versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.17 no.2 São Paulo 2019 Epub 20-Maio-2019
http://dx.doi.org/10.31744/einstein_journal/2019ae4340
O envelhecimento populacional é um fenômeno mundial e que há muito traz preocupações relacionadas às suas consequências socioeconômicas, muitas das quais relativas às mudanças de perfil epidemiológico da população, sendo considerado a principal transformação social do século 21.(1,2) Segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU), a expectativa de vida ao nascimento está atualmente situada acima dos 80 anos em 33 países, quando há apenas 5 anos somente 19 deles tinham alcançado esse patamar.(1) A associação de redução das taxas de fecundidade e mortalidade, e do aumento da longevidade resultou no envelhecimento da população. O declínio das taxas de fecundidade fez com que os grupos etários mais jovens se tornassem menos representativos no total da população. O declínio das taxas de mortalidade e o aumento da expectativa de vida também contribuem para esse processo.(1,2)
Em 1950, existiam 205 milhões de pessoas com 60 anos ou mais no mundo, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU). Em 2000, já eram cerca de 400 milhões e, em 2015, mais de 900 milhões. Segundo as estimativas, até 2030 esse número aumentará em 56%, saltando para 1,4 bilhão e chegando, em 2050, a mais de 2 bilhões de pessoas. Chama a atenção o fato de que a parcela da população idosa que mais tem aumentado é a dos chamados “idosos muito idosos ou longevos”, ou seja, aqueles com 80 anos ou mais. Essas mesmas estimativas indicam que, em 2050, eles serão 434 milhões, ou seja, mais que o triplo do que eram em 2015, quando somavam 125 milhões de indivíduos.(1,2)
O Brasil também está em pleno processo de transição demográfica. Enquanto na década de 1960 existia, no país, cerca de 3 milhões de pessoas com 60 anos ou mais, em 2000 essa parcela da população já somava mais de 14 milhões de pessoas. Pelo censo demográfico de 1991, os idosos representavam 7,3% da população brasileira; em 2000, eram 8,6%; em 2006, 10,2% e, em 2015, 14,3%.(3-5) Estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que, em 2020, os idosos representarão 15% da população brasileira, saltando, em 2050, para 18%, o que corresponderá a cerca de 38 milhões de pessoas. Além disso, em 2060, teremos 19 milhões de idosos com mais de 80 anos. O Brasil será o sexto país com maior número de idosos.(3-5) Estimativas do Banco Mundial apontam que, nos próximos 40 anos, a população idosa brasileira crescerá a uma taxa de 3,2% ao ano, enquanto a população total crescerá a uma taxa de 0,3%.(4)
Este novo cenário demográfico traz importantes desafios para o setor saúde. À medida que a população envelhece, aumentam a prevalência de doenças crônico-degenerativas e suas consequências. Dentre elas, estão as neoplasias malignas, tanto as sólidas quanto as hematológicas.
Dados do Instituto Nacional do Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA) revelam que, com o aumento do envelhecimento populacional nas últimas décadas, ocorreu também elevação exponencial da incidência de câncer na população idosa brasileira,(6) sendo este um importante desafio defrontado por oncologistas, onco-hematologistas e geriatras.(7,8) Cerca de 70% dos casos de câncer são diagnosticados em indivíduos com 60 anos ou mais, e a doença é a causa de 70% das mortes nesta faixa etária.(6,9) As estimativas do INCA apontam que, no Brasil, para o biênio 2016-2017, ocorreriam cerca de 600 mil casos novos de câncer. Excetuando-se o câncer de pele não melanoma, que contabiliza aproximadamente 180 mil casos novos, devem ser cerca de 420 mil casos novos de câncer.(6)
Em relação às neoplasias hematológicas, estima-se cerca de 5.210 casos novos de linfoma não Hodgkin (LNH) em homens e 5.030 em mulheres para o Brasil, no ano de 2016, correspondendo a um risco estimado de 5,27 casos novos a cada 100 mil homens e 4,88 a cada 100 mil mulheres. Já para o linfoma de Hodgkin (LH), estimam-se 1.460 casos novos em homens e 1.010 em mulheres, o que corresponde a um risco estimado de 1,46 caso novo a cada 100 mil homens e 0,93 a cada 100 mil mulheres.(6)
Quanto às leucemias, esperam-se 5.540 casos novos em homens e 4.530 em mulheres. Esses valores correspondem a um risco estimado de 5,63 casos novos a cada 100 mil homens e 4,38 a cada 100 mil mulheres.(6)
Não há detalhamentos de estimativas de incidência de mieloma múltiplo na última publicação do INCA sobre a incidência de câncer no Brasil.
Na figura 1, temos um esquema resumido das condutas nutricionais que devem ser realizadas.
