versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.24 no.8 Rio de Janeiro ago. 2019 Epub 05-Ago-2019
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018248.25212017
A tuberculose (TB) avançou o século XXI associada à miséria, pobreza e à epidemia do vírus da imunodeficiência humana (HIV), causador da síndrome da imunodeficiência adquirida (Aids)1 e, apesar dos inúmeros esforços no seu controle, a doença ainda representa um grande desafio para a saúde pública2. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2016, a TB foi uma das principais causas de mortalidade, com cerca de 1,4 milhões de óbitos, sendo 0,4 milhões resultantes da coinfecção TB//HIV/Aids3. Entre 2001 e 2011, em todo o mundo ocorreram 5,8 milhões de casos de TB e, desse total, 82% concentravam-se em 22 países, com o Brasil na 17ª posição4.
Estudos sobre o conhecimento da TB entre transgêneros são raros na literatura internacional e praticamente inexistentes no país. No entanto, os realizados com outras populações apontam a falta do conhecimento sobre a doença como uma das principais barreiras para percepção dos sintomas, diagnóstico precoce, adesão ao tratamento e cura5,6.
Em todo o mundo, transgêneros frequentemente vivenciam o estigma, discriminação e abuso ao longo do ciclo vital. Em maior situação de risco pela adoção de comportamentos desfavoráveis à saúde, ainda enfrentam dificuldades de acesso às informações e cuidados, evidenciando as iniquidades entre transgêneros e cisgêneros7.
No Brasil, a maior parte das travestis e trans (TTs) vive em condições sociais desfavoráveis, em razão da transgressão de gênero8. Excluídas do núcleo familiar e das escolas ainda muito jovens encontram na prostituição uma forma de sobrevivência9. Neste contexto, permeada pela violência, uso abusivo de álcool e drogas, muitas possuem passagem pelas prisões10 e albergues sociais, e outras vivem em situação de rua11, condições favoráveis à transmissão e adoecimento por TB e coinfecção por HIV12.
Assim, considerando-se os conceitos de vulnerabilidade individual, social e programática, propostos por Ayres et al.13, bem como a invisibilidade da população transgênera nos dados oficiais de saúde14 e sociodemográficos15, este estudo teve como objetivo avaliar o conhecimento, atitudes e práticas em relação à TB, entre travestis e mulheres transexuais na cidade de São Paulo.
Estudo transversal com amostra por conveniência (n = 124), realizado em São Paulo entre fevereiro e agosto de 2014, com indivíduos adultos (≥ 18 anos) do sexo biológico masculino, que referiram sua identidade sexual como travestis ou trans, por meio da aplicação do Knowledge, attitudes and practices questionnaire (KAP) adaptado16.
As entrevistas foram realizadas no Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e Transexuais (ASITT), Centro de Referência e Defesa da Diversidade da Cidade de São Paulo (CRDD) e no Largo do Arouche.
O ASITT está inserido no Centro de Referência e Treinamento DST/Aids e Hepatites Virais do Estado de São Paulo. Este espaço acolhe transgêneros e transexuais e oferece o acompanhamento do processo de transição de gênero e outras demandas específicas de saúde, com atendimento multidisciplinar17. O CRDD é um local destinado ao acolhimento e à inclusão social de pessoas intersexo, lésbicas, gays, homossexuais, bissexuais, travestis e transexuais (ILGBT) e está localizado na região central da cidade. O CRDD integra a rede socioassistencial do município. Realiza um conjunto integrado de iniciativas públicas e sociais por meio da oferta de serviços, benefícios, programas e projetos que visam a proteção de populações em situação de vulnerabilidade, exclusão e risco social17.
A região do centro histórico da cidade de São Paulo, especificamente nas quadras que envolvem a Praça da República, a Rua Vieira de Carvalho e o Largo do Arouche, por décadas sobrevive como um espaço de encontro do grupo homossexual de São Paulo. Essa movimentação é favorecida pela facilidade de mobilização urbana. A região é provida de terminais de ônibus urbanos e intermunicipais, estações de metrô e de estradas de ferro que facilitam o acesso de pessoas vindas de regiões distantes do centro da cidade que buscam por diversão noturna, serviços e encontros sexuais. Nos arredores há também quartéis, banheiros públicos, saunas e boates gays, bares, lan houses, cinemas, hotéis e pensões de alta rotatividade e motéis. Esta área é também conhecida pela prostituição feminina e masculina, devido à presença de diversos estabelecimentos destinados ao lazer noturno como boates, shows de sexo explícito e streaptease e pontos de encontro de garotos e garotas de programa e também de travestis18.
