versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.23 no.6 Rio de Janeiro jun. 2018
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018236.04702018
A promulgação da Constituição de 1988 representou um importante pacto em torno de um projeto de nação de longo prazo, compromissos pautados na cidadania e na dignidade humana como fundamentos do Estado Democrático de Direito (Art. 1º) e entre seus objetivos fundamentais uma sociedade justa e solidaria, em que a garantia do desenvolvimento nacional estava lado a lado da erradicação da pobreza e redução das desigualdades sociais e regionais, visando a promoção do bem de todos (Art.3º)1.
Nessa perspectiva, como fundamentos de nossa democracia e acoplado a estes compromissos, destacamos o direito à saúde (Art. 196) e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e considerado essencial à sadia qualidade de vida (Art. 225). O primeiro integra um conjunto de direitos sociais, que envolve o direito à alimentação, ao trabalho, à moradia, ao transporte e à assistência aos desamparados, e está na base da estruturação do Sistema Único de Saúde (SUS), não só por garantir o acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde para a promoção, proteção e recuperação da saúde, mas também por estabelecer que as políticas sociais e econômicas tivessem como objetivo reduzir o risco de doenças e outros agravos. O segundo é apresentado e tratado como um bem de uso comum que deveria ser preservado para as gerações presentes e futuras1. Ambos se relacionam diretamente às dimensões da proteção social e da sustentabilidade ambiental, que estão na base dos processos de determinação socioambiental da saúde.
As conquistas desses direitos representaram importantes avanços que combinados deveriam fundamentar o pacto constitucional de um modelo de desenvolvimento socioeconômico orientado para: a redução de risco de doenças e agravos e um meio ambiente ecologicamente equilibrado, não só como suporte à vida, mas à qualidade de vida para as gerações presentes e futuras.
No entanto, se nossa Constituição é um espelho de uma história de esperanças e de lutas sociais, devemos considerar também que as ... constituições escritas nos momentos de viradas históricas (e quase sempre o são) encarnam e expressam sentimentos morais, projetos políticos e ambições de justiça, mas expressam também relações de poder. Muitos constituintes do período nos lembram a magnitude dos projetos e das ambições políticas democráticas que não conseguiram vencer naquele momento as forças arcaicas e autoritárias que se faziam presentes no seio da Assembleia Constituinte2. Embora as forças políticas mais conservadoras e representantes do poder econômico tivessem maioria na Assembleia Constituinte e os partidos de esquerda menos de 9% das cadeiras, coalizações envolvendo ONGs, movimentos sociais e parlamentares conseguiram mobilizar diferentes atores de modo a produzir apoio às frentes parlamentares como as da saúde e à verde, de modo a inscrever os direitos à saúde e ao meio ambiente na Constituição3,4.
Tivemos avanços que significaram conquistas inscrevendo estes direitos ao lado de limites para mudanças estruturais na dimensão econômica e do poder político relacionado à mesma, com implicações diretas nos processos de determinação socioambiental da saúde. O período de democratização do país representou também o fim do padrão de desenvolvimento socioeconômico iniciado a partir da década de 30. Foi marcado por conflitos entre a reformulação do modelo desenvolvimentista ou adesão ao modelo neoliberal associado ao processo de globalização5.
No capitalismo, a lógica do mercado, da propriedade privada e da acumulação vêm tornando a dimensão econômica cada vez mais insulada das outras dimensões da sociedade. Desse modo, as indefinições, disputas e conflitos sobre o modelo de desenvolvimento socioeconômico nos 30 anos de nossa Constituição e do SUS foram marcados por este insulamento, constituindo-se o que Bercovici6 denomina de estado de exceção econômico, com obstáculos à plena realização dos direitos pactuados na Constituição de 19885,6. O resultado é um desenvolvimento socioeconômico desigual e heterogêneo, combinando impactos positivos e negativos sobrepostos em uma gama diversificada de novos e velhos riscos ambientais para a Saúde Coletiva (SC).
O objetivo deste artigo é situar as conquistas e também os limites e obstáculos na agenda de saúde e ambiente expressos nestes 30 anos do SUS. As conquistas são situadas a partir da ampliação dos espaços institucionais de participação da sociedade e institucionalização no SUS dos temas relacionados aos riscos ambientais. Os limites e obstáculos são situados a partir da relação entre desenvolvimento e padrões de riscos ambientais.
Nos últimos 30 anos tiveram grande importância a ampliação dos espaços institucionais de participação da sociedade através das Conferências Nacionais (CN), tratando de temas relacionados aos determinantes e condicionantes da saúde, bem como de institucionalização das estruturas e ações relacionados aos riscos ambientais no âmbito do SUS.
As Conferências Nacionais (CN) tiveram início em 1941 e constituíram-se como espaços institucionais participativos no intuito de promover o diálogo entre os diversos atores governamentais e não governamentais dos níveis federal, estadual e municipal, para a construção de uma agenda comum entre Estado e Sociedade, a partir da convocação do governo federal7,8. De 1941 a 2017 foram realizadas 146 CN, com 95% (n = 139) executadas a partir do processo de democratização.