O transplante de células-tronco hematopoiéticas (TCTH) é um tratamento potencialmente curativo e que pode promover aumento de sobrevida para muitos pacientes com diagnóstico de neoplasias hematológicas. No entanto, devido à sua alta morbidade relacionada, ele foi, durante muito tempo, uma estratégia de tratamento restrita a pacientes jovens, uma vez que o envelhecimento estaria relacionado ao aumento da prevalência de comorbidades e ao prejuízo funcional, com consequente aumento do risco de toxicidades e eventos adversos.(10,11)
Contudo, sabe-se hoje que o processo de envelhecimento não ocorre da mesma forma para todos os indivíduos. Trata-se de um processo heterogêneo, influenciado por fatores genéticos e ambientais, o que faz com que a idade cronológica isoladamente não seja a melhor variável a ser considerada na tomada de decisões quanto às escolhas terapêuticas.(10-13)
O número de pacientes candidatos ao TCTH tem aumentado sobremaneira, provavelmente devido à melhora da expectativa de vida associada ao diagnóstico mais precoce e ao maior acesso aos serviços de saúde. Com o surgimento de esquemas de condicionamento menos tóxicos, os não mieloablativos, e o reconhecimento da importância das terapias de suporte, cada vez mais indivíduos idosos passaram a ser candidatos ao TCTH. Segundo dados do Center for International Blood and Marrow Transplant Research (CIBMTR), nos últimos anos houve significativo aumento do número de idosos submetidos tanto ao TCTH autólogo quanto ao alogênico. Enquanto de 1994 a 1995 menos de 1% dos pacientes submetidos ao TCTH autólogo tinham idade maior ou igual a 70 anos, entre 2004 e 2005 estes já representavam 5% do total.(10,11) Neste mesmo período, para pacientes com idades de 60 a 69 anos, a percentagem de TCTH autólogo aumentou de 6% para 25% do total. Em relação ao TCTH alogênico, entre 1994 e 2005, o número de pacientes com idade igual ou superior a 60 anos submetidos ao procedimento aumentou 13 vezes.(10,11)
Neoplasias hematológicas são mais comuns em pessoas mais velhas, e grande parte delas tem maior incidência em idosos (principalmente entre os 60 e 70 anos), como leucemias mieloides agudas (LMA), síndromes mielodisplásicas (SMD), mieloma múltiplo e LNH; por diversas razões, os idosos apresentam pior prognóstico que os mais jovens, seja pela maior incidência de presença de comorbidades, ou seja por aspectos biológicos da doença nesta fase da vida, que levam a uma pior evolução.(14) Nesta população, por exemplo, há maior incidência na célula maligna de expressão de genes, como MDR-1 e instabilidades microssatélites, conferindo, respectivamente, maior resistência aos quimioterápicos(15) e pior prognóstico em leucemias agudas.(16,17) A sobrevida global em 1 ano de pacientes idosos com LMA/SMD de alto risco é inferior a 30%, e o prognóstico dos LNH agressivos recidivados pós-TCTH autólogo é muito desfavorável.(18,19)
O TCTH pode levar à cura ou à remissão prolongada em várias doenças malignas ou não malignas. Até duas décadas atrás, o limite de idade restringia sua aplicação, sendo, geralmente, de 65 anos para transplante autólogo e 55 anos para transplante alogênico. Felizmente, os avanços no TCTH têm possibilitado a redução da toxicidade nos regimes de condicionamento, menor período de neutropenia, menores taxas de mortalidade relacionada à terapêutica e maior enfoque na imunomodulação e terapias-alvo como manutenção de remissão nas neoplasias hematológicas.(14)
Na última década, vêm sendo descritos cada vez mais dados sobre segurança e eficácia deste procedimento em idosos.(20) A idade dos pacientes não é mais considerada fator impeditivo para o TCTH, tornando-se mais relevantes as análises do índice de comorbidades e de funcionalidade, que refletem a idade fisiológica, em vez da idade cronológica.(14,21) Sorror et al.,(22) mostraram melhores expectativas por meio de estudo prospectivo com 372 pacientes com idade de 60 e 75 anos com neoplasias hematológicas de alto risco submetidos ao TCTH alogênico não mieloablativo, mostrando mortalidade relacionada à terapia em 1 ano de 20% (intervalo de confiança de 95% - IC95%: 22%-32%), doença do enxerto contra o hospedeiro (DECH) de 65% e recidiva de 33%.(22)
Relatos do CIBMTR demostram que o número de transplantes autólogos em pacientes idosos continua crescendo. Cerca de 50% dos transplantes autólogos para mieloma mútiplo e linfoma realizados em 2015 foram em pacientes com mais de 60 anos, e 12% do total destes transplantes autólogos foi em pacientes com mais de 70 anos. O número de transplantes alogênicos também continua a crescer, posto que 30% dos transplantes alogênicos realizados em 2015 foram em pacientes com mais de 60 anos, e pacientes com mais de 70 anos constituíram 4,4% do total de transplantes alogênicos em 2015. Este aumento se deve à melhoria das medidas de suporte, como melhor monitorização e tratamento de infecções; no caso dos transplantes alogênicos, é devido também à introdução de regimes de condicionamento de intensidade reduzida ou não mieloablativos, e aos novos esquemas de imunossupressão.
O TCTH com condicionamento de intensidade reduzida e/ou não mieloablativo diminui a toxicidade aguda do transplante, permitindo que se alcance sobrevida longa sem doença em pacientes idosos, mesmo aqueles com idade superior a 70 anos. Estudo de Brunner et al.,(20) com 54 pacientes com mais de 70 anos, submetidos a TCTH para doenças hematológicas malignas, mostrou que a mortalidade não relacionada ao TCTH foi de cerca de 3,7% até o dia +100 e de cerca de 5,6% até 2 anos após o transplante, obtendo-se sobrevida livre de doença de 39% em 2 anos.
Outro aspecto importante a ser analisado no TCTH alogênico em idosos está relacionado ao doador. A maioria dos doadores aparentados é da mesma faixa etária e com perfil similar de comorbidades dos pacientes idosos candidatos ao TCTH alogênico, limitando a possibilidade de doação.(21) Algumas estratégias podem ser usadas para se obter um produto adequado, e várias equipes transplantadoras têm proposto e viabilizado TCTH alogênicos não aparentados ou com fontes alternativas, como haploidênticos. Infelizmente existem poucos estudos randomizados ou prospectivos entre pacientes idosos submetidos ao TCTH.
Finalmente, um aspecto importante é o uso crescente de índices de comorbidades na avaliação pré-transplante, os quais permitem predizer a sobrevida global dos pacientes e a mortalidade relacionada ao transplante. Estes índices, juntamente da avaliação funcional, por exemplo, a Escala de Desempenho de Karnofsky (KPS - Karnofsky Performance Status), são instrumentos importantes na avaliação inicial, podendo, inclusive, contraindicar o TCTH.(23) No entanto, a maioria dos trabalhos mostram que estes dois índices são insuficientes, e que ferramentas que permitam um prognóstico mais acurado se fazem necessárias. Uma delas é a Avaliação Geriátrica Ampla (AGA), que se mostrou fator prognóstico independente na sobrevida global de pacientes idosos.(24)
A tendência é que o número de idosos candidatos ao TCTH continue aumentando, considerando-se o envelhecimento populacional e a elevação do número de idosos diagnosticados com doenças onco-hematológicas. Posto isto, é importante definir quais idosos realmente teriam condições de tolerar o procedimento e quais se beneficiariam de um tratamento menos intensivo e, ainda, quais as principais variáveis que poderiam predizer melhor ou pior prognóstico e auxiliar nessa decisão.
