versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.31 no.11 Rio de Janeiro nov. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00126114
Ambulatory care sensitive hospitalizations have been used as an indicator of the effectiveness of primary health care. The research involved a descriptive analysis of the evolution of national indicators from 1998 to 2012 and a cross-sectional study of Brazilian municipalities with populations greater than 50,000, by region of the country, for the year 2012, using correlation and linear regression statistical techniques. There was a slight decline in the proportion of ambulatory care sensitive hospitalizations in Brazil. Socioeconomic and demographic factors and physician supply in the healthcare system are associated with the proportion of ambulatory care sensitive hospitalizations, differing by region of the country. Despite advances in the expansion of the Family Health Strategy, some challenges remain, including better distribution of physicians and other health professionals in the country and effective changes in the healthcare model.
Key words: Primary Health Care; Hospitalization; Health Services; Family Health Strategy
Las hospitalizaciones por condiciones sensibles a la atención primaria han sido utilizadas como un indicador de efectividad de la atención primaria. El artículo explora la asociación entre las variables seleccionadas y la proporción de condiciones sensibles a la atención primaria en Brasil. La investigación incluyó un análisis descriptivo de la evolución de indicadores nacionales de 1998 a 2012 y la realización de un estudio transversal de los municipios brasileños, con población de más de 50 mil habitantes, por región del país, para el año 2012, para el que se utilizaron técnicas estadísticas de correlación y regresión lineal. Los resultados muestran una discreta disminución en la proporción de condiciones sensibles a la atención primaria. Las condiciones socioeconómicas, demográficas y de oferta de médicos en los municipios mostraron una asociación con la proporción de condiciones sensibles a la atención primaria, con diferentes expresiones en las regiones del país. A pesar de los avances relacionados con la expansión de la Estrategia de Salud Familiar, persisten desafíos como la distribución adecuada de médicos y otros profesionales en el territorio nacional y el cambio del modelo de atención.
Palabras-clave: Atención Primaria de Salud; Hospitalización; Servicios de Salud; Estrategia de Salud Familiar
Nas últimas décadas, o debate sobre o papel e a importância da atenção primária à saúde (APS) na organização dos sistemas ganhou destaque internacionalmente 1,2,3. Diferentes estudos reconhecem vantagens nos sistemas de saúde centrados na atenção primária em relação aos baseados em cuidados especializados, com destaque para questões referentes à equidade, ao acesso, ao menor custo, à continuidade do cuidado, bem como melhorias nos indicadores de saúde da população 4,5.
Tal debate é permeado por diferentes concepções de APS. A perspectiva abrangente aponta a APS como componente fundamental de um sistema de saúde eficaz. Já a concepção seletiva refere-se a um pacote de intervenções técnicas de baixo custo para combater as principais doenças que acometem as populações pobres, especialmente nos países em desenvolvimento 6.
As concepções de atenção primária variam nos diferentes sistemas de saúde em função das características gerais da proteção social – mais universalista ou focalizada – e das particularidades da trajetória das políticas de saúde, conformadas em diferentes contextos sociais, políticos e econômicos, sob interesses conflitantes. Nas décadas de 1980 e 1990, a concepção de atenção primária seletiva predominou nos processos de reforma dos sistemas de saúde na maior parte dos países latino-americanos 7,8. Nos anos 2000, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) reconheceram os limites da proposta seletiva e lançaram a estratégia designada como Renovação da Atenção Primária à Saúde nas Américas 9, em defesa da adoção de uma perspectiva abrangente de APS, ainda que adaptável ao contexto dos distintos países 2,9.
O reconhecimento da relevância da organização dos sistemas de saúde a partir da atenção primária também impulsionou o desenvolvimento de propostas de avaliação de sua efetividade em termos da redução da morbidade e da mortalidade por diferentes condições. Ainda nos anos 1990, Billings et al. 10 propuseram o termo condições sensíveis à atenção primária (ambulatory care sensitive conditions) para designar um conjunto de problemas de saúde para os quais a ação nesse nível de atenção diminuiria o risco de internações, por meio de prevenção de doenças, diagnóstico e tratamento precoce de condições agudas, controle e acompanhamento de patologias crônicas.
Embora as internações por condições sensíveis à atenção primária possuam natureza diversa e sofram influência de fatores como renda, escolaridade e acesso aos serviços de saúde privados ou especializados 11,12, tal indicador tem sido amplamente utilizado como medida de acesso e efetividade dos cuidados ofertados nesse nível de atenção, compondo a lista de indicadores de qualidade da atenção primária nos países- membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Dentre os efeitos deletérios ao sistema de saúde gerados por internações “desnecessárias”, relacionadas às condições sensíveis à atenção primária, Carneiro et al. 13 destacam o aumento de iatrogenias e de custos, com repercussão na assistência à saúde de forma global.
As mudanças no perfil demográfico e epidemiológico em países em desenvolvimento, com o crescimento da morbidade e da mortalidade por doenças crônicas não transmissíveis, colocam novos desafios para a organização e a avaliação do desempenho da atenção primária no contexto dos sistemas de saúde.