Desde 1986 observamos uma ampliação da participação social, com as CN constituindo oportunidade de inclusão de temas e demandas sociais na pauta governamental, tendo a SC exercido importante papel neste processo. No Quadro 1 observa-se que durante os governos José Sarney e Fernando Collor, todas as CN foram de saúde. No mesmo ano da 8ª CN de Saúde, outras três envolveram a SC com a mobilização de grupos sociais organizados e temas de grande importância para a conformação de um país menos desigual (trabalhadores, mulheres e indígenas). Até o segundo governo FHC, das 24 CN realizadas, 19 (79%) foram no campo da SC.
Quadro 1 Conferências Nacionais por período de governo, de 1986 a 2017.
Período | Ano | Conferência |
---|---|---|
Governo Sarney (1985-1990) | 1986 | 1ª Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde |
8ª Saúde | ||
1ª Saúde Bucal | ||
1ª Saúde da Mulher | ||
1ª Saúde do Trabalhador | ||
1ª Saúde Indígena | ||
1987 | 1ª Saúde Mental | |
Governo Collor (1990 a 1992) | 1992 | 9ª Saúde |
2ª Saúde Mental | ||
Governo Itamar (1992-1994) | 1993 | 2ª Saúde Bucal |
2ª Saúde Indígena | ||
1994 | 1ª Ciência, Tecnologia e Inovação | |
1ª Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde | ||
2ª Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde | ||
2ª Saúde do Trabalhador | ||
1ª Segurança Alimentar e Nutricional | ||
Governo Fernando Henrique Cardoso (1995-1998) | 1995 | 1ª Assistência Social |
1996 | 10ª Saúde | |
1997 | 2ª Assistência Social | |
Governo Fernando Henrique Cardoso (1999-2002) | 2000 | 11ª Saúde |
2001 | 3ª Assistência Social | |
3ª Saúde Indígena | ||
3ª Saúde Mental | ||
1ª Vigilância Sanitária | ||
Governo Lula (2003-2006) | 2003 | 1ª Aquicultura e Pesca |
4ª Assistência Social | ||
1ª Cidades | ||
5ª Direitos da Criança e do Adolescente | ||
8ª Direitos Humanos | ||
1ª Infanto-Juvenil pelo Meio Ambiente | ||
1ª Medicamentos e Assistência Farmacêutica | ||
1ª Meio Ambiente | ||
12ª Saúde | ||
2004 | 1ª Arranjos Produtivos Locais | |
2ª Ciência, Tecnologia e Inovação | ||
2ª Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde | ||
9ª Direitos Humanos | ||
1ª Esporte | ||
1ª Políticas para as Mulheres | ||
3ª Saúde Bucal | ||
2ª Segurança Alimentar e Nutricional | ||
2005 | 2ª Aquicultura e Pesca | |
2ª Arranjos Produtivos Locais | ||
5ª Assistência Social | ||
2ª Cidades | ||
3ª Ciência, Tecnologia e Inovação | ||
3ª Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde | ||
1ª Cultura | ||
6ª Direitos da Criança e do Adolescente | ||
2ª Meio Ambiente | ||
1ª Promoção da Igualdade Racial | ||
3ª Saúde do Trabalhador | ||
2006 | 1ª Direitos da Pessoa com Deficiência | |
1ª Direitos da Pessoa Idosa | ||
10ª Direitos Humanos | ||
1ª Economia Solidária | ||
1ª Educação Profissional e Tecnológica | ||
2ª Esporte | ||
3ª Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde | ||
2ª Infanto-Juvenil pelo Meio Ambiente | ||
1ª Povos Indígenas | ||
4ª Saúde Indígena | ||
Governo Lula (2007-2010) | 2007 | 3ª Arranjos Produtivos Locais |
6ª Assistência Social | ||
3ª Cidades | ||
7ª Direitos da Criança e do Adolescente | ||
2ª Políticas para as Mulheres | ||
13ª Saúde | ||
3ª Segurança Alimentar e Nutricional | ||
2008 | 1ª Aprendizagem Profissional | |
1ª Comunidades Brasileiras no Exterior | ||
1ª Desenvolvimento Rural Sustentável | ||
2ª Direitos da Pessoa com Deficiência | ||
11ª Direitos Humanos | ||
1ª Educação Básica | ||
3ª Meio Ambiente | ||
1ª Políticas Públicas de Juventude | ||
1ª Políticas Públicas e Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais – LGBT | ||
2009 | 3ª Aquicultura e Pesca | |
4ª Arranjos Produtivos Locais | ||
7ª Assistência Social | ||
1ª Comunicação | ||
2ª Comunidades Brasileiras no Exterior | ||
8ª Direitos da Criança e do Adolescente | ||
2ª Direitos da Pessoa Idosa | ||
1ª Educação Escolar Indígena | ||
3ª Infanto-Juvenil pelo Meio Ambiente | ||
2ª Promoção da Igualdade Racial | ||
1ª Recursos Humanos da Administração Pública Federal | ||
1ª Saúde Ambiental | ||
1ª Segurança Pública | ||
2010 | 4ª Cidades | |
4ª Ciência, Tecnologia e Inovação | ||
4ª Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde | ||
3ª Comunidades Brasileiras no Exterior | ||
2ª Cultura | ||
1ª Defesa Civil e Assistência Humanitária | ||
2ª Economia Solidária | ||
1ª Educação | ||
4ª Saúde Mental | ||
Governo Dilma (2011 a 2014) | 2011 | 5ª Arranjos Produtivos Locais |
8ª Assistência Social | ||
3ª Direitos da Pessoa Idosa | ||
3ª Políticas para as Mulheres | ||
2ª Políticas Públicas de Juventude | ||
2ª Políticas Públicas e Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais – LGBT | ||
14ª Saúde | ||
4ª Segurança Alimentar e Nutricional | ||
2012 | 9ª Direitos da Criança e do Adolescente | |