A pesquisa foi divulgada nas instituições envolvidas com a colaboração dos funcionários, e o convite para participação foi aberto a todas as TTs frequentadoras destes espaços. Nestes locais, as entrevistas ocorreram de forma privativa, individual e voluntária. No Largo do Arouche, as entrevistas decorreram do contato prévio do pesquisador no CRDD, com uma liderança que buscava preservativos para um grupo que não frequentava este espaço, possibilitando seu acesso e inclusão no estudo. Neste local as entrevistas também ocorreram de forma privativa, individualizada e voluntária.
O instrumento de coleta de dados (KAP - A guide to developing the knowledge, atitudes and practices surveys)16 foi traduzido e adaptado para a linguagem das populações pesquisadas e é composto por 45 questões fechadas e uma aberta. Todas as questões fechadas e suas alternativas eram lidas para a entrevistada e as respostas registradas. As respostas referentes ao conhecimento das formas preventivas e transmissíveis da TB foram categorizadas em corretas e incorretas, segundo as normas do Manual de recomendações para o controle da tuberculose no Brasil19. Para a questão aberta Qual a maior preocupação quando pensa em tuberculose, as respostas foram elaboradas a partir do que foi referido pelas entrevistadas, considerando-se apenas a primeira menção, e classificadas em: morte, transmissão, tratamento/internação/cura, adoecimento, nenhuma e outras.
As variáveis sociodemográficas consideradas neste estudo foram: faixa etária (18 a 29 anos, 30 a 39 anos, 40 a 49 anos e ≥ 50 anos), cor da pele (branca e não branca), escolaridade em anos de estudo (0 a 4, 5 a 8, 9 a 11 e ≥ 12 anos), passagem pelo sistema prisional (sim ou não), trabalhadora do sexo (sim ou não) e tempo de atuação nesta profissão em caso afirmativo, categorizado em < 1 ano, de 1 a 10 anos, de 11 a 20 anos e ≥ 21 anos.
O conhecimento informado sobre a TB, formas de transmissão e prevenção, atitudes, práticas e estigmas sobre a doença foram obtidos conforme descrito:
Conhecimento informado sobre TB, formas de transmissão e prevenção: recebeu informação sobre a TB (sim/não) e fontes de informação para os que receberam (folhetos/cartazes, TV/rádio/internet, palestras/aulas/profissional de saúde); opinião sobre a doença (muito grave, grave, não grave, não sabe); se tem cura (sim/não); como se cura a TB (com tratamento no posto de saúde/medicação com supervisão médica e repouso sem remédios, tratamento com ervas medicinais, orações, benzimentos, não sabe, outros, quais?); custo do tratamento (é de graça, é muito caro, é razoavelmente caro, é caro, não sabe), cujas respostas foram reclassificadas em: gratuito, caro (é muito caro; é razoavelmente caro; é caro) e não sabe; transmissão da TB, classificada em formas corretas (via aérea) e formas incorretas (todas as outras formas citadas e não sabe)19; prevenção da doença, também categorizada em formas corretas (alimentar-se bem, cobrir a boca ao tossir/espirrar, outras referentes à boa ventilação e iluminação e o uso de máscaras) e formas incorretas (demais respostas; não sabe)19; contágio/quem pode pegar TB (qualquer pessoa, outros, não sabe). Na categoria “outros” mencionaram-se: somente HIV+, crianças, idosos, gays, fumantes, quem bebe gelado, quem não se cuida, quem vive na sujeira e quem vive em ambientes fechados.