No Brasil, desde meados da década de 1990, o Governo Federal tem investido na reorganização da APS no país, com ênfase na Estratégia Saúde da Família (ESF), que alcançou cobertura estimada de mais de 56% da população brasileira em 2013. Essa expansão foi expressiva, porém desigual no país, marcada por um ritmo mais acelerado nos municípios de pequeno e médio porte e dificuldades em grandes centros urbanos, relacionadas às características prévias dos sistemas de saúde e maior presença do setor privado, entre outros fatores 14,15.
Além disso, numerosos estudos apontam limitações no acesso, na continuidade e na qualidade da assistência prestada nesse nível de atenção 16,17,18. Em consequência, a partir dos anos 2000, expandiram-se as iniciativas de monitoramento e avaliação da APS no Brasil.
Nesse contexto, após intenso debate entre especialistas, o Ministério da Saúde propôs a lista brasileira de grupos de causas de internações e diagnósticos considerados condições sensíveis à atenção primária 19. Vale ressaltar a importância da adaptação da lista ao contexto brasileiro, visto que as características dos sistemas de saúde, os perfis epidemiológicos e a carga de doenças diferem entre países 20. Além disso, o processo de adaptação é importante para garantir validade, confiabilidade e representatividade da lista, além de ser um pré-requisito fundamental para a utilização.
Diferentes estudos sugerem um impacto positivo da expansão da ESF na redução de internações por condições sensíveis à atenção primária em municípios brasileiros 21,22,23. No entanto, os índices de internações por condições sensíveis à atenção primária no Brasil permanecem elevados – em geral, acima de 20% das internações – em comparação a outros países com sistemas de saúde universais, tais como Espanha e Austrália, que apresentam taxas de internações por condições sensíveis à atenção primária em torno de 7% a 13%, respectivamente 24.
Nesse sentido, a pesquisa apresentada no artigo foi orientada pela seguinte questão: que fatores estão associados à ocorrência de internações por condições sensíveis à atenção primária no Brasil? Partiu-se da hipótese geral de que a ocorrência dessas internações pode ser influenciada por distintas variáveis, como condições socioeconômicas, demográficas, de oferta de serviços e de configuração do sistema de saúde. Porém, dada a heterogeneidade territorial do país, essa influência não ocorreria de forma homogênea entre as regiões brasileiras.
Este artigo tem o propósito de apresentar os resultados do estudo que analisou as variáveis associadas à ocorrência de internações por condições sensíveis à atenção primária em saúde nos municípios brasileiros com população acima de 50 mil habitantes, separadamente pelas cinco grandes regiões do país.
No desenho do estudo, definiu-se, como variável dependente (ou desfecho), a proporção de internações por condições sensíveis à atenção primária no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Já as condições que poderiam expressar associações com o desfecho foram designadas como variáveis independentes, expressas pelos seguintes indicadores selecionados:
a) Condições socioeconômicas – o indicador Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M) foi utilizado como proxy;
b) Condições demográficas – o indicador proporção da população com 60 anos ou mais foi selecionado devido ao maior risco de internações entre os idosos;
c) Oferta de serviços de saúde – esse grupo envolveu indicadores relativos ao modelo de atenção básica (cobertura da ESF), à oferta de profissionais médicos, de leitos e de equipamentos diagnósticos. No último caso, foram selecionados os principais equipamentos diagnósticos que, na visão dos autores, seriam necessários para atendimento às pessoas com condições incluídas na lista brasileira de condições sensíveis à atenção primária 19. Embora o mamógrafo não esteja diretamente relacionado às condições presentes na referida lista, tal equipamento também foi incluído no estudo pela sua relevância para diagnóstico do câncer de mama, cujas taxas de incidência e mortalidade permanecem elevadas no Brasil 25;
d) Peso dos planos privados no sistema de saúde – proporção de beneficiários de planos privados de saúde na população, que reflete a importância do setor privado suplementar.
Este estudo foi efetuado em duas etapas, a partir das bases de dados nacionais. A primeira consistiu em uma análise exploratória descritiva em série temporal do Brasil, abrangendo o período de 1998 a 2012. Analisou-se a evolução de parte dos indicadores incluídos no modelo de análise, bem como a variação percentual no período. O ano de 1998 foi selecionado, pois representa o início do registro oficial do número de equipes de saúde da família implantadas pelos municípios por meio do Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB). Utilizou-se o ano de 2012 como ano mais recente, para assegurar a disponibilidade e confiabilidade dos dados. Cabe ressaltar que o IDH-M não estava disponível para os anos de 1998 e 2012. No entanto, pela sua importância como proxy das condições socioeconômicas da população, foram levantados os dados do IDH- M referentes aos anos de 2000 e 2010. Por outro lado, no que diz respeito à oferta de serviços, foram utilizados nessa etapa somente os indicadores relativos à atenção básica (cobertura da ESF), oferta de médicos e leitos hospitalares. Os indicadores referentes à oferta de equipamentos diagnósticos não foram incluídos por limites de disponibilidade e comparabilidade, visto que o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) ainda não havia sido implantado em 1998.
A segunda etapa consistiu na realização de um estudo ecológico, comparando as regiões brasileiras (Norte, Nordeste, Centro-oeste, Sudeste e Sul) no ano de 2012, a partir da construção de uma base de dados dos municípios com população igual ou superior a 50 mil habitantes (n = 614).