1ª Emprego e Trabalho Decente | ||
1ª Transparência e Controle Social | ||
2013 | 4ª Aquicultura e Pesca | |
6ª Arranjos Produtivos Locais | ||
9ª Assistência Social | ||
1ª Assistência Técnica e Extensão Rural | ||
5ª Cidades | ||
4ª Comunidades Brasileiras no Exterior | ||
3ª Cultura | ||
1ª Desenvolvimento Regional | ||
2ª Desenvolvimento Rural Sustentável | ||
4ª Infanto-Juvenil pelo Meio Ambiente | ||
4ª Meio Ambiente | ||
3ª Promoção da Igualdade Racial | ||
5ª Saúde Indígena | ||
2014 | 2ª Defesa Civil e Assistência Humanitária | |
2ª Educação | ||
1ª Migrações e Refúgio | ||
Governo Dilma (2015 a 2016) | 2015 | 7ª Arranjos Produtivos Locais |
10ª Assistência Social | ||
3ª Políticas Públicas de Juventude | ||
15ª Saúde | ||
4ª Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora | ||
5ª Segurança Alimentar e Nutricional | ||
2016 | 4ª Políticas para as Mulheres | |
3ª Políticas Públicas e Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais – LGBT | ||
Governo Temer (2016 a 2017) | 2017 | 8ª Arranjos Produtivos Locais |
11ª Assistência Social | ||
1ª Comunicação em Saúde | ||
2ª Saúde da Mulher |
Fonte: Elaborado pelos autores.
Ao analisar a Figura 1 e o Quadro 1, chama a atenção a importância que a SC teve no processo de democratização e cidadania no país, indo para além do SUS e funcionando como uma caixa de ressonância das demandas de participação da sociedade para inclusão na pauta governamental de temas associados aos direitos sociais e ambientais relacionados aos compromissos constitucionais.
Somente no governo Itamar Franco tivemos CN sobre outros temas para além da saúde, sendo realizadas em 1994 as de CT&I (com uma específica sobre saúde) e Segurança Alimentar e Nutricional (SAN). Importante observar que a CN-SAN foi a primeira que se relacionava aos direitos sociais sem estar diretamente vinculada à SC, mas com forte presença de atores deste campo. Além disso, teve como antecedentes dois fatos importantes: o Mapa da Fome com 32 milhões de brasileiros vivendo abaixo da linha da pobreza e a criação do movimento Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e pela Vida.
No governo FHC, das oito CN realizadas, cinco foram relacionadas à Saúde e as outras três à Assistência Social (AS), sendo duas destas realizadas ainda no seu primeiro governo e sobre forte influência do Mapa da Fome e da Ação da Cidadania. Tanto que logo no início de 1995, no mesmo ano da 1aCNAS, foi criado o Programa Comunidade Solidária. Se a garantia do direito à saúde já vinha sendo amplamente discutida através de inúmeras CN, só sete anos após a Constituição o direito à uma sobrevivência digna em situações de extremas carências foi amplamente discutida com participação da sociedade.
A partir de 2003, no governo Lula, amplia-se o processo de convocação até então restrito aos decretos presidenciais, incluindo portarias ministeriais ou interministeriais e resoluções de conselhos, além de ter ampliada a sua lógica de organização e participação, incluindo conferências setoriais, livres e virtuais9. Nesse processo destacam-se três resultados importantes.
Primeiro, o aumento do número de CN. Conforme demonstrado na Figura 1, das 139 CN realizadas desde 1986, 74% (n = 103) se concentraram no período entre 2003 e 2014 (governos Lula e Dilma). Segundo, a ampliação dos participantes. Estima-se que entre 2002 e 2010, até 6,5% da população adulta do país tenha participado das CN9. Terceiro, a ampliação e diversificação de temas relacionados aos direitos sociais e das minorias, e também determinantes e condicionantes da saúde presentes na Lei 8080/90 (Quadro 1), como as CN envolvendo alimentação, moradia e saneamento, meio ambiente, educação e trabalho.
Nesse processo, se por um lado podemos constatar na Figura 1 que as CN diretamente relacionadas à SC tenham diminuído proporcionalmente em relação ao total a partir de 2003, os temas da saúde foram não só se tornando presentes nas CN relacionadas aos direitos sociais, humanos e relacionados às minorias, mas também nas que envolveram discussões e proposições relacionadas aos processos de determinação socioambiental da saúde, principalmente as sobre cidades (com foco nos riscos ambientais à saúde no nível domiciliar e relacionados à urbanização, moradias e saneamento) e meio ambiente (com foco nos riscos ambientais relacionados às atividades de produção e poluição industrial e agrícola, afetando ar, solo, águas e alimento, incluindo as mudanças climáticas em 2008).
As CN se constituíram em importantes fóruns de debates e caixas de ressonância dos anseios da sociedade em combinar um modelo de desenvolvimento orientado para a saúde, qualidade de vida e um ambiente ecologicamente equilibrado, com justiça social e redução das desigualdades.