Apesar de o envelhecimento não estar necessariamente vinculado a doenças e incapacidades, diversas condições relacionadas à senescência, nas dimensões física, cognitiva e social, contribuem para uma maior suscetibilidade destes indivíduos às manifestações adversas na saúde, aumentando o risco de desnutrição. Demência, depressão, doenças crônicas renais, cardiológicas e pulmonares, desordens orais e odontológicas e dependência de terceiros para realização das Atividades Básicas de Vida Diárias, como a alimentação, pioram a condição clínica dos idosos. Assim, comumente pacientes acima de 70 anos de idade tornam-se desnutridos, além de que, nesta geração, o consumo de proteínas e de outros nutrientes geralmente é inadequado.(25-27)
Em relação ao tecido adiposo, verifica-se aumento progressivo durante a vida adulta, de forma semelhante em ambos os gêneros, até a sétima década de vida;(28) após, observa-se aumento preferencial de gordura visceral, combinado com diminuição da gordura subcutânea, o que pode ocorrer independentemente das alterações do peso corporal, da adiposidade total ou da circunferência da cintura.(29) A massa muscular equivale a 40% do peso corporal no adulto e a 30% no idoso. A redução deste tecido correlaciona-se com menor força e, após os 60 anos, a massa muscular reduz em até 3% ao ano.(30)
No envelhecimento, é comum o aumento de peso, à custa de gordura corporal e perda de massa muscular.(31,32) Dados internacionais evidenciam que 5% a 13% dos indivíduos ≥ 60 anos de idade têm baixa massa muscular, com aumento desta prevalência para até 50% em pessoas ≥ 80 anos.(33) Os poucos estudos na população brasileira ainda não apresentam dados uniformes em termos de achados e metodologia.(34,35)
Os idosos apresentam maior risco de toxicidade à quimioterapia, em comparação aos adultos jovens - fato atribuído à redução de massa muscular.(36,37) Ademais, eles são menos propensos a receberem quimioterapia, devido às preocupações com sua capacidade de suportar o tratamento.(38) Assim, para decidir melhor sobre o tratamento de cada paciente e evitar efeitos adversos graves, é importante identificar aqueles idosos que estão em risco nutricional e piora do status funcional.(38)
Embora a maioria dos pacientes não esteja desnutrida no início do TCTH, os pacientes com baixo peso, obesos e os que apresentam piora do estado nutricional durante o procedimento têm grande risco de morte precoce após o TCTH, sendo estes fatores de mau prognóstico.(39)
Tanto a desnutrição proteico-calórica quanto a obesidade aumentam o risco de comorbidades e mortalidade, o número de dias de internação, o tempo de uso de drogas imunossupressoras e a chance de desenvolvimento da DECH.(40,41)
A obesidade, cuja prevalência no TCTH varia de 10% a 34%, está associada com maior prevalência de DECH, infecções e mortalidade.(42) Estudo recente realizado em pacientes submetidos ao TCTH alogênico mostrou associação inversa entre áreas de gordura visceral e periférica e tempo livre de doença.(43)
No TCTH, a redução da força e da massa muscular associa-se, entre outras coisas, ao uso de corticoides e drogas imunossupressoras, ocasionando pior prognóstico.(44,45) No TCTH alogênico, essa diminuição associa-se à maior prevalência de DECH crônica e ao baixo desempenho físico.(44,45)
Nos idosos, há aumento da prevalência de sarcopenia,(46) definida pela perda de massa muscular associada à redução de força muscular, e esta não só está associada a um pior prognóstico em diversas entidades clínicas,(47-51) como também é fator de mau prognóstico em tumores hematológicos.(52)
Embora exista tendência em se fazer associação entre sarcopenia e desnutrição, esta também ocorre em pacientes obesos, sendo chamada de obesidade sarcopênica.(53,54) Essa modalidade é de difícil diagnóstico, pois depende de um método de avaliação de composição corporal, além de apresentar etiologia complexa, como estilo de vida, fatores endócrinos, vasculares e imunológicos.(53,54) Em pacientes oncológicos, a obesidade sarcopênica reduz a sobrevida.(55)
Vários fatores influenciam nos desfechos clínicos do paciente, como tipo e estágio da doença, regime de condicionamento, tipo de TCTH (autólogo, alogênico ou haploidêntico), fonte de células-tronco (sangue periférico, medula óssea ou cordão umbilical), idade e estado nutricional do paciente.(56)
A avaliação nutricional dos idosos antes e durante o TCTH poderia selecionar aqueles que necessitam de intervenção nutricional precoce, prevenir complicações e, consequentemente, reduzir o tempo de internação hospitalar e transferências para a unidade de terapia intensiva, aumentar a sobrevida, e melhorar a qualidade de vida e a assistência clínica ao paciente, influenciando, assim, nos desfechos clínico e nutricional da doença.(56)
Na avaliação pré-TCTH padrão, algumas ferramentas já tradicionais são utilizadas rotineiramente para estabelecer o prognóstico do transplante e incluem as avaliações do status da doença, do tipo de doador, da fonte de células e do performance status, que pode ser avaliado tanto pelo Karnofsky Performance Status (KPS) quanto pelo escore da Eastern Cooperative Oncology Group (ECOG). Além destes, são avaliados índices de comorbidades e índices prognósticos de sobrevida.(57) O desenvolvimento de um índice de comorbidades específico para transplante de células hematopoiéticas por Sorror et al., o Hematopoietic Cell Transplantation-Specific Comorbidity Index (HCT-CI), possibilitou importante progresso no cálculo do prognóstico após o transplante. Trata-se de um sistema de pontuação de comorbidade que prediz a toxicidade relacionada ao transplante e a sobrevida global.(58)
No entanto, apesar de bastante ampla, esta avaliação padrão isoladamente mostrou-se insuficiente para avaliar todas as dimensões relevantes das condições de saúde de pacientes idosos. O envelhecimento é um processo bastante heterogêneo, e a avaliação da idade cronológica isoladamente não prediz as reais condições de um idoso quanto a capacidades funcional e cognitiva; estado nutricional; perfil de comorbidades e presença de polifarmácia; estado emocional; suporte social e existência de síndromes geriátricas. Desta forma, a adequada atenção às alterações fisiológicas e psicossociais decorrentes do processo de envelhecimento possibilitaria que se detectassem problemas previamente desconhecidos ou subdiagnosticados, que podem interferir na segurança e na eficácia do tratamento oncológico.(9-13)
Uma avaliação mais abrangente e multidimensional da saúde de idosos pode ser obtida por meio da AGA, estando esta apta a auxiliar na seleção cuidadosa de idosos candidatos ao TCTH.(11)
A AGA é um instrumento consolidado pela literatura médica para auxílio na determinação de deficiências, incapacidades ou desvantagens, no estabelecimento de necessidades e metas do cuidado e no planejamento de acompanhamento em longo prazo.(59) Trata-se de uma avaliação multidimensional do idoso, que aborda o idoso em suas múltiplas dimensões por meio de instrumentos que o avaliam quanto a sua funcionalidade; condições de equilíbrio, marcha e mobilidade; função cognitiva; alterações sensoriais; alterações e condições emocionais; condições socioeconômicas, disponibilidade e adequação de suporte familiar e social; condições ambientais; estado e risco nutricionais; presença de comorbidades, síndromes geriátricas e polifarmácia; e perfil de interações medicamentosas.(7-9,12,13,59)