A base de dados inicialmente incluiu todas as internações hospitalares realizadas em 2012, segundo município de residência do paciente, registradas pelo Sistema de Informação Hospitalar do SUS (SIH-SUS). Calculou-se a proporção de internações por condições sensíveis à atenção primária (variável desfecho), considerando a lista brasileira de condições sensíveis à atenção primária adotada pelo Ministério da Saúde 19. A seleção dos municípios com população acima de 50 mil habitantes como unidade de análise do estudo ocorreu após aplicação do teste de Kolmogorov-Smirnov, que avalia se a variável desfecho segue uma distribuição normal, pressuposto para a realização da técnica estatística de regressão linear. Todas as variáveis utilizadas na primeira etapa do estudo foram incorporadas nessa fase. A Tabela 1 expõe, de forma sintética, as variáveis e os indicadores incluídos no estudo, suas fórmulas de cálculo e a fonte de dados. Para cálculo dos indicadores, foram utilizadas as estimativas populacionais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Tabela 1 Variáveis e indicadores incluídos no estudo.
Variáveis/Indicadores | Forma de cálculo | Fonte |
---|---|---|
Variável dependente | ||
Internações por condições sensíveis à atenção primária | ||
Proporção de Internações por condições sensíveis à atenção primária | Número de pessoas internadas por procedimentos classificados na Portaria no 221 19, como sensíveis à atenção primária/Total de internações x 100 | SIH-SUS |
Variáveis independentes | ||
Condições socioeconômicas | ||
IDH-M | 3√IDH-M longevidade x IDH-M educação x IDH-M renda | PNUD |
Condições demográficas | ||
Proporção da população com 60 anos ou mais | População com idade igual ou superior a 60 anos/ população total x 100 | IBGE |
Oferta de serviços de saúde | ||
Proporção da população coberta pela ESF | Estimativa da população coberta pela ESF/população x 100 | MS/SAS/DAB e IBGE |
Total de leitos/1.000 habitantes | Leitos de internação existentes/população x 1.000 | MS/SAS/SIH/SUS CNES e IBGE |
Proporção de leitos SUS | Leitos SUS/leitos de internação existentes x 100 | MS/SAS/SIH/SUS CNES e IBGE |
Leitos privados/1.000 habitantes | Leitos não SUS/população x 1.000 | MS/SAS/SIH/SUS CNES e IBGE |
Médicos/1.000 habitantes | Total de médicos (indivíduos segundo CBO 2002)/população x 1.000 | CFM e IBGE |
Proporção de médicos SUS | Total de médicos que atendem no SUS (indivíduos segundo CBO 2002)/total de médicos x 100 | CNES e IBGE |
ECG/10.000 habitantes | ECG existentes/população x 10.000 | CNES e IBGE |
ECG disponíveis ao SUS/10.000 habitantes | ECG existentes disponíveis ao SUS/população x 10.000 | CNES e IBGE |
Endoscópios digestivos/10.000 habitantes | Endoscópios digestivos existentes/população x 10.000 | CNES e IBGE |
Endoscópios digestivos disponíveis ao SUS/10.000 habitantes | Endoscópios digestivos existentes disponíveis ao SUS/população x 10.000 | CNES e IBGE |
Mamógrafos/10.000 habitantes | Mamógrafos existentes/população x 10.000 | CNES e IBGE |
Mamógrafos disponíveis ao SUS/10.000 habitantes | Mamógrafos existentes disponíveis ao SUS/população x 10.000 | CNES e IBGE |
Equipamentos de radiologia médica total/10.000 habitantes | Equipamentos de radiologia médica existentes/população x 10.000 | CNES e IBGE |
Equipamentos de radiologia médica disponíveis ao SUS/10.000 habitantes | Equipamentos de radiologia médica disponíveis ao SUS/população x 10.000 | CNES e IBGE |
Equipamentos de ultrassonografia/10.000 habitantes | Equipamentos de ultrassonografia existentes/população x 10.000 | CNES e IBGE |
Equipamentos de ultrassonografia disponíveis ao SUS/10.000 habitantes | Equipamentos de ultrassonografia disponíveis ao SUS/população x 10.000 | CNES e IBGE |
Peso dos planos privados no sistema de saúde | ||
Proporção de beneficiários de planos de saúde | Beneficiários de planos de saúde/população x 100 | ANS e IBGE |
ANS: Agência Nacional de Saúde Suplementar; CBO: Classificação Brasileira de Ocupações; CFM: Conselho Federal de Medicina; CNES: Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde; DAB: Departamento de Atenção Básica; ECG: eletrocardiograma; ESF: Estratégia Saúde da Família; IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; IDH-M: Índice de Desenvolvimento Humano Municipal; MS: Ministério da Saúde; PNUD: Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento; SAS: Secretaria de Atenção á Saúde; SIH: Sistema de Informações Hospitalares; SUS: Sistema Único de Saúde.