As CN foram importantes espaços de participação e proposição de políticas públicas relacionadas aos riscos ambientais à saúde, que foram se institucionalizando através de leis, decretos, portarias, instruções normativas e normas operacionais. Se, ao longo do século 20 as respostas sociais da saúde aos riscos ambientais ficaram restritas ao saneamento e ao controle de vetores, a SC contribuiu não só para resgatar as lutas sociais da saúde inauguradas no século 19, mas também atualizar as respostas aos novos contextos sociais e ambientais que se colocavam a partir dos anos 80, combinando desde temas relacionados à poluição e degradação dos ecossistemas e seus novos riscos, aos relacionados ao mundo do trabalho envolvendo reestruturação produtiva, recessão, desemprego, informalidade e precarização, com impactos nos acidentes e doenças.
A 1ª CN Saúde do Trabalhador ocorre no mesmo ano da 8ª CN Saúde, antecedendo a criação do SUS. Refletiu a importância dos trabalhadores organizados no processo de democratização e possibilitou inscrever na Constituição de 1988 as ações em saúde do trabalhador como uma de suas atribuições do SUS, ao lado da garantia de acesso universal a todos os trabalhadores, da economia formal e informal.
Nos anos 90, na Lei 8080/90, a saúde do trabalhador é definida como campo de atuação do SUS ao mesmo tempo que o trabalho e o meio ambiente são considerados determinantes e condicionantes da saúde. A partir de 1996 este processo ganha impulso e densidade, ampliando a estruturação e escopo das ações (Quadro 2).
Quadro 2 Linha do tempo de fatos e marcos legais em saúde do trabalhador e saúde ambiental.
Período | Ano | Fato | Aspectos relevantes |
---|---|---|---|
Governo Sarney (1985-1990) | 1986 | 1ª Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador | Promove a discussão de estudos e propostas em relação à problemática da saúde dos trabalhadores: “Novas alternativas de atenção à saúde dos trabalhadores” e “política nacional de saúde do trabalhador”. |
Governo Collor (1990 a 1992) | 1990 | Lei 8.080, de 19 de setembro. | Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Define a Saúde do Trabalhador como campo de atuação do SUS e estabelece o meio ambiente e o trabalho entre os fatores determinantes e condicionantes da saúde além de conferir à saúde pública a promoção de ações para garantir às pessoas e à coletividade condições de bem-estar físico, mental e social. |
Governo Itamar (1992-1994) | 1994 | 2ª Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador | Reflexão, avaliação critica e definição de estratégias que venham a garantir a construção da política nacional de saúde do trabalhador, na perspectiva de mudanças nas condições de trabalho e de vida dos trabalhadores. |
Governo FHC (1995-1998) | 1995 | Plano Nacional de Saúde e Ambiente no Desenvolvimento Sustentável | Diretrizes para Implementação – aborda as inter-relações entre Saúde e Ambiente, no contexto do desenvolvimento sustentável, elaborado pelo Ministério da Saúde, resultado de um processo de trabalho com a participação do Poder Executivo e da sociedade civil. |
1996 | NOB-SUS 01 | Inclui a saúde do trabalhador como campo de atuação da atenção à saúde. | |
1998 | Portaria n.º 3.120, de 1º de Julho | Aprova a Instrução Normativa de Vigilância em Saúde do Trabalhador no SUS. | |
Instrução Normativade vigilância em Saúde do Trabalhador | Define procedimentos básicos para o desenvolvimento das ações correspondentes. | ||
Portaria nº 3.908, de 30 de outubro | Estabelece procedimentos para orientar e instrumentalizar as ações e serviços de saúde do trabalhador no Sistema Único de Saúde (SUS) e apresenta Norma Operacional de Saúde do Trabalhador para definir as atribuições e responsabilidades para orientar e instrumentalizar as ações de saúde do trabalhador urbano e do rural, consideradas as diferenças entre homens e mulheres, a ser desenvolvidas pelas Secretarias de Saúde dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. | ||
Atenção Primária Ambiental | Incentivo e orientação da OPAS para a implantação da estratégia da Atenção Primária Ambiental, visando à estruturação de instrumentos de saúde e ambiente, considerando as estratégias da Agenda 21, os conceitos de desenvolvimento sustentável, dos espaços, ambientes e cidades saudáveis. | ||
1998-1999 | Incorporação da vigilância ambiental no campo das políticas públicas de saúde | Estruturação de uma área de vigilância ambiental em saúde na antiga Funasa, envolvendo as temáticas de saúde e ambiente. | |
Governo FHC (1999-2002) | 1999 | Portaria nº 1.399, de 15 de dezembro | Regulamenta a NOB SUS 01/96 nas competências das três esferas de gestão do SUS na área de epidemiologia e controle de doenças e vigilância ambiental em saúde, dentre outras. |
ProjetoVigisus | Projeto de Estruturação da Vigilância em Saúde do Sistema Único de Saúde (Vigisus) – acordo entre a Funasa e o Banco Mundial para implementar iniciar a estruturação da saúde ambiental, possibilitando a incorporação do conjunto de fatores ambientais, decorrentes da atividade humana ou da natureza, que deverão ser monitorados. | ||
2000 | Decreto nº 3.450, de 9 de maio | Altera a estrutura da Fundação Nacional de Saúde e inclui dentre suas atribuições a gestão do Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica e Ambiental em Saúde. | |
Portaria FUNASA nº 410, de 10 de agosto | Aprova o Regimento Interno da FUNASA estabelecendo competências da Coordenação Geral de Vigilância Ambiental em Saúde (CGVAM). | ||