O status funcional do idoso pode ser avaliado utilizando-se escalas de avaliação funcional específicas e validadas para a população geriátrica, como a Escala de Katz, para Atividades Básicas de Vida Diária, e a de Lawton, para Atividades Instrumentais de Vida Diária. O equilíbrio e a mobilidade podem ser avaliados por instrumentos como o teste Timed Up and Go (TUG) e a capacidade cognitiva, por instrumentos como o Miniexame do Estado Mental (MEEM), o teste do desenho do relógio e o teste de fluência verbal, considerados, neste cenário, de triagem cognitiva. Para avaliação de alterações de humor, pode-se utilizar a Escala de Depressão Geriátrica (GDS) adaptada de Yesavage. As condições médicas são avaliadas por lista de comorbidades, além do uso de índices de comorbidades, como o Índice de Comorbidades de Charlson e/ou o Cumulative Illness Rating Scale for Geriatric (CIRS-G); lista de medicações e avaliação de polifarmácia e interações medicamentosas; e presença de deficiências sensoriais e síndromes geriátricas, como quedas, por exemplo. A avaliação nutricional pode ser feita por medidas antropométricas, aferição da força de preensão palmar com o auxílio de um dinamômetro hidráulico apropriado e aplicação da Miniavaliação Nutricional® (MAN®). O funcionamento social pode ser avaliado por questionários que abordem as condições socioeconômicas e ambientais, e a disponibilidade e adequação de suporte familiar e redes de apoio adicionais.(59-64) Além destes, podem ser aplicados escores de toxicidade à quimioterapia, como o Chemotherapy Risk Assessment Scale for High-Age Patients Score (CRASH) e o escore de toxicidade de Hurria.(65,66)
Por meio dessa ampla avaliação, é possível identificar possíveis vulnerabilidades e/ou fragilidades que possam expor o paciente idoso a um maior risco de toxicidades e complicações, comprometendo seu tratamento. Pela identificação desses fatores, pode-se estabelecer um plano terapêutico personalizado, que privilegie não somente a possibilidade de se ofertar tratamento apropriado da doença oncológica, mas também medidas específicas para atuação nos problemas encontrados, visando à manutenção de independência e da qualidade de vida. A avaliação auxilia, ainda, na identificação daqueles idosos frágeis e de alto risco para desfechos desfavoráveis, nos quais é necessário julgar o real benefício do TCTH com muito mais cautela, considerando a possibilidade de encaminhamento para terapias de suporte e cuidados paliativos.
São considerados frágeis aqueles que apresentem critérios para síndrome de fragilidade, segundo os critérios de fragilidade de Fried, isto é, presença de três ou mais dos seguintes critérios: redução da velocidade de marcha, redução da força, redução de atividade física, exaustão e perda de peso ≥5% no último ano; ou que apresentem dois dos seguintes: idade maior que 85 anos, mais do que duas incapacidades, múltiplas comorbidades ou presença de síndrome geriátrica. Estes idosos, muitas vezes não identificados como tal em uma avaliação clínica habitual, apresentam alto risco de desfechos negativos, como maior toxicidade à quimioterapia, declínio funcional irreversível e morte.(11) Pelo menos dois estudos importantes demonstraram que, a despeito de serem considerados portadores de excelente status funcional na avaliação pré-TCTH habitual, em muitos idosos previamente elegíveis para TCTH foram detectados importantes deficits funcionais e síndromes geriátricas após serem submetidos à AGA. Aproximadamente um quarto destes apresentava critérios para diagnóstico de síndrome de fragilidade.(11,67)
Consideram-se saudáveis os idosos que não apresentem síndromes geriátricas, totalmente independentes e cujas comorbidades estejam controladas e sem repercussões clínicas. Pacientes que não preenchem critérios para síndrome de fragilidade, porém preenchem para pré-fragilidade, sem diagnóstico de outras síndromes geriátricas e portadores de, no máximo, duas comorbidades não controladas e com alguma dependência para Atividades Instrumentais de Vida Diária, mas totalmente independente para Atividades Básicas de Vida Diária, são considerados vulneráveis.(59-64) Apesar de a AGA poder auxiliar na elaboração de medidas reabilitadoras para que idosos vulneráveis se beneficiem do melhor tratamento oncológico possível com menor risco de toxicidade, no cenário da doença hematológica, nem sempre é possível utilizar os dados da AGA para promover intervenções direcionadas para condições reversíveis previamente ao TCTH, pois o tempo no tratamento das neoplasias hematológicas é valioso e os atrasos na realização do TCTH após sua indicação podem resultar em piores desfechos e prognóstico.(11)
A implementação de avaliação geriátrica pode, sem dúvidas, auxiliar na seleção adequada de idosos candidatos ao TCTH por meio da dentificação dos idosos frágeis e de maior risco para desfechos negativos, mas ainda são necessários mais estudos para a definição das principais variáveis que se associam a um melhor ou pior prognóstico, o que possibilitaria maior auxílio na seleção dos candidatos ao procedimento, principalmente naqueles considerados vulneráveis.
A despeito dos estudos indicarem a AGA como principal instrumento auxiliar na seleção de idosos candidatos ao TCTH, uma de suas principais funções ainda é estabelecer um plano de cuidado focado na prevenção da perda funcional e na melhora da qualidade de vida, uma vez que permite a detecção precoce de deficiências e incapacidades. Desta forma, a AGA pode ser aplicada sempre que se julgar oportuno, visando readequar o planejamento inicial quando necessário.
Os idosos são particularmente suscetíveis a desfechos negativos associados à hospitalização, principalmente quando há repouso prolongado no leito, o que pode ocasionar perda acelerada de massa óssea e muscular, piorando a capacidade funcional, muitas vezes, de forma irreversível.(68,69) A manutenção do estado nutricional, nesta situação, ganha especial importância, visto que sua deterioração pode trazer graves consequências. Isso porque, durante o curso do TCTH, há normalmente um cenário não favorável, coexistindo redução de ingestão alimentar e alterações absortivas associadas à toxicidade da terapia citorredutora (provocando náuseas, vômitos, inapetência e disgeusia) e aumento das necessidades metabólicas.(70)
Focando ainda a prevenção de perdas funcionais e de outras complicações, é de suma importância manejar adequadamente toxicidades e os sintomas relacionados ao processo do TCTH, pois estes podem estar presentes desde o período do condicionamento até algumas semanas após o procedimento. Dentre os principais sintomas estão fadiga, náuseas e vômitos, diarreia, dor, mucosite e dispneia. É preciso lembrar que sintomas descontrolados reduzem a aderência às medidas reabilitadoras.
