versão On-line ISSN 1807-5762
Interface (Botucatu) vol.21 no.61 Botucatu abr./jun. 2017 Epub 15-Dez-2016
http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622015.0841
This qualitative study analyzed couples’ perceptions about the factors that contextualize informed consent regarding embryo cryopreservation, through 34 semi-structured interviews, in Portugal. Data were analyzed according to the principles of grounded theory. The results revealed the following needs: timely provision of detailed, accurate and intelligible information about the costs of cryopreservation, embryo storage limit and embryo disposition; reinforcement of physical privacy; availability of time to reflect about embryo disposition and disclosure of users’ identities. The conditions of administration of the informed consent appear to threaten three of its fundamental elements: information, voluntarism and reflection. The development of professional and ethical guidelines is necessary to ensure the implementation of a consent process characterized by practices of counseling and information adapted to patients’ needs and expectations.
Key words: Informed consent; Cryopreservation; Patient-centered care; Fertilization in vitro; Embryo disposition
Este estudio cualitativo analizó las percepciones de parejas en lo que se refiere a los factores que contextualizan el consentimiento libre e informado en la crio-preservación de embriones, a partir de 34 entrevistas semi-estructuradas realizadas en Portugal. Se analizaron los datos según los principios de la grounded theory. De los resultados surgieron las necesidades siguientes: provisión de informaciones detalladas, rigurosas, coherentes y en el tiempo adecuado sobre los costos y duración de la crio-preservación y el destino de los embriones; refuerzo de la privacidad física, tiempo para reflexionar sobre el destino de los embriones y la divulgación de la identidad de los beneficiarios. Las condiciones de aplicación del consentimiento parecen amenazar tres de sus elementos fundamentales: información, voluntarismo y ponderación. Es importante desarrollar orientaciones ético-profesionales que aseguren un consentimiento pleno en prácticas de aconsejamiento y prestación de informaciones adecuadas a las necesidades y expectativas de los pacientes.
Palabras-clave: Consentimiento libre e informado; Crio-preservación; Asistencia centrada en el paciente; Fertilización in vitro; Destino del embrión
A criopreservação de embriões é, na maioria dos países, acompanhada da assinatura de um consentimento livre e esclarecido por parte de usuários de técnicas de Procriação Medicamente Assistida (PMA)1,2. Em Portugal, existem 23 modelos de consentimento aprovados e revistos pelo Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida; o modelo relativo à criopreservação de embriões3 inclui informações sobre os respectivos benefícios, riscos e limitações, e menciona a duração da criopreservação (três anos) e os destinos dos embriões criopreservados - utilização pelo casal, doação para outros casais inférteis, doação para investigação e destruição(f).
O consentimento é assinado pelo/a médico/a e pelo casal beneficiário, sendo passível de revogação por qualquer um dos membros do casal. O casal formaliza a decisão quanto ao destino dos seus embriões criopreservados e à divulgação da sua identidade nas situações legalmente previstas ao escrever “sim” ou “não” à frente das seguintes afirmações: “consentimos no uso dos nossos embriões para doação a outros casais inférteis”; “consentimos no uso dos nossos embriões em projetos de investigação científica”; e “autorizamos que o Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida divulgue as nossas identidades, nos casos excecionalmente previstos no nº 3 do artigo 15.º da Lei nº 32/2006 de 26 de julho”, ou seja, quando as pessoas nascidas em consequência da dádiva de embriões solicitem informações que lhes digam respeito para averiguar eventual existência de impedimento legal a projetado casamento.
A decisão sobre o destino dos embriões criopreservados é particularmente desafiadora e difícil4-7, sendo os embriões percecionados pelos casais como objetos médicos ou epistémicos para utilização em investigação e para a prática clínica e, simultaneamente, como objetos ontológicos para fins reprodutivos7. A possibilidade de doar embriões pode ser enquadrada numa ética de solidariedade e altruísmo e perspetivada como um contributo para o desenvolvimento científico ou para a saúde e bem-estar de casais inférteis ou da população em geral7-9. No entanto, esta hipótese também pode originar preocupações quanto à proteção e estatuto do embrião criopreservado4,10,11, discordância entre os membros do casal12 e, ainda, questionar a confiança depositada nos médicos ou investigadores, por escassez de informação e/ou de aconselhamento13-15. Neste contexto, há casais que tentam prolongar a criopreservação, adiando a decisão em relação ao destino dos embriões criopreservados5,16 enquanto sentem inconstância nas suas preferências17,18.