Com o intuito de verificar se as variáveis selecionadas estão associadas à proporção de internações por condições sensíveis à atenção primária nos diferentes municípios e regiões brasileiras, foram utilizadas as técnicas estatísticas de correlação e regressão linear. A dependência linear entre as variáveis foi medida pelo coeficiente de correlação de Pearson, que avalia o sentido (positivo ou negativo) e a intensidade da relação entre as variáveis, que foi classificada como fraca (r ≥ 0 e ≤ 0,3), moderada (r ≥ 0,3 e ≤ 0,6) ou forte (r ≥ 0,6 e ≤ 0,9) 26. Todas as variáveis com associação estatisticamente significativa (p ≤ 0,05) foram incluídas na análise.
A seguir, foram efetuadas cinco análises de regressão linear múltipla com intuito de identificar quais dentre as variáveis independentes melhor explicam a variação do desfecho em cada região do país.
A construção da base de dados a partir dos dados disponíveis no SIH-SUS foi efetuada com auxílio do programa SAS (SAS Inst., Cary, Estados Unidos). Para cálculo dos indicadores e análise dos dados, foi utilizado o programa IBM SPSS (IBM Corp., Armonk, Estados Unidos). Foram utilizados somente dados de domínio público e acesso irrestrito. O estudo compõe um projeto mais amplo que foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, parecer no 423.718.
A análise inicial demonstrou que, entre 1998 e 2012, houve uma diminuição da proporção de internações por condições sensíveis à atenção primária de cerca de 15% no Brasil. No que diz respeito à oferta de serviços, observou-se aumento nacional em mais de 700% na cobertura populacional pela ESF, enquanto a disponibilidade de médicos por mil habitantes cresceu cerca de 16% no mesmo período. Chama ainda a atenção a redução de mais de 20% da disponibilidade de leitos totais e privados no país no período (Tabela 2).
Tabela 2 Evolução de indicadores selecionados. Brasil, 1998 e 2012.
Indicador | 1998 | 2012 | Variação média 1998-2012 (%) |
---|---|---|---|
Variável dependente | |||
Proporção de internações por condições sensíveis à atenção primária * | 24,1 | 20,4 | -15,35 |
Variáveis independentes | |||
IDH-M (2000-2010) ** | 0,61 | 0,73 | 18,79 |
Proporção da população com 60 anos ou mais *** | 7,85 | 10,77 | 37,15 |
Proporção da população coberta pela ESF *** | 6,55 | 54,84 | 737,25 |
Total de leitos/1.000 habitantes ## | 3,05 | 2,35 | -22,95 |
Proporção de leitos não SUS ## | 23,17 | 36,67 | 58,26 |
Leitos privados/1.000 habitantes ## | 2,05 | 1,49 | -27,32 |
Médicos/1.000 habitantes ### | 1,69 | 1,95 | 15,38 |
ESF: Estratégia Saúde da Família; IDM-M: Índice de Desenvolvimento Humano municipal; SUS: Sistema Único de Saúde.
* PROADESS 24;
** Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento;
*** Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística;
# Departamento de Atenção Básica, Ministério da Saúde;
## Sistema de Informações Hospitalares/Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde/Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística;
### Conselho Federal de Medicina/Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
Vale ressaltar que o IDH-M, apesar de não disponível para os anos de 1998 e 2012, apresentou queda expressiva de quase 19% entre 2000 e 2010, segundo os dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).
A Figura 1 mostra a evolução anual da cobertura pela ESF e da proporção de internações por condições sensíveis à atenção primária, no período de 1998 a 2012. A cobertura pela ESF apresentou tendência ascendente em todo o período. Já em relação à proporção de internações por condições sensíveis à atenção primária, observa-se a manutenção de um padrão estável em patamares elevados, em torno de 24%, nos dez primeiros anos da série, com ligeira queda a partir de 2008, alcançando 20,4% em 2012.
Figura 1 Evolução da cobertura pela Estratégia Saúde da Família e percentual de internações sensíveis à atenção primária. Brasil, 1998-2012.
Os resultados da análise do banco de dados dos 614 municípios agregados por região referentes ao ano de 2012, por meio da utilização das técnicas de correlação de Pearson e da análise de regressão linear, encontram-se expostos nas Tabelas 3 e 4.
A Tabela 3 mostra que nenhuma das variáveis analisadas mostrou correlação significativa com as internações por condições sensíveis à atenção primária na Região Centro-oeste. Nas demais regiões, o mesmo ocorreu com quatro variáveis: leitos privados por mil habitantes; proporção de médicos SUS; eletrocardiograma (ECG) total por milm habitantes e ultrassonografia total por mil habitantes.
Tabela 3 Coeficiente de correlação de Pearson (r) e valor de p. Correlação entre proporção de internações por condições sensíveis à atenção primária e variáveis associadas nas diferentes regiões brasileiras, 2012.