Outro ponto importante é o controle rigoroso das comorbidades, pois, ainda que previamente controladas, podem sofrer descompensação durante o processo do transplante, principalmente as patologias cardiovasculares, podendo apresentar manifestações de insuficiência cardíaca e arritmias.(10)
Os pacientes idosos e com risco nutricional prévio submetidos ao TCTH rotineiramente necessitam de terapia nutricional (TN) individualizada e otimizada, que deve ser iniciada imediatamente desde o pré-TCTH, em especial na vigência de desnutrição.
O suporte nutricional, durante o TCTH, tem como objetivo manter ou melhorar o estado nutricional, e fornecer substrato de forma adequada para recuperação hematopoiética e do sistema imune, além de minimizar as consequências do regime de condicionamento e auxiliar manutenção da imunocompetência.(71-73)
As diretrizes não fazem distinção entre TN no adulto e no idoso. De modo geral, a primeira forma de apoio nutricional deve ser o aconselhamento do paciente, a fim de ajudar no manejo dos efeitos adversos do tratamento, com consequente adequação da dieta com alimentos de melhor tolerância.(74)
A TN no TCTH visa(75) manter e/ou recuperar o estado nutricional no pós-TCTH; evitar ou minimizar as deficiências nutricionais decorrentes da quimioterapia e/ou radioterapia; manter o trato gastrintestinal funcionante; evitar a desnutrição proteico-calórica; e proporcionar melhor ingestão oral, fornecendo substrato de maneira adequada para recuperação hematopoiética e do sistema imune.
Em geral, a desnutrição é causada pelos regimes de condicionamento, compostos por altas doses de quimioterapia e/ou radioterapia, levando à ocorrência de náuseas, vômitos, diarreia e mucosite. Estas toxicidades gastrintestinais graves geralmente prejudicam a ingestão oral, ocasionado risco de má nutrição e infecção com risco de vida.
Essas complicações prejudicam a capacidade de ingestão alimentar e hidratação oral e, juntamente do desenvolvimento da síndrome de resposta inflamatória sistêmica, podem levar à anorexia e à caquexia. Assim, a avaliação nutricional em pacientes idosos submetidos ao TCTH é muito importante e pode racionalizar o apoio nutricional.(76)
Para investigar o perfil nutricional desses idosos antes e após o TCTH e explorar métodos ótimos para avaliar o estado nutricional, temos quatro principais ferramentas de rastreamento nutricional, incluindo Nutrition Risk Screening 2002 (NRS 2002), MAN®, Avaliação Subjetiva Global (ASG) e Malnutrition Universal Screening Tools (MUST) - que, em conjunto com medidas corporais, podem examinar e avaliar extensivamente os riscos e o estado nutricional em idosos que receberam TCTH.(77,78) Nos idosos, a mais utilizada é a MAN®.
A avaliação nutricional, iniciada no período pré-TCTH, é o primeiro passo na detecção e no tratamento de desnutrição. Pacientes submetidos ao TCTH são considerados de risco aumentado para a desnutrição na fase anterior ao TCTH e após, bem como a alteração do estado nutricional pré-TCTH é fator prognóstico negativo para a evolução desses pacientes, interferindo no tempo de enxertia.(79)
Devido às limitações dos métodos existentes para avaliação nutricional, a adoção de métodos práticos, de baixo custo e que manipulem o mínimo possível os pacientes submetidos ao TCTH é muito importante.
O TCTH no idoso é relativamente recente, e ainda não há instrumentos específicos de avaliação nutricional. A maioria dos centros usa a parte nutricional do AGA e as avaliações padrões dos adultos. Nenhum método de avaliação nutricional, antropométrico ou bioquímico, é livre de falhas e/ou contraindicações. Cada centro deve pesquisar e identificar o mais adequado para sua realidade, evitando o excesso de manipulação desses pacientes. Sugere-se a utilização de um método de medição de massa corporal, dobras cutâneas ou bioimpedância, com intervalos maiores - quinzenalmente -, visto que a diminuição do número de avaliações não prejudica a evolução do paciente.
No TCTH, a composição corporal tem sido estudada e apresentado importantes correlações com as complicações e a sobrevida. No entanto, ainda há poucos estudos para a população idosa submetida ao TCTH.(80-82)
O TCTH alogênico apresenta a maior parte das alterações da composição corporal nos adultos, porém, nos idosos, mesmo o transplante autólogo pode associar-se a perdas de massa muscular, principalmente quando o paciente já apresenta depleção muscular no início do procedimento, mostrando que a população idosa submetida ao TCTH apresenta peculiaridades em relação à composição corporal.(83)
A análise de imagens de tomografia computadorizada (TC), realizada em cortes específicos – da terceira vértebra lombar e da quarta vértebra torácica –, apresenta boa correlação com a massa gorda e a massa muscular magra de todo corpo.(84-87) Esse método também permite a avaliação da radiodensidade muscular, que é definida como a média da atenuação da radiação em unidades de Hounsfield. A baixa radiodensidade muscular em alguns estudos parece ser melhor prognóstico do que a sarcopenia em tumores sólidos e hematológicos.(88,89) Como a maioria dos pacientes do TCTH a realiza na avaliação pré-TCTH, trata-se de método que pode ser usado, embora dependa da avaliação por meio de um software específico, o que limita seu uso em todos os serviços.(90,91) No caso dos idosos, a TC ela permite estimar a presença de sarcopenia, além da composição corporal propriamente dita.(55,90-92)
Outro método que permite a avaliação de sarcopenia, sendo mais prático e de baixo custo em relação à TC, é a ultrassonografia (US).(93) Alguns estudos utilizam a espessura do quadríceps femoral e a avaliação da ecogenicidade, que reflete a quantidade de fibras musculares, para avaliar sarcopenia em pacientes idosos.(50,94-96) Além disso, a US permite a avaliação da gordura visceral, que é um fator prognóstico no TCTH.(97-99)
Infelizmente, essa avaliação ainda não é uma prática regular nos serviços brasileiros de TCTH, porém, nos pacientes idosos, pode aprimorar a TN em todas as fases do TCTH, melhorando o prognóstico deles. Dentre todos os métodos para avaliação de composição corporal, o serviço deve escolher aquele que é mais prático e com melhor custo-benefício para os pacientes. O importante é tornar essa avaliação um instrumento regular da avaliação nutricional e geriátrica.