Atitudes, práticas, estigmas e informações sobre a TB: sentimento se acometido pela doença (medo, tristeza, nenhum sentimento, outros, não sabe). Na categoria “outros” referiram-se: surpresa, vergonha/constrangimento e desespero; falaria sobre a doença (sim/não); para quem falaria (médico, parceiro fixo, pais/ parentes, amigo próximo/colegas de trabalho); o que faria se pensasse ter os sintomas da TB (procuraria um posto de saúde e outros, como procurara de um pastor, uma farmácia e automedicação); em que momento procuraria um posto de saúde (falha na automedicação, sintomas por mais de 15 dias, assim que percebesse que os sintomas são da TB, não sabe); conhece alguém que teve TB (sim/não); qual o sentimento em relação às pessoas com TB (solidária e desejo de ajudar, solidária, mas distante, indiferença, medo da infecção, outros). Na categoria “outros” citaram-se: nenhum sentimento, nojo e rejeição; como um doente de TB é considerado pelas outras pessoas (muitos rejeitam, são solidários mas evitam contato, muitos ajudam, não sabe/outros). Na questão aberta: Qual a maior preocupação quando pensa em TB?, as respostas foram elaboradas a partir do que foi referido pelas entrevistadas, considerando-se apenas a primeira menção e, após a compilação das respostas, as categorias consideradas foram: morte, transmissão, tratamento/internação/cura, adoecimento, nenhuma e outras, como: parar de trabalhar, isolamento, preconceito e discriminação. Sobre a informação, as questões: Sente-se bem informado sobre a TB? e Deseja receber mais informações sobre a TB? foram categorizadas em sim/não; fontes de informação desejadas (jornais/revistas, rádio/TV/internet, palestras/conversas/profissionais de saúde, folhetos e outros). Na categoria “outros”, citaram-se: cartazes, telegramas, aulas, anúncios e outdoors. Também foram descritas as informações sobre a percepção da doença por meio da questão Você pode ter TB? (sim/não), assim como os motivos referidos pelas entrevistadas.Calcularam-se as frequências absolutas e relativas para o conjunto das entrevistadas e as comparações entre as distribuições percentuais dos grupos foram realizadas pelo teste Qui-quadrado de Pearson, teste exato de Fisher ou sua generalização, considerando-se um nível de significância de 5%. As análises foram realizadas no programa IBM Statistical Package for Social Science (SPSS) versão 16.0.
Foram excluídos deste estudo os indivíduos que não responderam todo o questionário, aqueles que apresentaram transtornos mentais, os não residentes na cidade de São Paulo, e também os que estavam sob o efeito de álcool/drogas impossibilitando a realização da entrevista.
A pesquisa foi previamente autorizada pela direção do CRDD e aprovada pelos comitês de ética da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Todas as participantes assinaram o TCLE e foi garantido o sigilo das informações.
Participaram desta pesquisa 124 indivíduos, dos quais 58 travestis (46,8%) e 66 mulheres transexuais (trans) (53,2%). No CRDD ocorreu a maioria das entrevistas (79,8%), seguido pelo ASITT com 11,3% e Largo do Arouche (8,9%).
Na Tabela 1 são apresentadas características sociodemográficas para o conjunto das entrevistadas de acordo com a identidade sexual. Quase metade (49,2%) encontrava-se com idade entre 18 e 29 anos, 62,1% eram não brancas, 41,1% referiu escolaridade ≤ 8 anos de estudo e 25,0% tinham passagem pelo sistema prisional. Cerca de 72,0% declararam-se trabalhadoras do sexo e, entre estas, quanto ao tempo na profissão, a maioria referiu ≤ 10 anos (53,9%). Observaram-se diferenças em relação à escolaridade (p = 0,008), passagem pelo sistema prisional (p < 0,001) e ocupação (p < 0,001). As travestis apresentaram menor escolaridade, referiram com maior frequência a passagem por prisões e, quanto à ocupação, 87,9% eram trabalhadoras do sexo. Observou-se que ao preencherem o TCLE, no campo “endereço”, muitas das entrevistadas referiram residir provisoriamente em albergues sociais ou viverem em condição de rua. Essa informação foi registrada e considerada nas análises (dados não apresentados em tabela).
Tabela 1 Distribuição das travestis e das mulheres transexuais, segundo variáveis sociodemográficas. São Paulo, 2014.
Variáveis/categorias | Total | Travestis (n = 58) | Transexuais (n = 66) | p | |||
---|---|---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | n | % | ||
Idade (em anos) | 0,269* | ||||||
18 a 29 | 61 | 49,2 | 30 | 51,7 | 31 | 47,0 | |
30 a 39 | 37 | 29,8 | 20 | 34,5 | 17 | 25,8 | |
40 a 49 | 21 | 17,0 | 6 | 10,3 | 15 | 22,7 | |
≥ 50 anos | 5 | 4,0 | 2 | 3,4 | 3 | 4,5 | |
Cor da pele | 0,462 | ||||||
Branca | 47 | 37,9 | 20 | 34,5 | 27 | 40,9 | |
Não branca | 77 | 62,1 | 38 | 65,5 | 39 | 59,1 | |
Escolaridade (anos de estudo) | 0,008* | ||||||
0 a 4 | 12 | 9,7 | 10 | 17,2 | 2 | 3,0 | |
5 a 8 | 39 | 31,4 | 21 | 36,2 | 18 | 27,3 | |
9 a 11 | 44 | 35,5 | 19 | 32,8 | 25 | 37,9 | |
≥12 anos | 29 | 23,4 | 8 | 13,8 | 21 | 31,8 | |
Passagem pelo sistema prisional | <0,001 | ||||||
Sim | 31 | 25,0 | 23 | 39,7 | 8 | 12,1 | |
Não | 93 | 75,0 | 35 | 60,3 | 58 | 87,9 | |
Trabalhadoras do sexo | <0,001 | ||||||
Sim | 89 | 71,8 | 51 | 87,9 | 38 | 57,6 | |
Não | 35 | 28,2 | 7 | 12,1 | 28 | 42,4 | |
Tempo de atuação na prostituição | 0,183* | ||||||
< 1ano | 5 | 5,6 | 3 | 5,9 | 2 | 5,3 | |
1 a 10 | 43 | 48,3 | 22 | 43,2 | 21 | 55,3 | |
11 a 20 | 29 | 32,6 | 21 | 41,1 | 8 | 21,1 | |
≥ 21 anos | 12 | 13,5 | 5 | 9,8 | 7 | 18,4 |
*Generalização do teste exato de Fisher.