Variável | Regiões | ||||
---|---|---|---|---|---|
Centro-oeste (n = 35) | Norte (n = 63) | Nordeste (n = 174) | Sudeste (n = 241) | Sul (n = 101) | |
IDH-M | |||||
Correlação de Pearson | -0,257 | -0,354 | -0,356 | -0,207 | -0,426 |
Valor de p | 0,136 | 0,004 | 0,000 | 0,001 | 0,000 |
Proporção da população coberta pela ESF | |||||
Correlação de Pearson | -0,002 | -0,043 | 0,023 | 0,198 | -0,089 |
Valor de p | 0,990 | 0,740 | 0,763 | 0,002 | 0,374 |
Total de leitos/1.000 habitantes | |||||
Correlação de Pearson | 0,141 | 0,229 | 0,334 | 0,065 | 0,149 |
Valor de p | 0,434 | 0,107 | 0,000 | 0,342 | 0,150 |
Proporção de leitos SUS | |||||
Correlação de Pearson | 0, 229 | 0,368 | 0,264 | 0,213 | 0,116 |
Valo de p | 0,240 | 0,032 | 0,003 | 0,003 | 0,278 |
Leitos privados/1.000 habitantes | |||||
Correlação de Pearson | 0,225 | 0,054 | 0,080 | -0,055 | 0,018 |
Valor de p | 0,215 | 0,716 | 0,382 | 0,422 | 0,863 |
Médicos/1.000 habitantes | |||||
Correlação de Pearson | -0,224 | -0,364 | -0,217 | -0,067 | -0,237 |
Valor de p | 0,197 | 0,003 | 0,004 | 0,302 | 0,017 |
Proporção de médicos SUS | |||||
Correlação de Pearson | -0,062 | 0,168 | 0,111 | 0,089 | 0,170 |
Valor de p | 0,724 | 0,189 | 0,143 | 0,169 | 0,089 |
Proporção da população com 60 anos ou mais | |||||
Correlação de Pearson | 0,218 | 0,229 | 0,252 | 0, 223 | 0,379 |
Valor de p | 0,209 | 0,072 | 0,001 | 0,000 | 0,000 |
Proporção de beneficiários de planos de saúde | |||||
Correlação de Pearson | 0,085 | -0,333 | -0,355 | -0,237 | -0,390 |
Valor de p | 0,629 | 0,008 | 0,000 | 0,000 | 0,000 |
ECG/10.000 habitantes | |||||
Correlação de Pearson | -0,034 | -0,196 | -0,025 | 0,033 | -0,040 |
Valor de p | 0,846 | 0,127 | 0,742 | 0,607 | 0,692 |
ECG disponíveis ao SUS/10.000 habitantes | |||||
Correlação de Pearson | 0,171 | 0,108 | 0,178 | -0,014 | 0,106 |
Valor de p | 0,325 | 0,407 | 0,020 | 0,830 | 0,290 |
Endoscópios digestivos/10.000 habitantes | |||||
Correlação de Pearson | -0,058 | -0,099 | 0,169 | 0,074 | -0,097 |
Valor de p | 0,750 | 0,476 | 0,034 | 0,259 | 0,342 |
Endoscópios digestivos disponíveis ao SUS/10.000 habitantes | |||||
Correlação de Pearson | 0,178 | 0,260 | 0,276 | 0,182 | - 0,008 |
Valor de p | 0,355 | 0,062 | 0,001 | 0,006 | 0,939 |
Mamógrafos/10.000 habitantes | |||||
Correlação de Pearson | 0,186 | - 0,019 | 0,123 | 0,165 | - 0,060 |
Valor de p | 0,299 | 0,911 | 0,156 | 0,012 | 0,568 |
Mamógrafos disponíveis ao SUS/10.000 habitantes | |||||
Correlação de Pearson | 0,313 | 0,119 | 0,224 | 0,215 | -0,009 |
Valor de p | 0,087 | 0,498 | 0,014 | 0,002 | 0,931 |
Equipamentos de radiologia médica total/10.000 habitantes | |||||
Correlação de Pearson | -0,017 | -0,257 | 0,004 | -0,044 | -0,266 |
Valor de p | 0,923 | 0,044 | 0,957 | 0,492 | 0,007 |
Equipamentos de radiologia médica disponíveis ao SUS/10.000 habitantes | |||||
Correlação de Pearson | 0,118 | 0,025 | 0,187 | 0,111 | -0,120 |
Valor de p | 0,501 | 0,846 | 0,014 | 0,084 | 0,232 |
Equipamentos de ultrassonografia/10.000 habitantes | |||||
Correlação de Pearson | 0,039 | -0,170 | 0,056 | 0,115 | -0,076 |
Valor de p | 0,823 | 0,184 | 0,467 | 0,076 | 0,448 |
Equipamentos de ultrassonografia disponíveis ao SUS/10.000 habitantes | |||||
Correlação de Pearson | 0,135 | -0,017 | 0,153 | 0,218 | -0,082 |
Valor de p | 0,441 | 0,893 | 0,044 | 0,001 | 0,415 |
ECG: Eletrocardiograma; ESF: Estratégia Saúde da Família; IDH-M: Índice de Desenvolvimento Humano Municipal; SUS: Sistema Único de Saúde. Nota: coeficiente de correlação de Pearson (r) e valor de p calculados a partir do IBM SPSS (IBM Corp., Armonk, Estados Unidos). Correlação fraca (r ≥ 0 e ≤ 0,3), correlação moderada (r ≥ 0,3 e ≤ 0,6) e correlação forte (r ≥ 0,6 e ≤ 0,9).
