versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.37 no.2 São Paulo abr./jun. 2015
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20150026
A doença renal em estágio avançado (DREA) na infância tem apresentado incidência e prevalência crescentes na população pediátrica. Em 2008, a incidência mediana mundial de terapia renal substitutiva (TRS) em crianças e adolescentes de 0 a 19 anos foi, respectivamente, de 4 e 18 por milhão de população em idade relacionada, sendo que a prevalência variou de 18 a 100 por milhão da população idade relacionada. Segundo o censo de 2013 da Sociedade Brasileira de Nefrologia, estima-se em 100.000 o número de pacientes submetidos à diálise no Brasil, com 0,4% deles na faixa entre 1 a 12 anos.1,2
A DREA é marcada pela perda irreversível da função renal, caracterizada pelo declínio do Ritmo de Filtração Glomerular aos níveis abaixo de 29 ml/min/173 cm2 e o subsequente comprometimento da manutenção das funções regulatórias, excretórias e endócrinas. A etiologia na infância apresenta características ímpares quando comparada à dos adultos, tendo como base as causas congênitas, que incluem anomalias do sistema urinário, acrescido das nefropatias hereditárias, que respondem por dois terços de todos os casos. Outros aspectos, tais como hipertensão arterial, obesidade e baixo peso ao nascer também são tidos como potenciais fatores de risco para o desenvolvimento de algum grau da doença renal.1-6
O diagnóstico precoce e a abordagem terapêutica apropriada tornam-se essenciais para retardar a evolução da doença e, ao mesmo tempo, garantir a qualidade da sobrevida do paciente. Porém, deve-se considerar que crianças portadoras de DREA podem vivenciar todo esse processo com intenso sofrimento psíquico, que pode limitá-las quanto ao desenvolvimento de seus potenciais e favorecer a instabilidade emocional, níveis elevados de ansiedade, baixa autoestima e distúrbios comportamentais, com consequente efeito deletério na qualidade de vida (QV) dos acometidos e na dos seus cuidadores primários (CP).7-15
No âmbito da saúde, o tema QV ganhou destaque ao ser utilizado como ferramenta para avaliar os resultados dos tratamentos dispensados, o que fomentou o surgimento de um novo conceito, que é o de qualidade de vida relacionada à saúde (QVRS). Segundo Erling, QVRS, é "a percepção da saúde e do tratamento de acordo pelo ponto de vista do paciente", e se constitui em instrumento para avaliar a qualidade, a efetividade e a eficiência dos cuidados prestados de acordo com o impacto ocorrido.6,16-32
Em relação à criança, a QVRS é considerada a diferença entre as expectativas da criança e de seus familiares quanto ao tratamento - que variam de acordo com o indivíduo e com suas expectativas e experiências de saúde e de doença. A mensuração da QVRS tem-se tornado ferramenta ímpar de suporte para os profissionais de saúde lidarem com crianças portadoras de algum tipo de limitação.4,33-38
A escolha de instrumentos para mensurar a QVRS envolve a consideração de seu caráter multidimensional e de sua amplitude em avaliar a percepção do indivíduo quanto aos aspectos da QV. Esses instrumentos devem idealmente se adaptar à capacidade do entrevistado de entender e responder às perguntas e prover informações úteis que serão utilizadas em intervenções futuras, orientadas aos pacientes de acordo com sua percepção. Ressalta-se, portanto, que o objetivo destes instrumentos deve ser viabilizar a exteriorização das impressões do entrevistado em relação à sua doença.17,20,22,30
Os questionários Pediatric Quality of Life Inventory (Peds QL)®-Doença Renal em Estágio Avançado (DREA) - versão 3.0 - Relato das crianças/adolescentes e Relato dos pais foram desenvolvidos por Varni et al. para a avaliação da percepção de QVRS dos pacientes nos estágios 4 e 5 da DREA, segundo seus relatos e o dos seus pais. Esses instrumentos são capazes de mensurar a satisfação com relação ao tratamento, de forma a permitir o conhecimento das necessidades das crianças, segundo seus pontos de vista e os de seus CP. Para tanto, sua utilização na língua portuguesa deve ser precedida de um processo que envolve a tradução, a adaptação cultural e a validação, a fim de mensurar o grau de validade e de confiabilidade dos mesmos para a realidade brasileira.18
O objetivo deste artigo é apresentar os cálculos obtidos no processo de validação, para a língua portuguesa, da versão 3.0 do questionário Peds QL® -DREA, destinado à avaliação da QV de crianças e adolescentes portadores de DREA.
A presente pesquisa é uma continuidade no processo de tradução e adaptação linguística e cultural, para a língua portuguesa, da versão 3.0 dos questionários Peds QL®, destinados à avaliação da QVRS de crianças e adolescentes brasileiros portadores de DREA. O projeto principal foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), sob o número 0082/10. Para o processo de tradução, adaptação cultural e validação, obteve-se a permissão do MAPI Research Trust, responsável pela logística do uso do questionário original, no idioma inglês e nos demais disponíveis.