A obtenção do consentimento pode consubstanciar uma estratégia de humanização, democratização, prestação de contas e transparência de processos e decisões19, ao favorecer o diálogo entre profissionais de saúde e beneficiários20 e ao proporcionar uma reflexão sobre a criopreservação por parte de todos os atores envolvidos. No entanto, pode também reduzir-se a uma formalidade ou revelar-se uma prática problemática ao transferir responsabilidades complexas para o casal e, ao fazê-lo, os profissionais de saúde procuram, sobretudo, proteger-se legalmente do que informar os pacientes21-23. Globalmente, importa que o consentimento seja informado (o que exige a compreensão do respetivo conteúdo e das informações orais e escritas facultadas adicionalmente), voluntário (sem qualquer tipo de pressão ou coação, externa ou interna, na tomada de decisão) e ponderado (precedido de tempo para refletir), elementos especialmente relevantes quando o processo de decisão passa pela procura de consenso entre os elementos do casal24,25.
Assegurar a qualidade das práticas que envolvem a prestação do consentimento para a criopreservação de embriões afigura-se, assim, como um elemento central na provisão de cuidados centrados no paciente, ou seja, cuidados respeitadores e responsivos às necessidades, valores e preferências dos casais26. Para esse efeito, importa conhecer as perspetivas dos beneficiários quanto aos fatores organizacionais (por exemplo, provisão de informação, competência, coordenação e integração dos profissionais de saúde, conforto físico e acessibilidade) e humanos (entre outros, atitude e relação com os profissionais de saúde, comunicação, envolvimento dos pacientes, privacidade e suporte emocional) que contextualizam o consentimento27,28. Este conhecimento é relevante considerando a ausência de orientações e de guias de prática clínica, em Portugal, com indicações sobre as circunstâncias em que o consentimento deve ser entregue, explicado e assinado2.
No entanto, a escassa literatura sobre as visões dos usuários em torno da criopreservação de embriões tem descurado a análise do consentimento livre e esclarecido, focalizando a atenção nas perceções sobre a segurança dos procedimentos envolvidos na criopreservação e repercussões na viabilidade e qualidade dos embriões e na eficácia dos tratamentos29-32, nas opiniões sobre a duração máxima da criopreservação33, e nos fatores que influenciam o processo de decisão quanto ao destino dos embriões criopreservados7.
Neste artigo, a análise das perceções de casais usuários de medicina da reprodução sobre o consentimento livre e esclarecido para a criopreservação de embriões servirá de mote para refletir sobre reconfigurações na prática clínica e respetiva regulação, enquadradas na provisão de cuidados de saúde centrados no paciente.
O estudo das racionalidades e atribuições de significados ao consentimento livre e esclarecido por parte de usuários e a análise da pluridimensionalidade das suas vivências e visões afiguram-se como problemáticas que não podem ser apreendidas através de metodologias quantitativas. Neste estudo adotou-se uma perspetiva teórico-metodológica de tipo interpretativo e qualitativo e orientada pelo princípio da abdução, segundo a qual os conhecimentos produzidos estão estreitamente associados à realidade empírica.
Entre 17 de agosto de 2011 e 16 de agosto de 2012, todas as mulheres e homens que recorreram a fertilização in vitro ou injeção intracitoplasmática de espermatozoides numa unidade pública de Medicina da Reprodução, em Portugal(g), foram sistemática e consecutivamente convidados a participar num estudo sobre as decisões dos casais em torno da doação de embriões para investigação científica, aprovado pela Comissão de Ética para a Saúde do Centro Hospitalar de S. João, EPE. Esta Unidade só realiza tratamentos com recurso a gâmetas do casal. Aplicou-se um questionário no dia em que realizaram o exame para confirmar uma eventual gravidez, e, nessa altura, solicitou-se autorização para estabelecer um contato posterior, após 3/4 meses, no sentido de serem entrevistados.
Com base nos participantes que aceitaram ser contatados para agendar uma entrevista, constituiu-se uma amostra intencional, considerando a inclusão de casais com diferentes decisões em relação à doação de embriões para investigação científica (aceitação versus recusa) e com estatutos parentais diferenciados (gravidez versus não gravidez). Entre fevereiro e novembro de 2012, convidaram-se 56 casais para participar numa entrevista semiestruturada, 22 dos quais recusaram (13 não mencionaram o motivo, quatro alegaram falta de disponibilidade, três referiram obstáculos emocionais, um invocou doença e um casal reportou estar separado). Foram, assim, realizadas 34 entrevistas em casal, conduzidas pela mesma entrevistadora. As características dos entrevistados encontram-se descritas na Tabela 1.