As demais variáveis independentes incluídas no modelo mostraram correlação fraca ou moderada com as internações por condições sensíveis à atenção primária em, ao menos, uma região. Vale destacar que somente as variáveis IDH-M e proporção de beneficiários de planos de saúde apresentaram correlação negativa com a variável desfecho para quatro regiões (Norte, Nordeste, Sudeste e Sul). Outras variáveis que se destacaram ao apresentar correlação significativa para três diferentes regiões foram: proporção de idosos (correlação positiva moderada no Sul, fraca no Nordeste e Sudeste); proporção de leitos SUS (correlação positiva moderada no Norte, fraca no Nordeste e Sudeste); total de médicos por mil habitantes (correlação negativa moderada no Norte, fraca no Nordeste e Sul).
As variáveis relativas à oferta de equipamentos diagnósticos mostraram correlação fraca com as internações por condições sensíveis à atenção primária em apenas uma ou duas regiões.
Já a proporção da população coberta pela ESF apresentou correlação negativa estatisticamente significativa com as internações por condições sensíveis à atenção primária somente na região Sudeste do país, ainda assim classificada como fraca.
A Tabela 4 apresenta os resultados da regressão linear, que foi realizada para as cinco regiões do país. No caso da Região Centro-oeste, assim como na análise de correlação, na qual não houve associação estatisticamente significativa, nenhuma variável independente pode ser inserida na equação de regressão linear. Assim, a Tabela 4 expõe os resultados da regressão linear para quatro regiões (Norte, Nordeste, Sul e Sudeste).
Tabela 4 Regressão linear múltipla entre proporção de internações por condições sensíveis à atenção primária e variáveis associadas, segundo regiões. Brasil, 2012.
Região/Variável | Coeficiente (B) | Valor de p | R2 (%) |
---|---|---|---|
Região Norte | 29,1 | ||
Constante | 78,64 | 0,001 | |
IDH-M | -84,66 | 0,012 | |
Região Nordeste | 39,4 | ||
Constante | 13,52 | 0,000 | |
Total de médicos por 1.000 habitantes | -4,61 | 0,000 | |
Total de leitos por 1.000 habitantes | 2,61 | 0,000 | |
Equipamentos de radiologia médica disponíveis ao SUS por 10.000 habitantes | 5,75 | 0,000 | |
Região Sudeste | 23,2 | ||
Constante | 32,77 | 0,000 | |
Proporção da população com 60 anos ou mais | 0,862 | 0,000 | |
IDH-M | -35,96 | 0,003 | |
Total de leitos por 1.000 habitantes | -0,467 | 0,016 | |
ECG disponíveis ao SUS por 10.000 habitantes | -2,26 | 0,010 | |
Equipamentos de ultrassonografia disponíveis ao SUS por 10.000 habitantes | 2,50 | 0,019 | |
Proporção de leitos SUS | 0,039 | 0,043 | |
Região Sul | 23,0 | ||
Constante | 60,49 | 0,000 | |
IDH-M | -65,28 | 0,000 | |
Proporção da população com 60 anos ou mais | 0,604 | 0,019 |
ECG: eletrocardiograma; IDH-M: Índice de Desenvolvimento Humano Municipal; SUS: Sistema Único de Saúde.
Nota: coeficiente (B), R2 e valor de p calculados a partir do IBM SPSS (IBM Corp., Armonk, Estados Unidos).
No que concerne à Região Norte, dentre as variáveis que apresentaram correlação com o desfecho, a variável IDH-M é aquela com maior poder de explicação para a proporção de internações por condições sensíveis à atenção primária. O IDH-M consegue explicar, em média, 29,1% da variação da proporção de internações por condições sensíveis à atenção primária nessa região, sendo que o aumento de uma unidade do IDH- M está associado à redução de 84,6 pontos na proporção de internações por essas causas, mantidas as demais variáveis do modelo constantes.
Já na Região Nordeste, três variáveis se destacaram na regressão linear múltipla: o total de médicos por mil habitantes; o total de leitos por mil habitantes e equipamentos de radiologia médica disponíveis ao SUS por 10 mil habitantes. Juntas, essas três variáveis independentes conseguem explicar 39,4% da variação da proporção de internações por condições sensíveis à atenção primária na Região Nordeste. Dessas, a variável que melhor explica o desfecho nessa região é o total de médicos por mil habitantes. É possível observar a redução de 4,6 pontos na proporção das internações por condições sensíveis à atenção primária na região Nordeste a cada aumento de uma unidade no total de médicos por mil habitantes.
Na Região Sudeste, seis indicadores explicam significativamente o desfecho: proporção da população com 60 anos ou mais, IDH-M; total de leitos por mil habitantes; equipamentos de ECG disponíveis ao SUS por 10 mil habitantes; equipamentos de ultrassonografia disponíveis ao SUS por 10 mil habitantes e a proporção de leitos disponíveis ao SUS. Essas variáveis explicam, em média, 23,2% da variação da proporção das internações por condições sensíveis à atenção primária na Região Sudeste. Destaca-se a variável proporção da população com 60 anos como a que possui maior poder de explicação do desfecho na Região Sudeste. Além disso, os achados revelam a relevância do IDH-M na ocorrência das internações por condições sensíveis à atenção primária na Região Sudeste. O aumento de uma unidade dessa variável está associado a um decréscimo de 35,9 pontos na proporção dessas internações.