Em relação ao conhecimento informado sobre a TB, formas de transmissão e prevenção, os dados da Tabela 2 mostram que para o conjunto das entrevistadas, a maioria recebeu informação sobre a doença e, entre estas, palestras/aulas/profissionais de saúde foram as fontes mais acessadas. Quanto à opinião sobre a TB, 88,7% a considerou grave/muito grave e 95,8% das entrevistadas referiu que a doença tem cura e, por meio de tratamento médico, 84,3%. Ressalta-se que pouco mais da metade tinha conhecimento sobre a gratuidade do tratamento (53,2%).
Tabela 2 Conhecimento informado sobre tuberculose, formas de transmissão e prevenção entre de travestis e mulheres transexuais. São Paulo, 2014.
Variáveis/categorias | Total | Travestis (n = 58) | Transexuais (n = 66) | p | |||
---|---|---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | n | % | ||
Recebeu informações sobre a TB | 0,169 | ||||||
Sim | 68 | 54,8 | 28 | 48,3 | 40 | 60,6 | |
Não | 56 | 45,2 | 30 | 51,7 | 26 | 39,4 | |
Fontes de informação acessadas1 | 0,874* | ||||||
Folhetos/cartazes | 17 | 20,7 | 6 | 18,8 | 11 | 22,0 | |
T.V/Rádio/Internet | 8 | 9,8 | 4 | 12,5 | 4 | 8,0 | |
Palestras/Aulas/profissional de saúde | 57 | 69,5 | 22 | 68,8 | 35 | 70,0 | |
Opinião sobre a TB | 0,866 | ||||||
Muito Grave | 54 | 43,5 | 27 | 46,6 | 27 | 40,9 | |
Grave | 56 | 45,2 | 25 | 43,1 | 31 | 47,0 | |
Não grave | 8 | 6,5 | 4 | 6,9 | 4 | 6,1 | |
Não sabe | 6 | 4,8 | 2 | 3,4 | 4 | 6,1 | |
A TB tem cura | 0,183** | ||||||
Sim | 115 | 95,8 | 52 | 89,6 | 63 | 95,4 | |
Não | 5 | 4,2 | 4 | 6,9 | 1 | 1,6 | |
Como cura TB | 0,140 | ||||||
Tratamento médico2 | 97 | 84,3 | 41 | 78,8 | 56 | 88,8 | |
Repouso sem remédios | 18 | 15,7 | 11 | 21,2 | 7 | 11,2 | |
Quanto custa o tratamento de TB |
0,077 | ||||||
Égratuito | 66 | 53,2 | 26 | 44,8 | 40 | 60,6 | |
Écaro3 | 21 | 16,9 | 15 | 19,0 | 6 | 4,5 | |
Não sabe | 37 | 29,8 | 17 | 29,3 | 20 | 30,3 | |
Como se transmite a TB | 0,884* | ||||||
Formas corretas | 46 | 37,1 | 21 | 36,2 | 25 | 37,9 | |
Formas incorretas | 43 | 34,7 | 21 | 36,2 | 22 | 33,3 | |
Não sabe | 35 | 28,2 | 16 | 27,6 | 19 | 28,8 | |
Como se previne a TB | 0,321* | ||||||
Formas corretas | 1 | 0,8 | 1 | 1,5 | - | - | |
Formas incorretas | 62 | 50,0 | 32 | 55,2 | 30 | 45,5 | |
Não sabe | 61 | 49,2 | 25 | 38,5 | 36 | 54,5 | |
Quem pode pegar TB | 0,310* | ||||||
Qualquer pessoa | 94 | 75,8 | 41 | 70,7 | 53 | 80,3 | |
Outros | 18 | 14,5 | 9 | 8,6 | 9 | 7,6 | |
Não sabe | 12 | 9,7 | 8 | 13,8 | 4 | 6,1 |
*Generalização do teste exato de Fisher.