Foram incluídas crianças e adolescentes em seguimento na Unidade de Nefrologia do Instituto da Criança do HC-FMUSP, com idade entre 2 e 18 anos, portadores de DREA (estágio 4 ou 5) e o respectivo responsável. A aplicação dos questionários ocorreu no Ambulatório da Unidade de Nefrologia Pediátrica e na Unidade de Diálise. A aplicação dos questionários foi precedida de entrevista com o CP para explicação dos objetivos da pesquisa e, havendo interesse, foram realizados levantamentos de dados demográficos e clínicos do paciente, bem como de dados demográficos do cuidador entrevistado, além da obtenção da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Os questionários foram respondidos nos dias de consulta ambulatorial ou, para os pacientes em hemodiálise, durante as sessões na Unidade de Diálise, sendo que o pesquisador executante realizou a maior parte das aplicações/entrevistas diretas, estando presente, inclusive, quando o mesmo era respondido pelo participante (autoaplicação), a fim de dirimir quaisquer dificuldades encontradas na compreensão do instrumento.
O Peds QL®3.0 é composto de questionários específicos para as faixas etárias de 5 a 7, de 8 a 12 e 13 a 18 anos, com 34 questões agrupadas em sete domínios (Fadiga geral, Sobre minha doença, Problemas no tratamento, Interação com família e amigos, Preocupação, Percepção da aparência física e Comunicação) (Apêndice 1).18 Os questionários destinados ao relato dos pais apresentam as mesmas características, porém, há um questionário específico para crianças entre os 2 e 4 anos de idade, que se diferencia dos demais pela quantidade total de questões (13 questões), sendo agrupadas em quatro domínios (Fadiga geral, Sobre a doença renal, Problemas no tratamento e Preocupação) (Apêndice 2).18
As respostas dadas a cada questão são enumeradas de zero a quatro, sendo convertidas em valores entre 0 e 100, a saber 0 = 100, 1 = 75, 2 = 50, 3 = 25 e 4 = 0 escores. Os domínios com mais de 50% das perguntas sem respostas não são computados. Embora não haja um valor de corte, valores aproximados a 100 pontos são considerados positivos para QV.39
O tamanho amostral foi calculado com o uso do programa StatsToDo, utilizando o método de Alpha de Cronbach. As médias dos escores de cada domínio foram calculadas dividindo-se a somatória de acordo com o número de respostas dadas. O método de Alpha de Cronbach foi também utilizado para a comparação, em separado, das médias dos domínios e dos escores totais dos questionários.
A Tabela 1 apresenta os perfis demográficos e clínicos das crianças e adolescentes entrevistados (n = 24), segundo a faixa etária, sexo e tratamento aos quais eram submetidos, bem como de informações relevantes dos CP (n = 32) entrevistados.
Tabela 1 Distribuição dos perfis demográficos e clínicos das crianças e adolescentes entrevistad os (N = 24), segundo a faixa etária, sexo e tratamento, bem como de informações relevantes dos CP (N = 32) entrevistados, tais como sexo, grupo etário e escolaridade
Descrição | Frequência (%) |
---|---|
Sexo dos pacientes | |
Feminino | 14 |
Masculino | 18 |
Total | 32 (100) |
Grupo etário | |
2 a 4 anos | 08 |
5 a 7 anos | 03 |
8 a 12 anos | 05 |
13 a 18 anos | 16 |
Total | 32 (100) |
Tipo de tratamento | |
Medicamentoso exclusivo | 02 |
Hemodiálise | 24 |
Diálise peritoneal | 02 |
Transplante | 04 |
Total | 32 (100) |
Cuidador entrevistado | |
Pai | 02 |
Mãe | 29 |
Outro | 01 |
Total | 32 (100) |
Idade do cuidador entrevistado | |
Até 30 anos | 07 |
De 30 a 45 anos | 17 |
Acima de 45 anos | 08 |
Total | 32 (100) |
Escolaridade do CP | |
Analfabeto | 01 |
Ensino Fundamental Incompleto | 09 |
Ensino Fundamental Completo | 02 |
Ensino Médio Incompleto | 03 |
Ensino Médio Completo | 10 |
Ensino Superior Incompleto | 01 |
Ensino Superior Completo | 06 |
Total | 32 (100) |
Utilizou-se a versão definitiva obtida no processo de tradução dos questionários para as entrevistas.18 Nenhum dos pacientes ou CP convidados recusou-se a participar desta fase de validação do instrumento, sendo, inclusive, capazes de compreender e responder aos questionários. A aplicação de cada questionário durou cerca de cinco minutos. Em todos os questionários respondidos, o número de respostas em cada domínio foi superior a 50%.