Por último, na Região Sul do país, duas variáveis se destacaram no modelo de regressão linear: IDH-M e a proporção da população idosa. Juntas, essas variáveis conseguem explicar 23% da variação da proporção de internações por condições sensíveis à atenção primária nessa região. No entanto, assim como na Região Norte, o IDH-M é a variável com maior poder de explicação da proporção de internações por condições sensíveis à atenção primária na Região Sul. O aumento de uma unidade dessa variável provoca, em média, diminuição de 65,28 pontos na proporção de internações por condições sensíveis à atenção primária na Região Sul.
A análise empreendida permitiu identificar um discreto declínio na proporção de internações por condições sensíveis à atenção primária no Brasil, particularmente de 2007 a 2012. No início do período analisado – 1998 a 2006 – em que pesem a expansão da ESF e os esforços de mudança do modelo de atenção no SUS, não houve queda expressiva nesse indicador no conjunto do país. Outras variáveis que potencialmente poderiam influenciar as internações por condições sensíveis à atenção primária também apresentaram alterações entre 1998 e 2012, em escala nacional, como a situação socioeconômica da população, a oferta de médicos e de leitos hospitalares.
Os resultados iniciais sugeriram a relevância de investigar diversas variáveis que poderiam influenciar as internações por condições sensíveis à atenção primária, além da cobertura pela ESF, em distintos contextos, dada a heterogeneidade regional do país. Nesse sentido, o presente estudo procurou explorar possíveis associações entre indicadores socioeconômicos, demográficos, de oferta pública e privada selecionados e as internações por condições sensíveis à atenção primária, em municípios maiores que 50 mil habitantes, das diferentes regiões do Brasil, no ano de 2012.
No que concerne ao modelo de atenção primária, pesquisas anteriores 15,27,28,29 apontaram que a expansão da ESF no Brasil favoreceu avanços em diversos indicadores de saúde, tais como melhoria no acesso à assistência à saúde; no manejo de patologias crônicas; captação e acompanhamento de gestantes no pré-natal; melhorias quanto às taxas de aleitamento materno, queda na mortalidade infantil (observados outros indicadores de desenvolvimento) e na mortalidade por doenças cardiovasculares. Macinko et al. 23 também destacam que a rápida expansão da estratégia pode ter, de fato, resultado em melhora no diagnóstico, no tratamento e acompanhamento dos pacientes, com destaque para os portadores de doenças crônicas, causando redução da necessidade de internação e, consequentemente, redução da proporção de internações por condições sensíveis à atenção primária. Por outro lado, estudos semelhantes realizados em distintas localidades do país 11,12,23 ressaltam que a redução na proporção de internações por condições sensíveis à atenção primária não foi homogênea, variando segundo grupos de causas, regiões, estados e porte municipal.
O presente estudo revelou que fatores relacionados às condições socioeconômicas, demográficas, à oferta de serviços e de profissionais médicos estiveram associados à proporção de internações por condições sensíveis à atenção primária em municípios com mais de 50 mil habitantes, no ano de 2012, de forma diferenciada entre as regiões do país.
Dentre as variáveis investigadas que mostraram correlação negativa com as internações por condições sensíveis à atenção primária, destacaram-se o IDH-M e o total de médicos por mil habitantes. Tal achado é semelhante aos resultados de pesquisa anterior, realizada no Reino Unido, por Giuffrida et al. 30, que apontam as características socioeconômicas e os fatores relacionados à oferta de serviços, tais como número de leitos e médicos generalistas, como principais fatores que explicam a variação de determinadas causas de internações por condições sensíveis à atenção primária, como diabetes e asma. Estudo recente realizado na Região Sul do Brasil por Nedel 21 também apontou a relevância das condições socioeconômicas nesse tipo de análise, uma vez que a probabilidade de internação por condições sensíveis à atenção primária foi maior que o dobro em indivíduos com pior situação econômica. Para o autor, tal achado sugere um efeito compensador do SUS sobre a iniquidade social, ainda mais evidente nas regiões cobertas pela ESF.
No que diz respeito à oferta de profissionais médicos, cabe mencionar que a distribuição desigual desses trabalhadores, com concentração nas capitais e grandes centros do país, é um problema estrutural do sistema de saúde brasileiro. Vários estudos destacam a importância da distribuição equitativa de profissionais de saúde, com destaque para médicos e enfermeiros, em todas as regiões do país, para a melhoria de diferentes indicadores de saúde, tais como os relacionados à mortalidade infantil e materna 31,32. Nesse sentido, o presente estudo identificou uma associação entre uma maior disponibilidade de médicos por mil habitantes e a menor ocorrência de internações por condições sensíveis à atenção primária.