**Teste exato de Fisher.
1Questão de múltipla escolha.
2Através de tratamento no posto de saúde/medicação com supervisão médica.
3Muito caro/razoavelmente caro/caro.
No que se refere ao conhecimento sobre as formas de transmissão, 34,7% mencionou formas incorretas (beijo, sexo, friagem, compartilhamento de cigarros e cachimbos, contato com a saliva, picada de mosquito, vaso sanitário, urina de rato, cumprimentar com as mãos, toque em maçanetas e compartilhamento de pratos e talheres) e 28,2% não soube informar. Quanto à prevenção da doença, 99,2% referiu formas incorretas (separar pratos e talheres, rezar, orar, benzer-se, evitar contato com o doente, não fumar, usar medicamentos, realização de exames, uso de máscaras, evitar friagem e ambientes fechados, manutenção de boa higiene, não uso de drogas ilícitas, uso preservativo e saneamento básico) ou não soube responder. A maioria das entrevistadas reconheceu que qualquer pessoa pode adquirir a doença (75,8%). Não houve diferença estatística entre os grupos para as variáveis consideradas (p > 0,05) (Tabela 2).
Também foi questionada a percepção das entrevistadas sobre a possibilidade de adquirir a doença e, em ambos os grupos o reconhecimento foi elevado (98,4% trans e 93,1% travestis). Os motivos referidos pelas que não consideravam essa possibilidade foram: uso de antirretrovirais, já ter tido TB e cuidado com a saúde (dados não informados na tabela). Quando indagadas por que poderiam contrair a TB, a resposta todos podem ter TB foi referida por 25,8% das trans e 20,7% das travestis. Entre as entrevistadas, 33,3% das trans e 25,9% das travestis mencionaram estou exposta. Outros motivos também foram apontados, tais como tabagismo, uso bebidas alcoólicas e drogas ilícitas, falta de cuidado consigo, friagem, contato com sujeira, convívio com moradores de rua e pneumonia prévia (dados não apresentados em tabela).
Na Tabela 3 são apresentadas as atitudes, práticas, estigmas e informações sobre tuberculose. Quanto ao sentimento em caso de adoecimento, para o conjunto das entrevistadas, a tristeza foi principalmente referida (32,3%). A maioria afirmou que falaria sobre a doença, com maior percentual observado entre as transexuais (p = 0,039). Destaca-se que 88,5% das entrevistadas, quando indagadas sobre o que fariam se apresentassem sintomas da TB, referiram a procura por um posto de saúde. Dentre as que responderam outras atitudes foram mencionadas a procura de um pastor, e procura de farmácia ou automedicação. Mais de 70,0% conhece alguém que foi acometido pela doença.
Tabela 3 Atitudes, práticas, estigmas e informações sobre tuberculose entre travestis e mulheres transexuais. São Paulo, 2014.
Variáveis/categorias | Total | Travestis (n = 58) |
Transexuais (n = 66) |
p | |||
---|---|---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | n | % | ||
O que sentiria se tivesse TB | 0,317* | ||||||
Medo | 30 | 26,6 | 14 | 20,1 | 19 | 28,8 | |
Tristeza | 40 | 32,3 | 24 | 41,4 | 16 | 24,2 | |
Outros | 15 | 12,1 | 7 | 12,1 | 8 | 12,1 | |
Nenhum sentimento | 25 | 20,2 | 8 | 13,8 | 17 | 25,8 | |
Não sabe | 11 | 8,9 | 5 | 8,6 | 6 | 9,1 | |
Falaria sobre a doença | 0,039** | ||||||
Sim | 89 | 73,6 | 36 | 64,3 | 53 | 81,5 | |
Não | 32 | 26,4 | 20 | 35,7 | 12 | 18,5 | |
Para quem falaria sobre a doença1 | 0,153* | ||||||
Médico | 12 | 13,3 | 7 | 12,1 | 5 | 7,6 | |
Parceiro fixo | 11 | 12,2 | 5 | 8,6 | 6 | 9,1 | |
Pais/parentes | 39 | 43,8 | 15 | 25,9 | 25 | 37,9 | |