2001 | Instrução Normativa n.º 01, de 25 de setembro | Funasa regulamenta o Sistema Nacional de Vigilância Ambiental em Saúde (SINVAS) e as competências da União, estados, municípios e Distrito Federal, na área de vigilância ambiental em saúde. | |
2002 | Portaria nº 1.679, de 20 de setembro | Instituiu a Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador – RENAST. | |
Governo Lula (2003-2006) | 2003 | Lei n° 10.683, de 28 de maio | Estabelece como responsabilidade do Ministério da Saúde de as ações de saúde ambiental e ações de promoção, proteção e recuperação da saúde individual e coletiva, inclusive a dos trabalhadores e dos índios. |
Decreto nº 4.726, de 9 de junho | Reestrutura o Ministério da Saúde criando a Secretaria de Vigilância em Saúde que fica com a competência da gestão do Sistema Nacional de Vigilância em Saúde do qual faz parte o Subsistema Nacional de Vigilância em Saúde Ambiental (SINVSA). | ||
2004 | Portaria nº 777, de 28 de abril de 2004 | Estabelece os procedimentos técnicos para a notificação compulsória de agravos à Saúde do Trabalhador em rede de serviços sentinela específica, no Sistema Único de Saúde – SUS. | |
2005 | Instrução Normativa n° 01, de 7 de março | Ministério da Saúde regulamenta as competências da União, estados, municípios e Distrito Federal na área de vigilância em saúde ambiental e estabelece como áreas de atuação do SINVSA: água para consumo humano; ar; solo; contaminantes ambientais e substâncias químicas; desastres naturais; acidentes com produtos perigosos; fatores físicos; e ambiente de trabalho. Inclui-se ainda os procedimentos de vigilância epidemiológica das doenças e agravos decorrentes da exposição humana a agrotóxicos, benzeno, chumbo, amianto e mercúrio. | |
Portaria n.º 1.125 de 6 de julho | Dispõe sobre os propósitos da política de saúde do trabalhador para o SUS que compreende a compreendem a atenção integral à saúde, a articulação intra e intersetorial, a estruturação da rede de informações em Saúde do Trabalhador, o apoio a estudos e pesquisas, a capacitação de recursos humanos e a participação da comunidade na gestão dessas ações. | ||
Portaria n.º 2.437, de 7 de dezembro | Dispõe sobre a ampliação e o fortalecimento da Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador - RENAST no Sistema Único de Saúde – SUS. | ||
3ª Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador | Discussão sobre as condições dignas de trabalho de forma ampla, assegurando os direitos de um ambiente saudável, condições de moradias e atendimento integral de saúde e condições de vida. | ||
Governo Lula (2007-2010) | 2007 | Portaria nº 1.956, de 14 de agosto | Determina que a gestão e a coordenação das ações relativas à Saúde do Trabalhador no âmbito do Ministério da Saúde sejam exercidas pela Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS), por meio da Coordenação-Geral de Vigilância Ambiental, unidade responsável por coordenar o Sistema de Vigilância Ambiental em Saúde, inclusive ambiente de trabalho. |
2009 | Portaria nº 2.728, de 11 de novembro | Dispõe sobre a Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (RENAST). | |
Portaria nº 3252, de 22 de dezembro | Aprova diretrizes para execução e financiamento das ações de Vigilância em Saúde ratificando a necessidade de atuação conjunta das vigilâncias: epidemiológica, sanitária, saúde ambiental, saúde do trabalhador e da promoção da saúde, no intuito de controlar determinantes, riscos e danos à saúde de populações que vivem em determinados territórios, garantindo a integralidade da atenção, o que inclui tanto a abordagem individual como coletiva dos problemas de saúde. | ||
1a Conferência Nacional em Saúde Ambiental | Teve como tema teve como tema “A saúde ambiental na cidade, no campo e na floresta: construindo cidadania, qualidade de vida e territórios sustentáveis”, envolveu na sua organização os Ministérios da Saúde, do Meio Ambiente e das Cidades e resultou em proposição de diretrizes para a construção da Política Nacional de Saúde Ambiental. | ||
2010 | 1oSimpósio Brasileiro de Saúde Ambiental | Propôs estudos e o debate sobre o impacto ambiental e sanitário da expansão do atual padrão de sociedade industrial, a análise de doenças ocupacionais, a justiça ambiental e a proposição de novas estratégias de desenvolvimento sustentável. | |
Governo Dilma (2011 a 2014) | 2011 | Decreto nº 7.530, de 21 de julho | Cria o Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador (DSAST), como parte da estrutura do MS. |
Decreto nº 7.616, de 17 de novembro | Dispõe sobre a declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional - ESPIN e institui a Força Nacional do Sistema Único de Saúde - FN-SUS. Envolve eventos de natureza epidemiológica; desastres ou desassistência à população. | ||
2012 | Portaria nº 1.823, de 23 de agosto | Institui a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora | |
2014 | 1ª Conferência Nacional de Saúde do/a Trabalhador/a da CUT | Sensibilização das lideranças sindicais a respeito da importância e da centralidade dos temas relacionados à Saúde do Trabalhador | |
II Simpósio Brasileiro de Saúde Ambiental | Promoveu discussão sobre os temas relevantes para o ensino, a pesquisa e o serviço na temática de saúde ambiental. | ||
Emergência em Saúde Pública | Definida a estratégia da SVS para preparação e resposta à emergência em saúde pública - além de emergências epidemiológicas, são incluídas aquelas associadas a desastres naturais e agentes químico, radiológico e nuclear. | ||
Governo Dilma (2015 a 2016) | 2015 | 4ª Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora | Discussão e proposição de diretrizes para a implementaçãoda Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora – PNST. |
Fontes: 22-25.