A via de alimentação deve ser escolhida de acordo com sintomas clínicos, as disfunções digestivas e a adequação da ingestão oral, podendo ser utilizada mais de uma via simultaneamente, com o objetivo de atender às necessidades nutricionais do paciente.(100,101)
Devido ao processo de neutropenia relacionado à terapia de condicionamento, têm sido indicados cardápios de baixo teor microbiológico, que consistem na restrição de alimentos associados ao risco de infecções, como: ovos e carnes cruas ou com cozimento incompleto, produtos lácteos não pasteurizados (leite, queijo, manteiga, iogurte), frutas cruas e seus subprodutos, vegetais frescos e cozidos, frutas oleaginosas cruas e água proveniente da rede de abastecimento não submetida a processo de fervura.(100)
A despeito do desconhecimento dos efeitos da dieta com baixa carga microbiana, ainda é recomendada a realização de um aconselhamento dietético a respeito dos alimentos seguros para ingestão nesse período, bem como das corretas técnicas para sua cocção e higienização, para evitar a ocorrência de infecções.(100)
Pacientes desnutridos ou em risco de desnutrição e com baixa aceitação alimentar (aceitação ≤ 75% das necessidades nutricionais por mais de 3 dias) são candidatos a iniciar adequação do alvo calórico com suplementos nutricionais, de preferência hipercalóricos e hiperproteicos. Estas medidas podem proporcionar, aos indivíduos idosos desnutridos, melhor manutenção ou recuperação do peso corpóreo, e redução da mortalidade, com consequente diminuição dos custos do tratamento hospitalar.(71,72)
Atualmente, há grande variedade de suplementos que oferecem boa palatabilidade, fácil manuseio e consumo para todas as faixas etárias.(102) Existe a preocupação com a adesão da quantidade e do tipo de suplemento prescrito para atingir a meta nutricional e maximizar a eficácia clínica e de custo, além de evitar despedícios.(71,102,103) A adesão ao suplemento deve ser monitorada e sua tolerância acompanhada para novas adequações, caso sejam necessárias.(104) Em caso de intolerância, pode-se trocar para suplementos de maior densidade e teor calórico, a fim de reduzir seu volume.(105)
Uma estratégia para melhorar a adesão ao consumo do suplemento nutricional é demonstrada no programa denominado Nutrição MedPass, no qual a enfermagem oferta cerca de 50 a 60mL de suplemento líquido durante as rotinas de medicação no decorrer do dia. Nesse caso, o suplemento é apresentado ao paciente como parte da medicação oral, em vez de um lanche ou parte de uma refeição, garantindo que o paciente receba o suporte nutricional juntamente das medicações. A análise da adesão do paciente a esse programa foi positiva; os pacientes aceitaram 95,8% do volume total de suplemento prescrito nas primeiras 4 semanas e 86,6% do volume durante as 4 últimas semanas de estudo. Como resultado houve importante melhora do ganho de peso e índice de massa corporal (IMC).(103,105)
Durante o TCTH, a assistência nutricional deve ser rotineira, para prevenir a desnutrição secundária à toxicidade gastrintestinal do regime de condicionamento, ou realizar as adequações necessárias frente ao aumento da demanada do estado catabólico.(106,107)
Quando há inadequação da TN oral, seja ela decorrente da impossibilidade da utilização da via digestiva, devido às complicações provenientes do regime de condicionamento, ou de uma ingestão inferior a 60% das necessidades nutricionais até 5 dias consecutivos, sem expectativa de melhora, em pacientes que mantenham a funcionalidade do trato gastrintestinal de forma total ou parcial, a terapia nutricional enteral (TNE) deve ser o tratamento de escolha.(74,108)
Quanto ao posicionamento da sonda, podemos utilizar o nasogástrico (SNG) ou nasoenteral (SNE), que deve ser escolhido de acordo com os sinais e sintomas apresentados pelo paciente.(103) Estudos referem que a passagem de SNG, na semana de infusão das células hematopoiéticas, melhora a tolerância à nutrição enteral durante o tratamento.(103,109,110) Entretanto, o grande desafio é estabelecer um acesso enteral seguro após o transplante, devido a distúrbios de coagulação, riscos de pneumonia aspirativa, diarreia, íleo, dor abdominal, êmese e gastroparesia.(111) Faz-se necessário o monitoramento diário pela equipe multidisciplinar dos dados clínicos, laboratoriais, sinais, sintomas, exames físico e funcional, bem como seu registro em prontuário.(71)
Quanto à escolha da melhor fórmula a ser administrada, deve-se considerar a individualidade de cada caso clínico. A utilização de fórmulas enterais poliméricas de baixa osmolaridade, com infusão contínua e aumento progressivo dos volumes ofertados, é geralmente bem tolerada.(110)
A TNE é sempre preferível, por ser mais fisiológica, preservar a integridade da mucosa intestinal e garantir menor taxa de translocação bacteriana, além de favorecer bom controle glicêmico e menor incidência de complicações devido à infecção.(72,111,112)
Todavia, a NPT continua a primeira escolha das equipes de TCTH em função da toxicidade causada ao trato digestório pelas elevadas doses de quimioterápicos utilizados para a ablação do sistema imune do paciente no período pré-transplante, dificultando a passagem da SNG ou SNE.(110)
A nutrição parenteral é uma via alternativa de alimentação em pacientes que não podem alcançar suas necessidades nutricionais pela rota oral ou enteral.(113) Em pacientes submetidos ao TCTH, a disfunção digestiva já se inicia na fase pré-transplante, como consequência de um agressivo período de condicionamento mieloablativo, e que pode se estender por 3 a 4 semanas durante a terapêutica imunossupressora.(114,115) Neste período, observam-se diversas alterações digestivas, como náuseas, vômitos, mucosite, diarreia e malabsorção de nutrientes; consequentemente, ocorre prejuízo da alimentação oral e enteral, além do agravamento do estado nutricional do paciente.(4) Simultaneamente, trata-se de período em que as necessidades energéticas elevam até três vezes a taxa metabólica basal, dificultando ainda mais a adequação da ingestão de nutrientes para atender a essa demanda.(116)
A literatura é contraditória quanto ao real benefício da NPT no contexto do TCTH. Estudos demonstram que seu emprego profilático estaria associado a importantes efeitos adversos e, portanto, o seu risco-benefício deveria ser avaliado.(56) Szeluga et al.,(117) conduziram estudo prospectivo e randomizado comparando o uso de nutrição parenteral com programa de nutrição enteral em paciente submetido ao TCTH e concluíram que o emprego de nutrição parenteral foi associado a maior uso de diuréticos, maior incidência de hiperglicemia e mais complicações relacionadas ao cateter. Concomitantemente, não houve diferença na taxa de recuperação hematopoiética e tampouco tempo de hospitalização ou sobrevida, além de aumentar os custos da terapia em duas a três vezes.(117)