Amigo próximo/colegas de trabalho | 27 | 30,0 | 10 | 25,0 | 17 | 25,8 | |
O que faria se pensasse ter os sintomas da TB | 0,256 | ||||||
Procuraria um posto de saúde | 108 | 88,5 | 49 | 84,5 | 59 | 92,2 | |
Outros | 14 | 11,5 | 9 | 15,5 | 5 | 7,8 | |
Quando procuraria um posto de saúde | 0,610* | ||||||
Automedicação falhar | 23 | 19,2 | 8 | 13,8 | 15 | 22,7 | |
Sintomas há mais de 15 dias | 7 | 5,8 | 4 | 6,9 | 3 | 4,5 | |
Assim que percebesse os sintomas | 84 | 70,0 | 40 | 69,0 | 44 | 66,7 | |
Não sabe | 6 | 5,0 | 4 | 6,9 | 2 | 3,0 | |
Conhece alguém que teve TB | 0,321* | ||||||
Sim | 86 | 70,5 | 43 | 74,1 | 43 | 65,2 | |
Não | 36 | 29,5 | 14 | 24,1 | 22 | 33,3 | |
Qual o sentimento em relação às pessoas com TB | 0,661* | ||||||
Solidária e desejo de ajudar | 72 | 58,1 | 31 | 53,4 | 41 | 62,1 | |
Solidária, mas distante | 31 | 25,0 | 17 | 29,3 | 14 | 21,2 | |
Indiferença | 9 | 7,3 | 3 | 5,2 | 6 | 9,1 | |
Medo da infecção | 7 | 5,6 | 4 | 6,9 | 3 | 4,5 | |
Outros | 5 | 4,0 | 3 | 5,2 | 2 | 3,0 | |
Como as outras pessoas consideram um doente de TB | 0,651* | ||||||
Muitos rejeitam | 85 | 68,5 | 42 | 72,4 | 43 | 65,2 | |
Solidários, mas evitam contato | 14 | 11,3 | 6 | 10,3 | 8 | 12,1 | |
Muitos ajudam | 13 | 10,5 | 4 | 6,9 | 9 | 13,6 | |
Não sabe/outros | 12 | 9,7 | 6 | 9,1 | 6 | 9,1 | |
Maior preocupação com a TB2 | 0,667* | ||||||
Morte | 22 | 17,7 | 9 | 15,5 | 13 | 19,7 | |
Transmissão | 24 | 19,4 | 12 | 20,7 | 12 | 18,2 | |
Tratamento/Internação/Cura | 21 | 16,9 | 13 | 22,4 | 8 | 12,1 | |
Adoecimento | 11 | 8,9 | 5 | 8,6 | 6 | 9,1 | |
Nenhuma | 22 | 17,7 | 9 | 15,5 | 13 | 19,7 | |
Outros | 24 | 19,4 | 10 | 17,2 | 14 | 21,2 | |
Sente-se bem informado sobre a TB | 0,063 | ||||||
Sim | 33 | 26,6 | 20 | 34,5 | 13 | 19,7 | |
Não | 91 | 73,4 | 38 | 65,5 | 53 | 80,3 | |
Deseja receber mais informações sobre a doença | 0,416 | ||||||
Sim | 108 | 87,1 | 49 | 84,5 | 59 | 89,4 | |
Não | 16 | 12,9 | 9 | 15,5 | 7 | 10,6 | |
Fontes de informação desejadas1 | 0,380* | ||||||
Jornais/revistas | 4 | 2,8 | 1 | 1,6 | 3 | 3,9 | |
Rádio/TV/Internet | 33 | 23,2 | 11 | 17,5 | 22 | 28,9 | |
Palestras/Conversas/Profissional de saúde | 38 | 26,8 | 21 | 33,3 | 17 | 22,4 | |
Folhetos | 21 | 14,8 | 10 | 17,5 | 11 | 14,5 | |
Outros | 46 | 32,4 | 20 | 40,8 | 26 | 44,1 |
*Generalização do teste exato de Fisher.
**Teste exato de Fisher.
1Questão de múltipla escolha.
2Questão aberta cujas categorias de resposta foram elaboradas a partir do que foi referido pelas entrevistadas, considerando-se apenas a primeira menção.
Solidariedade e desejo de ajudar foram os sentimentos referidos pela maioria em relação às pessoas com TB. A rejeição em relação às pessoas com TB foi a principal percepção das entrevistadas. Quanto à preocupação com a doença, tratamento/internação/cura e morte foram as principais referências observadas para travestis e trans, respectivamente. Destaca-se, para o conjunto, o relato a nenhuma preocupação por 17,7%. Entre as outras preocupações citadas foram mencionadas: impotência sexual, emagrecimento, cessação do tabagismo, abandono do trabalho, falta de medicamento, multirresistência da TB e sequelas. Em ambos os grupos a maioria não se considera bem informada sobre a TB, e 87,1% referiu o desejo de receber mais informações sobre a doença. Palestras/conversas/profissional de saúde, assim como rádio/TV/internet foram mencionados por 50,0% das entrevistadas (Tabela 3).