A Rio 92 colocou os temas relacionados aos riscos ambientais na agenda política dos países e, como pode se ver no Quadro 2, em 1995 foi elaborado o primeiro Plano Nacional de Saúde e Ambiente no Desenvolvimento Sustentável, como parte dos desdobramentos do setor saúde na Agenda 21. Entre 1998 e 1999, no governo FHC, teve início a estruturação da saúde ambiental no país, em um contexto socioeconômico marcado pela adesão ao ajuste estrutural proposto pelo Banco Mundial e envolvendo as agências internacionais como OMS e OPAS, com foco no desenvolvimento sustentável e seletividade do papel do Estado em ações como o controle de riscos (incluindo os ambientais) e epidemias10,11. O acordo com o Banco Mundial para o financiamento da estruturação da vigilância em saúde ambiental no SUS, através do Projeto Vigisus, e a portaria que regulamenta a NOB SUS 01/96, no que se relaciona ao controle de doenças e a vigilância ambiental em saúde, ocorrem em 1999, primeiro ano do segundo mandato de FHC.
Ainda no Quadro 2, constata-se que, a partir de 2003, com a criação da Secretaria de Vigilância em Saúde no primeiro governo Lula, inicia-se um processo de aproximação das ações em saúde do trabalhador e saúde ambiental. Entre 2005 e 2009, um conjunto de instruções normativas e portarias institucionalizam a integração destas ações, reforçada nos espaços participativos das CN, com a 3ª de Saúde do Trabalhador, em 2005, tendo ambientes saudáveis como um dos temas e a 1a Conferência Nacional em Saúde Ambiental, em 2009, com muitas de suas diretrizes finais articulando processos produtivos e saúde dos trabalhadores.
A institucionalização e estruturação das ações de saúde do trabalhador e ambiental, se por um lado constituíram avanços nas ações do SUS, resgatando riscos e danos negligenciados e atualizando os novos cenários que foram surgindo no final do século XX , ocorrem em um contexto inicial de ajustes e adesão ao modelo neoliberal, com diminuição do financiamento federal, restrições de investimento em infraestrutura e a gestão do trabalho que prosseguiu desde as fases iniciais do SUS12.
Nestes 30 anos tivemos também a consolidação de um processo de transição nos padrões de riscos ambientais e efeitos sobre a saúde associados ao modelo de desenvolvimento socioeconômico. Tendo como referência o trabalho de Smith e Ezzati13, podemos considerar que esses padrões se relacionam a uma estrutura espacial e social bem delimitada (níveis espaciais e de organização social que vão do domicílio, ao comunitário/local e ao regional/global), organizada em três categoriais.
A primeira refere-se aos riscos ambientais no nível domiciliar, envolvendo temas como urbanização e assentamentos vulneráveis, déficit habitacional e precário acesso à água e saneamento. Engloba direitos sociais básicos e resulta em efeitos simples e diretos sobre a saúde (ex: infecções intestinais e respiratórias agudas). A segunda se relaciona aos riscos ambientais no nível local e inclui atividades de produção e transporte; poluição química do ar por industrias, veículos e queimadas; contaminação dos solos, águas e alimentos por atividades de produção industrial e agrícola. Resulta em efeitos mediados por intensas transformações socioambientais, combinando diretos e de curto prazo (das doenças respiratórias aos acidentes de trânsito e de trabalho resultantes dos modelos de transporte urbano), como indiretos de médio e longo prazos (câncer e doenças cardiovasculares resultantes da poluição). A terceira abrange riscos ambientais nos níveis regional e global, como mudanças climáticas, combinando efeitos (curto, médio e longo prazos) modulados por transformações socioambientais intensivas e extensivas, envolvendo maior complexidade. No nível macro e estrutural, esta categoria se relaciona aos processos de industrialização e urbanização, assim como às profundas e rápidas mudanças no uso e ocupação do solo como a expansão da fronteira agrícola, desmatamento, queimadas e desastres ambientais, resultando em multiplicidade de danos, doenças e agravos.
No nível global, assim como no Brasil, esses padrões de riscos não ocorrem de modo isolado ou descontextualizados da desigualdade estrutural, não se limita às disparidades de renda entre ricos e pobres, envolvendo também o acesso aos direitos sociais e ambientais. Os grupos sociais em que persistem os piores indicadores de cobertura e acesso aos direitos sociais (educação, alimentação, trabalho, saúde, moradia, saneamento, segurança, transporte e mobilidade urbana) costumam ser os mais expostos aos riscos ambientais onde vivem e trabalham14,15. Destituídos da integralidade e universalidade de seus direitos, estes grupos acabam por vivenciar de modo mais intenso a sobreposição das três categorias de riscos ambientais expressa na superposição de doenças infecciosas e crônicas, acidentes de trânsito e de trabalho, com violências.