Em outro estudo comparando o emprego da nutrição parenteral versus enteral, novamente a nutrição parenteral foi associada a maiores complicações relacionadas ao cateter venoso(72,118) e ao atraso da enxertia plaquetária após o TCTH.(119)
Mediante as controvérsias dos benefícios da NPT, é recomendado, então, que seja aplicado um protocolo de triagem nutricional para identificar quais seriam os pacientes que mais se beneficiariam deste tipo de intervenção. Alguns critérios sugeridos para o uso da NPT seriam desnutrição grave à admissão hospitalar, longo período de ingestão insuficiente de nutrientes (cerca de 7 a 10 dias) e perda de peso superior a 10% durante o tratamento.(120)
Segundo recomendações internacionais,(72,121) não há, até o momento, limite de idade para a indicação de NPT. Entretanto, há o consenso de que a NPT seja indicada para pacientes que não atinjam suas necessidades nutricionais pela rota oral/enteral. É recomendado que a NPT seja instituída em idosos frente a um período de jejum acima de 3 dias ou caso haja uma previsão de ingestão calórica insuficiente por mais de 7 a 10 dias, quando a rota enteral não é possível ou não tolerada.(113) As complicações metabólicas são mais frequentes em idosos (por exemplo, hiperglicemia, disfunção cardíaca e renal), justificando-se o emprego de soluções com elevado teor lipídico.(113) Até o momento, não há benefício adicional com a adição de vitaminas e antioxidantes,(56) exceto a redução na taxa de infecção de corrente sanguínea com adição de glutamina à NPT.(72,118)
Em suma, durante o TCTH, é aconselhado que a NPT seja reservada para os pacientes que não ingerem acima de 50% de suas necessidades calóricas por via oral e que são intolerantes à nutrição enteral.(115) As vias oral e enteral devem ser sempre preferenciais, e a via parenteral é indicada somente em casos de falência gastrintestinal ou intolerância à dieta oral/enteral.
O regime de condicionamento do TCTH, incluindo quimioterapia intensiva e irradiação total do corpo, pode causar efeitos nocivos no trato digestivo, como mucosite, náuseas, vômitos e diarreia, resultando em ingestão oral insuficiente e malabsorção gastrintestinal.(122,123)
A maioria dos pacientes inicia o tratamento em eutrofia, mas sofre rápida depleção do estado nutricional pelos efeitos tóxicos diretos do tratamento ou devido a complicações secundárias, como infecções e DECH. Efeitos colaterais relacionados à quimioterapia, como náusea, êmese, disosmia, disgeusia, xerostomia, sialorreia, mucosite, hiporexia, diarreia, obstipação, desconforto abdominal e saciedade precoce afetam a ingestão dietética.(56,124) Além disso, a incidência de toxicidade induzida pela quimioterapia é maior em pacientes desnutridos, o que pode ocorrer por superestimação da dose da droga usualmente calculada, baseando-se somente no peso do paciente e não na composição corporal.(56)
O trato gastrintestinal é o órgão mais afetado pelo regime de condicionamento devido à sua rápida divisão e regeneração.(123) O condicionamento induz a intenso quadro inflamatório, que causa dano ao trato gastrintestinal com graus variados de mucosite e, com a perda da função das células epiteliais, aumenta a chance de translocação bacteriana e quadros infecciosos abdominais.(125)
Úlceras e feridas dolorosas na boca, lábios, gengivas e gargantas ocorrem geralmente 5 a 7 dias após o condicionamento, e podem ser vistas em até 90% dos casos.(125) Sintomas gastresofágicos estão relacionados a refluxo gástrico, dismotilidade esofagiana e estase gástrica secundária ao uso excessivo de medicação, infecções e quadro inflamatório local.(126)
Diarreia ocorre em mais da metade dos pacientes devido à elevada dose de quimioterapia, infecções bacterianas como Clostridium difficile, uso de antibióticos e DECH.(123) Em decorrência do quadro de imunossupressão, algumas infecções virais, como herpes simples, citomegalovírus e varicela-zoster, e outras enterites virais, como Rotavírus, norovírus e adenovírus, além de parasitoses intestinais (Giardia lamblia e criptosporidiose), podem acometer todo o trato gastrintestinal, causando sintomatologia.(123) Outra complicação comum ao TCTH é o DECH.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o cuidado paliativo (CP) é a abordagem que promove qualidade de vida aos pacientes e familiares que enfrentam problemas associados a doenças ameaçadoras da vida, prevenindo e aliviando o sofrimento, por meio de identificação precoce, avaliação e tratamento da dor, e de outros problemas de natureza física, psicossocial e espiritual.(127,128)
Englobar o CP ao TCTH ainda é um desafio e uma novidade entre os centros de TCTH do mundo todo.(129) Geralmente, a equipe de CP é acionada apenas no final de vida do paciente e/ou após longo período na unidade de terapia intensiva.(129) Porém, a implementação do programa de CP precocemente ao TCTH, não apenas nas condições anteriormente citadas, leva à melhora da qualidade de vida, dos índices de ansiedade e depressão, e do custo-benefício do tratamento, uma vez que permite melhor controle dos sintomas físicos e emocionais durante todo o processo.(130,131) Do ponto de vista nutricional, os sintomas e complicações como dor, mucosite, depressão, náusea, perda de apetite e fadiga, tão comuns do TCTH, afetam diretamente a aceitação oral do paciente e apresentam melhora quando a equipe do CP está envolvida.(129)
O comportamento e a memória alimentar estão associados a crenças e hábitos alimentares, com base na cultura e na tradição familiar, e a simbolismos de prosperidade, saúde, força, amor, cuidado e carinho.(128) As memórias de paladar, sabor, textura e cheiro dos alimentos estão associadas a atividades e eventos importantes.(128) Portanto, o alimento tem significação que vai muito além de suprir necessidades fisiológicas.(128)
O objetivo da TN em CP pode ser o de aumentar a longevidade em algumas situações, mas deve sempre estar focado em promover qualidade de vida.(132)
Para pacientes em CP fora do período considerado fase final de vida, não há nada diferente do ponto de vista nutricional, em relação ao que já foi discutido em todo o consenso. As principais diferenças nos objetivos do cuidado e condutas nutricionais ocorrerão no período de final de vida.