Na Figura 1 observam-se os principais sintomas referidos em relação à TB. Mais de um sintoma poderia ser mencionado pelas entrevistadas. Para ambos os grupos, o sintoma mais conhecido da TB foi a tosse seca. Outros sintomas associados foram a febre, cansaço, dor no peito, perda de peso, falta de ar e dor nas costas. Destaca-se que o principal sintoma da doença - tosse há mais de duas semanas - foi muito pouco citado em ambos os grupos (32,8% pelas travestis e 24,2% pelas trans). Sintomas não associados à TB como dor de estômago, dor no corpo, dor de garganta, rouquidão, cegueira, queda de cabelo, perda dos dentes, perda de apetite, Aids, pigarro, depressão, tontura e perda da locomoção foram muito referidos em ambos os grupos, denotando importante desconhecimento sobre os sintomas da doença.
As análises dos dados sociodemográficos deste estudo mostraram um perfil jovem, não branco e com baixa escolaridade, corroborando com outros estudos realizados com a mesma população9,11. Também se observaram diferenças entre os grupos em relação aos anos de estudo, passagem pelas prisões e ocupação. San Pedro e Oliveira20 referiram que os indicadores socioeconômicos poderiam aumentar a vulnerabilidade frente à TB ao refletir o acesso e desigualdade à informação, benefícios oriundos do conhecimento, bens de consumo nos serviços de saúde. O presente estudo sugere haver relação entre as características sociodemográficas e as disparidades na saúde entre transgêneros e cisgêneros quanto ao acesso de informações de saúde7. Sob este foco, os modestos conhecimentos sobre a TB observados podem estar relacionados às barreiras impostas a este subgrupo quanto aos cuidados de saúde, associadas ao desrespeito à identidade de gênero e a discriminação de práticas profissionais decorrentes da homofobia e transfobia21,22.
Observou-se que 30% das participantes viviam em situação de rua e nos albergues sociais (dados não informados nas tabelas). Em países desenvolvidos, embora a TB tenha regredido nos últimos anos, verifica-se alta proporção de novos casos entre pessoas em condição de rua e albergados23. No Brasil há poucas informações sobre TB nesta população24, mas se reconhece a presença de travestis e trans nesta condição11. Estes resultados reforçam a vulnerabilidade desta população frente à tuberculose, demandando mais estudos para subsidiar o planejamento de ações de educação em saúde também nos albergues, focadas no controle da TB.
Para o conjunto das entrevistadas, a maioria recebeu informações sobre a TB, principalmente por meio de palestras/aulas realizadas por profissionais de saúde. No âmbito do Sistema Único de Saúde estas são consideradas ações educativas em saúde (AES), delegadas às equipes de Estratégia de Saúde da Família (ESF), como uma das estratégias para o controle da TB25. As AES são geralmente realizadas pela equipe de enfermagem nas Unidades de Saúde, por meio de palestras para os usuários em sala de espera e para a formação de grupos educativos. Essas ações não são dirigidas especificamente ao controle da TB e, cabe destacar que também não são valorizadas no contexto assistencial26. Frequentemente os profissionais de saúde não reconhecem que sua atuação educativa está implícita no conjunto das ações e, por vezes, reproduzem informações como mera transmissão de conhecimento de forma vertical e impessoal27. Neste sentido, ressalta-se a importância da capacitação desses profissionais na disseminação de informações sobre a doença em populações mais vulneráveis.
Observou-se conhecimento sobre o risco de infecção por TB principalmente por se sentirem mais expostas à transmissão da doença. A compreensão sobre a cura por meio de tratamento no posto de saúde/medicação com supervisão médica foi elevada em ambos os grupos. No entanto, o conhecimento sobre a gratuidade do tratamento foi modesto, o que pode interferir no acesso e adesão ao tratamento. Ressalta-se a necessidade de se ampliar a divulgação dessa informação nos meios de comunicação.
Menos da metade das entrevistadas tinham conhecimento das formas corretas de transmissão da doença e a maior parte delas não sabia como preveni-la. Algumas acreditavam em práticas equivocadas de prevenção. Resultados semelhantes foram encontrados em outro estudo realizado com a população carcerária28, onde é reconhecida a presença de travestis nas unidades prisionais masculinas10, em que se observou baixo conhecimento clínico-epidemiológico da doença.