Assim, embora políticas de redução de desigualdades sociais como o Programa Bolsa Família e Estratégia Saúde da Família tenham significado importantes conquistas dentro do leque dos direitos sociais, com impactos positivos na redução da miséria, da fome e da mortalidade na infância16, a estrutura das desigualdades sociais não foi transformada. E mais, mantiveram-se os padrões de produção e consumo apoiados em processos extensivos e intensivos de degradação ambiental, com grandes incentivos financeiros do Estado e sem mudança nos padrões dominantes de uso do capital natural, tendo como base a ampliação da produção de commodities (carne, soja e madeira, minérios e energia) e a manutenção de um crescimento industrial intensivo no uso de energia e recursos naturais, por outro15,17.
A pecuária extensiva foi a principal responsável pelos desmatamentos na Amazônia, contribuindo com mais de 60% dos 754 mil km2 desmatados até hoje na Amazônia18. Comparativamente, a produção de grãos foi responsável por apenas 5% da área desmatada. Porém, contribuiu para o intenso uso de agrotóxicos e sementes transgênicas, tornando o Brasil o maior consumidor mundial deste produto e o segundo em termos de área plantada com sementes transgênicas, perdendo apenas para os EUA19,20.
A produção de carne e grãos exerce fortes pressões no desmatamento, perda da biodiversidade, mudanças climáticas, diminuição da produtividade do solo e desertificação, alterações na qualidade e disponibilidade de água, segurança alimentar, eventos climáticos extremos e ciclos de vetores, contribuindo para o aumento das doenças de veiculação hídrica e por vetores (malária, dengue, zika, chicungunhya, febre amarela), cardiorrespiratórias, mentais e psicossociais; além disto, contaminação do solo, águas subterrâneas e cadeia alimentar por agrotóxicos, resultando em intoxicações agudas e contaminações crônicas, afetando principalmente trabalhadores rurais e populações próximas às áreas de plantio, com acumulação de poluentes persistentes nos tecidos humanos com potencial consequências genéticas e reprodutivas.
A produção de minérios é outro exemplo. Além dos grandes impactos ambientais que esta atividade produz rotineiramente, há também os desastres associados à mesma, como o que ocorreu em 2015, com o rompimento da barragem da mineradora Samarco, em MG. Esta resultou no maior desastre mundial em termos de quantidade de materiais (cerca de 34 milhões de m3) e extensão territorial (34 municípios e aproximadamente 650 km), resultando em mais de 10 mil diretamente afetados nos municípios próximos e 19 óbitos (2/3 trabalhadores terceirizados)21. Em Barra Longa, município vizinho, uma investigação do Ministério da Saúde comparando o ano de 2014 com o primeiro semestre de 2016 (6 meses depois), revelou grande elevação de infecções de vias aéreas superiores, casos suspeitos de dengue, parasitoses e hipertensão arterial sistêmica26. O monitoramento ambiental do Rio Doce em 2016 detectou níveis significativos de contaminação por metais pesados como alumínio, arsênio, cádmio, cobre, cromo, manganês e níquel, sendo que chumbo e mercúrio com níveis superiores ao limite da legislação de 165 e 1465 vezes, respectivamente21. No início de 2017, Minas Gerais foi o estado com maior registro de casos de febre amarela silvestre, com os municípios localizados na bacia do Rio Doce concentrando metade dos casos confirmados e um terço dos óbitos, surgindo a hipótese de o desequilíbrio ecológico provocado pela magnitude do desastre estar na raiz da mesma26.
Nas cidades, o déficit habitacional em 2015 era de 6.186.503 de domicílios27. Este déficit, se superpõe ao crescimento das populações vivendo em favelas ou palafitas (eram mais de 11 em 2010, segundo dados do IBGE), que teve nos últimos 30 anos um crescimento maior do que da população total ou a que vive em áreas urbanas28. Condições precárias de moradias para milhões de pessoas são combinadas com persistentes déficits no saneamento que limitam os avanços conquistados nas últimas décadas. Mais de 80% da população tem acesso à água, mas ainda é intermitente e por vezes fora dos padrões nas áreas e regiões mais pobres29; a coleta de esgoto atinge mais da metade da população, mas 45% do mesmo é lançado em corpo de água sem nenhum tratamento30; a coleta de lixo está próxima de 100%, mas 48% dos municípios brasileiros ainda despejam em lixões31.
O déficit habitacional e as precárias condições de moradia e saneamento retroalimentam a desigualdade social e potencializam a combinação dos riscos de nível domiciliar com os riscos de nível regional e global associados aos processos de mudanças climáticas e urbanização precária, dentre outros processos socioambientais. É dentro deste quadro que devemos compreender riscos e doenças que têm impactado as regiões com maiores percentuais de populações vivendo em condições de pobreza, como o Nordeste, assim como o que ocorre nos municípios do estado mais rico do país: São Paulo.