O final de vida é definido como a fase na qual o paciente está convivendo com uma doença que invariavelmente o levará à morte.(133) Quanto antes for abordado, melhores serão o controle dos sintomas, o apoio psicológico e social oferecido ao paciente e à família, e a abordagem quanto às decisões de cuidados nessa fase da doença.(133)
O papel do CP no final de vida envolve a melhora da qualidade de vida, levando-se em consideração o sofrimento, as preferências e os valores do paciente, cuidadores e família, possibilitando o melhor suporte psicológico, físico, religioso e social possível, e cresce em importância à medida que a morte se aproxima.(133-135) Alguns sinais podem indicar os últimos dias de vida, como manchas na pele, extremidades frias, respiração bucal com hiperextensão de pescoço, mudança do padrão respiratório do tipo Cheyne-Stokes, clamar por familiares ou amigos mortos, falar sobre preparativos para uma longa viagem e períodos de sonolência.(134)
Em 2010, o Código de Ética Médica brasileiro endossou o cuidado de pacientes em final de vida com o objetivo de uma boa morte, com dignidade e sem a necessidade de realizarem-se terapêuticas consideradas fúteis, isto é, que não beneficiam o paciente em nenhum aspecto, caracterizando a ortotanásia.(135) A ortotanásia, que vem do grego “orthós” (normal) e “thanatos” (morte), é definida como o processo natural de morte, sem o uso de recursos terapêuticos que adiem esse desfecho.(135-137) Nela, a morte ocorre em decorrência da abstenção, da supressão ou da limitação de tratamentos considerados desproporcionais à terminalidade do paciente, não sendo nem buscada pela equipe ou pelo paciente e nem provocada.(136)
Outro termo importante relacionado a final de vida é a distanásia, cuja etimologia grega significa “dis” (distanciamento) e “thanatos” (morte), que ocorre quando medidas terapêuticas não indicadas e/ou consideradas fúteis são tomadas, levando ao sofrimento desnecessário do paciente terminal.(135-139) A distanásia deixa a qualidade de vida do paciente em segundo plano, sendo uma terapêutica de obstinação sem alcance curativo.(138,139)
A eutanásia é diferente da ortotanásia e da distanásia, podendo ser traduzida como a “boa morte”, “morte sem dor” ou “morte sem sofrimento”.(138) A eutanásia, que pode ser classificada em ativa, passiva, voluntária e involuntária, não é legalmente permitida em alguns países, incluindo o Brasil.(135-137) Eutanásia ativa é caracterizada pela participação direta do médico, que faz administração de drogas letais para provocar a morte; a passiva refere-se à retirada ou à não introdução de medidas terapêuticas – neste caso, de medidas não consideradas fúteis, levando ao óbito; a voluntária caracteriza-se pela solicitação do paciente por uma intervenção que leve à sua morte; e a involuntária ocorre quando o paciente não consente nenhuma prática ativa ou passiva que leve à sua morte.(135,136,138)
Um último conceito é o suicídio assistido, que se caracteriza pela morte provocada pelo paciente com a conivência e/ou ajuda intencional de outra pessoa, que pode ser um médico e/ou alguém da família.(136-139) Essa prática também não é permitida em território brasileiro.
No final de vida, observamos perda de peso secundária à astenia e à caquexia, principalmente em pacientes oncológicos.(140) Muitos sintomas, como anorexia, xerostomia, náusea, disgeusia, saciedade precoce, disfagia, fraqueza e confusão, podem contribuir direta ou indiretamente para a redução da ingestão oral nesses pacientes.(140,141) Não obstante, a maioria dos doentes em fase final de vida apresenta redução importante do apetite e da sede, manifestando saciedade com menores quantidades de alimento ingerido.(142)
O emprego de alimentação artificial, seja por via enteral ou parenteral, comprovadamente não apresenta benefício clínico - pelo contrário, pode até ocasionar sofrimento ao paciente.(108,127,140,142,143)
A dieta enteral tem sido associada a efeitos colaterais deletérios, como dor, sangramento no local de inserção da sonda, diarreia, constipação, aspiração, deficiência de eletrólitos, hiperglicemia e síndrome de realimentação.(140) A dieta parenteral pode ocasionar complicações mais graves, como sepse, oscilações da glicemia, disfunção hepática, alteração eletrolítica e hipervolemia.(140)
O objetivo da TN deve estar focado em melhorar a qualidade de vida e promover o conforto. Para tal, recomenda-se que as necessidades individuais sejam respeitadas, como seus hábitos e preferências alimentares fundamentais, controle de sintomas e satisfação.(108,132,141,143,144)
Considerando todos esses itens, para os pacientes em final de vida teremos a seguinte conduta nutricional: oferecer alimentos que tragam conforto e satisfação, de acordo com a vontade do paciente; respeitar a recusa alimentar, quando presente; oferecer metade da porção, fracionando os alimentos em pequenas quantidades, caso assim seja solicitado pelo paciente; respeitar o tempo necessário para o indivíduo fazer suas refeições, respeitando seu ritmo e seus horários de preferência; não restringir dieta e alimentos (por exemplo, evitar restrição de carboidratos para um paciente diabético); não administrar dieta enteral e parenteral (apenas em caso de exceção); orientar a equipe multiprofissional de modo que o emprego de nutrição enteral e parenteral não traga qualquer benefício ao paciente em final de vida; respeitar a vontade e a autonomia do paciente; liberar alimentos externos que se adequem às normas do hospital, quando internados; melhorar a qualidade de vida do paciente; e propiciar ambiente tranquilo e adequado para que o paciente tenha suas refeições.
Tanto o CP quanto o cuidado nutricional devem estar presentes desde o início do procedimento do TCTH, a fim de promover melhora dos sintomas e qualidade de vida para pacientes e famílias. Priorizar conforto e respeitar a autonomia são fundamentais e tornam-se cada vez mais o foco principal do cuidado, à medida que terapias curativas mostram-se ineficazes, e o final da vida se aproxima. Compreender que o significado e a simbologia da alimentação para cada paciente e família neste cenário têm uma importância que transcende as necessidades fisiológicas e nutricionais é imprescindível.