A Tabela 2 apresenta os valores obtidos nos cálculos das médias e do alfa de Cronbach dos sete domínios, separadamente, de acordo com os relatos obtidos nas entrevistas, além do cálculo geral de todos os domínios dos relatos das crianças e dos pais para cada conjunto de questionários.
Tabela 2 Distribuição dos valores das médias e do alfa de cronbach de cada domínio e do conjunto dos questionários PEDS QL® - DREA - versão 3.0 - segundo os relatos da s crianças e dos pais
Relato das Crianças | Relato dos Pais | |||
---|---|---|---|---|
Domínio | (n = 24) | (n = 32) | ||
Média | Alfa | Média | Alfa | |
Fadiga geral | 73,35 | 0,55 | 90,23 | 0,81 |
Sobre a Minha Doença Renal | 59,55 | 0,39 | 74,78 | 0,50 |
Problemas com o Tratamento | 61,28 | 0,56 | 78,27 | 0,42 |
Interação com Família e Colegas | 56,25 | 0,52 | 71,01 | 0,63 |
Preocupação | 48,76 | 0,77 | 72,31 | 0,89 |
Percepção da Aparência Física | 62,78 | 0,63 | 79,28 | 0,63 |
Comunicação | 74,93 | 0,62 | 77,45 | 0,84 |
Todos os domínios | 62,22 | 0,81 | 72,57 | 0,71 |
Tendo em vista que os cálculos iniciais apresentaram alfa de Cronbach inferiores a 0,50 nos domínios Sobre a Minha Doença Renal e Problemas no Tratamento, segundo os relatos das Crianças e dos Pais, respectivamente, optou-se por recalculá-los, agrupando os pacientes por 3 grupos etários: menor de 7 anos, de 8 a 12 anos e 13 a 18 anos (Tabela 3).
Tabela 3 Distribuição dos valores do alfa de cronbach dos domínios sobre a minha doença renal e problemas com o tratamento, dos questionários peds ql® - drea - versão 3.0 - separados de acordo com os relatos das crianças e relato dos pais e de acordo com os grupos etários
Distribuição dos grupos etários | |||
---|---|---|---|
Relato Domínio | Menor do que 7 anos | 8 a 12 anos | 13 a 18 anos |
(n = 11) | (n = 5) | (n = 16) | |
Relato das crianças Sobre a Minha Doença Renal | -- | 0,47 | 0,65 |
Relato dos Pais Problemas com o Tratamento | 0,54 | 0,77 | 0,64 |
Os atuais questionários disponíveis para avaliação da QV de crianças brasileiras foram desenvolvidos, na sua totalidade, em outros países, especialmente nos de língua inglesa. O uso desses instrumentos requer cuidado quanto à sua validade e confiabilidade o que, em outras palavras, significa se certificar de que a consistência interna aponta correlação entre os itens a serem investigados e os resultados gerais obtidos para uma realidade social diferente da inicialmente planejada.17-19,30
Os processos de tradução e validação linguística e cultural, para a língua portuguesa, da versão 3.0 inglês, aplicação em grupo de pacientes e prova de leitura e finalização.18
Por se tratarem de instrumentos específicos destinados à investigação da DREA de um grupo de indivíduos que se encontra em diferentes fases de crescimento e desenvolvimento, foram necessárias análises estatísticas a fim de tentar mensurar a sensibilidade do instrumento à realidade brasileira. Para tanto, o método de alfa de Cronbach foi considerado o mais adequado, uma vez que se destina à avaliação da confiabilidade de questionários com as mesmas características que os utilizados na presente pesquisa, por meio da análise do perfil das respostas dadas pelos entrevistados.
Embora não haja um consenso acerca do valor de referência mais adequado para a interpretação do alfa de Cronbach, alguns autores consideram média adequada quando superior a 0,50, o que foi obtido em quase todas as análises realizadas, inclusive, nas análises do cômputo global dos questionários. Esses resultados sugerem a precisão do questionário original e ratificam a utilização das versões traduzidas e adaptadas.
Considera-se que a avaliação da QV de crianças com DREA ao longo do tratamento clínico seja essencial. A existência de questionários específicos, regionalmente validados, facilita este acompanhamento e permite a comparação de resultados entre serviços da mesma região e de regiões diferentes, norteando a adoção das medidas terapêuticas.
O presente trabalho apresenta o processo de validação de um instrumento de avaliação da QV de crianças/adolescentes com DREA, que, em nosso meio, mostrou-se válido, confiável e útil. Esperamos que a comunidade de profissionais de saúde especializados em Nefrologia Pediátrica no Brasil possa incorporá-lo ao uso rotineiro e que sua importância no refinamento do cuidado ao paciente pediátrico com DREA se comprove em nosso meio.