Em 2013, durante uma das mais graves secas das últimas décadas, o Nordeste vivenciou surtos de diarreia relacionados ao precário acesso à água, com grande número de internações e óbitos em Pernambuco e Alagoas, em 2013, principalmente nos municípios mais pobres32. Em 2015, com a introdução do vírus zika, o Nordeste teve um grande aumento do número de casos de microcefalia, principalmente em Pernambuco, com prevalência de cerca de duas vezes e meia mais para mães de pele preta ou parda comparadas com branca, com até 3 anos de estudos e que não realizaram o pré-natal em relação àquelas com seis ou mais consultas33.
Em 2014 a cidade de Campinas, que possui um dos melhores IDHM do país, teve a maior epidemia de dengue já registrada em sua história, com as maiores taxas concentradas nas áreas onde vivem as populações com piores condições socioeconômicas e de acesso a recursos e serviços urbanos34. Na cidade de São Paulo, a crise hídrica de 2014/2015, que combinou mudanças climáticas, desmatamento na Região do Sistema Cantareira e problemas na gestão das águas, contribuiu para um aumento de 697% no número de casos notificados da doença, comparando o primeiro bimestre de 2014 com o mesmo período do ano de 201535, com impactos maiores principalmente para populações e áreas mais pobres.
Essas situações envolvendo a sobreposição de diferentes riscos ambientais nos níveis comunitário/local/regional/global, com a justaposição de seus danos, doenças e agravos de curto à longo prazos, conhecidos e desconhecidos, visíveis e invisíveis, constituem expressões de um modelo de desenvolvimento socioeconômico em que o mesmo Estado que promove as atividades econômicas que favorecem o capital, principalmente o financeiro, negligencia as conquistas de cidadania e direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado e à redução de risco de doenças e agravos. Os incentivos fiscais vão para a indústria automobilística e não para a mobilidade urbana, para a queima de carvão e combustíveis fósseis e não para energias renováveis, para os transgênicos e agrotóxicos no agronegócio e não para a agricultura familiar e agroecologia, para grandes construtoras e o mercado imobiliário financeirizado e não para uma política habitacional e de saneamento orientadas para a inclusão social. As desigualdades sociais, estruturais e a degradação ambiental constituem a base dos processos de determinação social e ambiental dos padrões de riscos ambientais com efeitos diretos, mediados e modulados expressos em danos, doenças e agravos no Brasil, representando ainda grandes obstáculos às conquistas da cidadania e do direito à saúde ambiental.
Nos últimos 30 anos no Brasil, principalmente através de dispositivos presentes na Constituição de 1988, tivemos a implementação de instituições e políticas públicas voltadas à realização de direitos sociais e ambientais resultando na melhoria de indicadores tradicionais da saúde, como aumento da expectativa de vida e redução da mortalidade infantil. Tivemos também a ampliação dos espaços institucionais de participação da sociedade, verdadeiras caixas de ressonância das demandas e anseios de um país mais justo, com melhor qualidade de vida e um meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Estas conquistas ocorreram em um contexto em que os ajustes e adesão ao modelo neoliberal limitou a consolidação das instituições e a ampliação das políticas voltadas à realização dos direitos sociais e ambientais. Por um lado, através da diminuição do financiamento federal e restrições de investimento em infraestrutura, que não se limitou somente ao setor saúde, mas também e mais acentuadamente ao setor ambiental. Por outro a orientação das agências internacionais, adotada pelo Brasil, que combinava desenvolvimento sustentável com seletividade nas ações do Estado para o controle de riscos e epidemias, sem proposições e ações efetivas para mudanças nos padrões de uso do capital natural e na estrutura das desigualdades que se encontram na raiz dos processos de determinação dos riscos ambientais.
Além disto, se podemos considerar que tivemos conquistas na redução da desigualdade econômica sob o regime democrático (de 1985 a 2015), com o direito à saúde contribuindo neste processo36, temos de ter em conta suas limitações se não consideramos os custos ambientais da saúde. Sem considerar as externalidades ambientais, pode-se considerar positivo o boom das commodities na redução da desigualdade econômica, pois, como argumenta Arretche36, gerou demanda por empregos, aumentou o poder de barganha dos trabalhadores, favoreceu ganhos de renda e expandiu as receitas governamentais sem a necessidade de aumento de impostos. Concepções de saúde que a restringem ao acesso à serviços de saúde ou aos indicadores tradicionais de saúde serão incapazes de considerar os custos que a perda de biodiversidade, a contaminação química, a degradação ambiental e a alteração dos ciclos das águas, clima e vetores produzem para a vida e saúde no país e no planeta.
Por fim, os obstáculos tornaram-se mais evidentes após o golpe parlamentar de 2016, assumindo um governo orientado para atender integralmente as pautas do mercado e da acumulação de capital, derrubando e/ou negligenciando os direitos conquistados ao longo destes 30 anos. Além da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) dos gastos públicos e do Projeto de Lei da reforma trabalhista, com impactos diretos sobre a saúde e as condições de trabalho, há diversos outros atos que apontam para inúmeros retrocessos: lei da grilagem de terras, portaria do trabalho escravo, marco temporal e restrições ao direito de demarcação de terras para povos indígenas e comunidades quilombolas, enfraquecimento do licenciamento ambiental, liberação de áreas protegidas para exploração mineral a grandes empresas do setor, mudanças na forma de avaliação de agrotóxicos, favorecendo sua comercialização.