O problema de distribuição desigual de médicos tem sido enfrentado por meio de diferentes estratégias nas ultimas décadas, em geral de caráter fragmentado e temporário, tais como o Programa de Interiorização do Trabalho em Saúde (PITS), o Programa de Educação pelo Trabalho em Saúde (PET-Saúde) e o Programa de Valorização do Profissional da Atenção Básica (PROVAB). Cabe salientar que esse foi um dos distintos problemas que afloraram com a expansão da ESF no Brasil. Conforme assinalam Campos & Belisário 33, a carência de profissionais em termos quantitativos e qualitativos é um dos problemas mais graves evidenciados a partir da implantação da ESF. Além disso, o programa esbarrou em dificuldades de fixação dos médicos em diversas regiões e localidades do país, resultando em alta rotatividade desses profissionais, o que compromete a efetividade do modelo, pautado no vínculo entre profissionais e população atendida 34. Para Campos et al. 35, tal fenômeno é fruto de um círculo vicioso, composto por más condições de trabalho, indefinições políticas, insegurança e demanda excessiva, que reforçam uma clínica reduzida ao núcleo profissional, dificultam o vínculo e facilitam a rotatividade profissional.
Na tentativa de enfrentar esse problema, o Ministério da Saúde lançou, em 2013, o programa Mais Médicos, que gerou polêmica na sociedade civil e no meio acadêmico por envolver a contratação temporária de médicos estrangeiros, sem revalidação do diploma, entre as ações para diminuir a carência de médicos nas periferias dos grandes centros e cidades do interior. Em que pese a polêmica em torno do programa, o seu caráter recente e a ausência de estudos de avaliação de sua efetividade até o momento, os resultados da presente pesquisa corroboram a importância da alocação adequada de médicos em todas as regiões do país, para buscar uma atenção primária resolutiva.
Cabe mencionar ainda que os achados deste estudo sugerem que a presença do profissional de saúde se faz mais importante do que a disponibilidade de equipamentos de apoio diagnóstico na redução das internações por condições sensíveis à atenção primária. Vale ressaltar, entretanto, que a prática de uma atenção primária abrangente engloba não só profissionais capacitados, mas suporte material e institucional, que inclui condições de trabalho satisfatórias e acesso a uma rede de atenção à saúde estruturada e hierarquizada.
O fato de os resultados não terem apontado associação significativa entre a cobertura populacional estimada pela ESF nos municípios e a menor proporção de internações por condições sensíveis à saúde primária na maioria das regiões suscitou a reflexão sobre a implantação do programa em municípios de médio e grande porte e a efetividade do modelo de atenção. De acordo com Campos 36, para cumprir os preceitos expostos na política nacional de atenção primária, que orientam as ações de uma atenção primária abrangente e resolutiva, as equipes de atenção primária necessitam operar com três funções complementares: a clínica, a de saúde pública e o acolhimento (atendimento ao imprevisto e atenção à demanda). Segundo o autor, no Brasil, tem-se valorizado a saúde coletiva e subestimado as duas outras.
Outro aspecto investigado na pesquisa refere-se à proporção de beneficiários de planos de saúde. Apesar de sua expressão nos testes de correlação, tal variável não apresentou poder explicativo do desfecho em nenhuma região do país, quando foi aplicado o modelo de regressão linear. Tal achado possivelmente está relacionado às condições socioeconômicas, visto que os resultados sugerem alto poder explicativo e maior efeito da variável IDH-M sobre o desfecho.
Dentre as limitações do estudo, ressalte-se que foram incluídas somente as internações realizadas em unidades vinculadas ao SUS, excluindo-se, portanto, internações financiadas por meio de planos privados de saúde. Além disso, cabe destacar que foram avaliados somente os municípios com população acima de 50 mil habitantes, onde, em geral, a cobertura pela ESF é inferior aos demais municípios, fato, em parte, relacionado à existência de modelos concorrentes de APS e da atuação de seguimentos privados na assistência à saúde. Cabe mencionar ainda as dificuldades no acesso aos dados, bem como as características dos sistemas de informação utilizados, com destaque para o CNES, cujos dados sobre equipamentos só estão disponíveis a partir de 2005, e SIH-SUS, que não permite identificar casos de reinternações.
Em síntese, os resultados deste estudo sugerem que a redução das internações por condições sensíveis à atenção primária nas diferentes regiões do país está associada a diferentes fatores, com destaque para os relacionados às condições socioeconômicas e à oferta de serviços de saúde e de médicos. Tais achados contribuem para a reflexão crítica sobre as possibilidades e os limites da consolidação da ESF em grandes centros urbanos, bem como a necessidade de repensar as formas de organização da atenção primária nesses contextos específicos, incluindo análises sobre outros modelos.
Ressalta-se ainda que é importante a realização de novos estudos que incorporem períodos de análise mais longos ou que explorem, em maior detalhe, os fatores associados às internações por diferentes tipos de condições sensíveis à atenção primária, nos distintos cenários de configuração do sistema de saúde no país.
Não obstante os avanços alcançados a partir da expansão da ESF no Brasil, permanecem antigos desafios, tais como a distribuição mais adequada de médicos e outros profissionais de saúde no território nacional e a efetiva mudança do modelo de atenção, com melhoria da qualidade e da efetividade da atenção primária. Destacam-se ainda desafios que transcendem o setor saúde, como o investimento em infraestrutura e a redução das desigualdades sociais nas distintas regiões do país.