Em relação às atitudes, práticas, estigmas e informações sobre a TB, não houve diferença estatisticamente significativa entre os grupos, exceto para a menção da doença, com maior percentual entre as transexuais em relação às travestis. Destaca-se que, para o conjunto das entrevistadas, mais de 25% não falaria sobre a doença. Esta atitude pode estar relacionada ao receio da associação dos estigmas da TB com o do HIV/Aids, comprometendo financeiramente o exercício da prostituição. De acordo com Ascuntar et al.29 o estigma da TB pode influenciar na adesão ao tratamento. No caso do grupo entrevistado, os estigmas da homossexualidade e prostituição sobrepostos à tuberculose podem aumentar as dificuldades de acesso aos serviços de saúde, e influenciar na relação dos profissionais de saúde com o doente, comprometendo seu tratamento e cura.
A maior parte das TTs procuraria um serviço de saúde logo que percebesse os sinais e sintomas da TB, contudo esta atitude é questionável ao observarem-se os resultados deste estudo sobre o conhecimento dos sinais e sintomas da doença.
Entre as preocupações referidas pelas entrevistadas ao se pensar na TB, o tratamento/internação/cura, morte e adoecimento foram mencionados com maior frequência. Esses dados podem relacionar-se com as barreiras criadas pelo preconceito no acesso aos serviços de saúde e também ao afastamento do trabalho, implicando substancialmente na sua sobrevivência. Ressalta-se que cerca de 18% referiu nenhuma preocupação, o que pode refletir o desconhecimento sobre a doença, interferindo no diagnóstico precoce da TB.
Entre as limitações deve-se considerar que o estudo transversal apenas possibilita a avaliação de associações entre as variáveis. No entanto, é o melhor delineamento para caracterizar o perfil de uma população. A seleção dos participantes foi por conveniência, portanto, os achados do estudo não podem representar o conjunto de travestis e transexuais que frequentavam os espaços ou residiam no município. Além disso, o pequeno tamanho da amostra pode ter restringido o poder do estudo para identificar diferenças entre os grupos. O uso do instrumento em relação às atitudes tem sido criticado quanto às opiniões e sentimentos pela obtenção de respostas tendenciosas (que o entrevistado acredita serem corretas, aceitas ou apreciadas)30, podendo ter havido menor validade da informação quanto às questões: Qual o sentimento que você tem sobre as pessoas doentes de TB? e Como um doente de TB é considerado pelas outras pessoas?. Launiala31 reconhece a utilidade do instrumento para a coleta de informações gerais sobre questões de saúde pública, relacionadas ao tratamento e prevenção, mas quanto ao conhecimento, atitudes e práticas, considerando a singularidade do contexto em que ocorreu a pesquisa, assim como o perfil das entrevistadas (travestis e mulheres transexuais), o uso de métodos quantitativos e qualitativos seria mais apropriado para mensurar os sentimentos e atitudes das entrevistadas. A despeito dessas limitações, os resultados apresentados caracterizaram um subgrupo para o qual poucos dados estão disponíveis.
Para uma amostra de travestis e mulheres transexuais da cidade de São Paulo, os conhecimentos, atitudes e práticas sobre a TB mostraram-se modestos e influenciam suas atitudes e práticas sobre a doença. Compreende-se que as ações de educação em saúde focadas no controle da TB não têm atingido seus objetivos nesta população demandando maiores esforços. No âmbito epidemiológico, destaca-se a importância da prevenção primária. A estratificação da população de acordo com o risco possibilita maior foco nos subgrupos prioritários para que, por meio de ações educativas (conhecimento) que também considerem os fatores socioeconômicos e o contexto em que estão inseridas32, possam de fato promover a adoção de práticas preventivas específicas para a TB.
Os resultados deste estudo permitiram verificar um modesto conhecimento sobre a TB entre as travestis e mulheres transexuais entrevistadas na cidade de São Paulo, permeado por equívocos associados aos sintomas da doença, suas formas de prevenção e transmissão.
Considerando-se as condições de vida e saúde deste subgrupo específico, agravadas pela sobreposição dos estigmas da TB, HIV/Aids, homossexualidade e prostituição, recomenda-se ao Programa Nacional de Controle da Tuberculose que inclua o tema gênero como temática nas capacitações e planejamento de ações educativas em saúde. Estas ações podem reduzir o preconceito e discriminação nas Unidades de Saúde, com reflexos na ampliação do acesso deste subgrupo à informação e serviços de saúde, favorecendo o diagnóstico precoce, adesão ao tratamento e cura da TB.