similares. Carneiro et al.22 encontraram que, aos 5 anos, o ceo-d entre o grupo baníwa no Amazonas era de 6,3. Já Arantes et al.23 registraram uma média de 4,9 em xavantes do Estado do Mato Grosso. Entre os guaranis em São Paulo, em um estudo realizado por Fratucci24, em 2000, foi identificado um ceod de 3,3, com 44% livres de cárie. Em um estudo de 2009, Alves e cols.25 encontraram um índice ceo-d de 2,6, com 38,5% de crianças guaranis livres de cárie no Estado do Rio de Janeiro. Para essa mesma faixa etária entre os guaranis no Rio Grande do Sul, o índice ceo-d foi 2,8, com 44,4% de crianças livres de cáries. Esses achados são semelhantes aos encontrados entre os guaranis em São Paulo e no Rio de Janeiro24,25.

Na idade recomendada para comparações pela OMS (12 anos), os guaranis no Rio Grande do Sul exibiram um índice CPOD (1,31) abaixo dos demais estudos dessa etnia24,25, tendo ainda 38% de dentes obturados (O). Os guaranis em São Paulo e no Rio de Janeiro tiveram CPO-D de 2,2 e 1,7 respectivamente, sendo os dentes obturados (O) responsáveis por 10,9% e 35,3%24,25.

Esses estudos24,25 permitem contextualizar o quadro de saúde bucal dos povos indígenas em relação à cárie dentária, demonstrando avanços nas condições de saúde dessa população no Brasil, principalmente no que diz respeito ao acesso aos serviços de saúde, por meio de uma política pública que respeite a diversidade étnica.

O acesso ao atendimento odontológico para adolescentes e adultos indígenas foi facilitado em comparação com dados da população brasileira de 200326. Deve-se realçar que, para alcançar um acesso de qualidade aos serviços de saúde, é crucial que os profissionais nas aldeias estejam conectados e respeitem o modo de vida indígena. A percepção da saúde bucal de adolescentes e adultos, assim como a saúde percebida, foi classificada como boa por um número significativo de entrevistados. No entanto, esse resultado deve ser visto com cautela, pois pode estar relacionado a outros aspectos culturais que são mais relevantes do que a simples ausência de doença bucal.

No Brasil, principalmente no Rio Grande do Sul, ainda faltam estudos epidemiológicos sobre saúde bucal de grupos indígenas27. Pesquisas que tratem do estado de saúde dos povos indígenas são de extrema importância para planejar, programar, implementar e avaliar serviços e programas direcionados a essas comunidades.

Este estudo apresenta algumas limitações por se tratar de um estudo transversal para identificar a prevalência de doenças bucais, por isso seus resultados não devam ser extrapolados a populações de outras etnias e, em especial, ao grupo de maior faixa etária em razão do número reduzido de indivíduos examinados. Entretanto o conhecimento adquirido será altamente valioso na orientação e no planejamento das atuais políticas de saúde bucal para os povos indígenas do Rio Grande do Sul e do Brasil.

Os resultados mostraram que a população guarani do Estado do Rio Grande do Sul apresentou melhores índices de saúde bucal do que os relatados no inquérito epidemiológico de saúde bucal de 2010 na população brasileira, exceto para o estado periodontal. O perfil epidemiológico de cárie dos guaranis de outros Estados é bastante semelhante ao da população guarani que vive no Rio Grande do Sul. Contudo, estudos longitudinais e de vigilância da saúde bucal indígena são necessários para compreender como os processos de mudança cultural e os hábitos sociais e alimentares podem influenciar, positiva ou negativamente, o processo saúde/doença bucal na população indígena.

REFERÊNCIAS

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