Tabela 1 Características dos casais entrevistados
Entrevista* | Pseudónimos | Idades | Níveis de escolaridade | Doação de embriões para investigação | Gravidez |
---|---|---|---|---|---|
E1 | Mariana e Maurício | 28 e 27 | Licenciada e 12º ano | Sim | Sim |
E2 | Andreia e Amaro | 36 e 38 | Licenciados | Sim | Sim |
E3 | Sandra e Marco | 34 e 40 | Bacharel e 12º ano | Sim | Sim |
E4 | Sónia e Leandro | 37 e 41 | Bacharel e Licenciado | Sim | Não |
E5 | Joana e Jorge | 38 e 36 | Licenciados | Sim | Não |
E6 | Anabela e António | 35 e 43 | Mestre e Licenciado | Não | Não |
E7 | Daniela e Manuel | 35 e 38 | Licenciados | Sim | Sim |
E8 | Isabel e Tomás | 33 e 33 | 12º ano e 9º ano | Sim | Sim |
E9 | Carina e Rui | 38 e 39 | Licenciada e 12º ano | Sim | Não |
E10 | Carolina e Miguel | 25 e 30 | 12º ano e 9º ano | Sim | Não |
E11 | Camila e Augusto | 26 e 29 | 6º ano | Sim | Não |
E12 | Sara e Fausto | 37 e 35 | 6º ano | Não | Não |
E13 | Antónia e Adalberto | 31 e 36 | Licenciada e 12º ano | Sim | Sim |
E14 | Ana Maria e Roberto | 27 e 34 | 6º ano | Sim | Não |
E15 | Sílvia e Mariano | 40 e 37 | 9º ano e 12º ano | Sim | Não |
E16 | Dalila e Jaime | 34 e 36 | Licenciada e Bacharel | Sim | Não |
E17 | Aurélia e André | 36 e 36 | Licenciados | Sim | Não |
E18 | Maria e Cláudio | 33 e 32 | 9º ano e 6º ano | Sim | Sim |
E19 | Madalena e Josué | 38 e 35 | Licenciados | Não | Não |
E20 | Cátia e Justino | 39 e 42 | Mestre e Licenciado | Sim | Sim |
E21 | Manuela e Gustavo | 38 e 38 | Licenciados | Sim | Não |
E22 | Rosana e Nicolau | 30 e 40 | Licenciados | Sim | Sim |
E23 | Soraia e Horácio | 37 e 40 | 6º ano e 12º ano | Não | Sim |
E24 | Idalina e Nelson | 38 e 35 | 12º ano | Não | Sim |
E25 | Ana e Moisés | 26 e 33 | 6º ano | Sim | Não |
E26 | Ivone e Rogério | 34 e 33 | Licenciados | Não | Sim |
E27 | Patrícia e Ernesto | 37 e 41 | Licenciada e Mestre | Não | Não |
E28 | Tanya e Denys | 38 e 34 | 12º ano | Não | Sim |
E29 | Rita e Joel | 33 e 33 | Licenciados | Sim | Sim |
E30 | Célia e Américo | 35 e 46 | 12º ano | Sim | Sim |
E31 | Laurinda e Hernâni | 39 e 39 | 12º ano e Licenciado | Não | Sim |
E32 | Erica e Daniel | 34 e 35 | Licenciados | Sim | Não |
E33 | Mónica e Nilton | 36 e 38 | Licenciada e Mestre | Sim | Não |
E34 | Eugénia e Marcos | 32 e 34 | Licenciada e Mestre | Sim | Não |
* Os participantes são descritos na tabela pela ordem de realização das entrevistas; no código alfanumérico atribuído a cada casal, os algarismos correspondem ao número de ordem da entrevista.
Neste artigo, analisam-se as respostas às seguintes questões: Vocês assinaram um consentimento onde declararam a vossa decisão sobre o destino dos embriões. Podem falar-me um pouco desse momento? Como reagiram? O que sentiram? Alguém vos informou ou aconselhou nesse processo? De que forma?
As respostas obtidas foram sistematicamente comparadas, sintetizadas e codificadas por temas e por categorias, de acordo com os princípios da grounded theory34,35. Decorrendo de uma perspetiva construtivista, esta abordagem visa apreender a realidade social por meio dos significados que os indivíduos atribuem aos objetos, às suas ações e interações com os outros e com o mundo, através de um processo indutivo de construção de conhecimento baseado na análise e constante comparação, interpretação e concetualização dos dados recolhidos, onde é fulcral a sensibilidade teórica do pesquisador. A análise de conteúdo e a interpretação dos resultados basearam-se numa abordagem qualitativa36, explorando a provisão de cuidados de saúde centrados no paciente27,28 por intermédio da dissecação de um conjunto selecionado de extratos ilustrativos das perceções dos casais entrevistados em torno do consentimento livre e esclarecido na criopreservação de embriões, usando pseudónimos para os identificar. Os dados foram analisados por dois dos autores de forma independente e autónoma e, posteriormente, todas as dúvidas foram resolvidas por discussão conjunta até se obter consenso. Utilizou-se o software NVivo 10 na análise dos dados.
A perceção de que o consentimento constituiu um instrumento formal, diluído num conjunto de memórias associadas a outras fases do tratamento, foi dominante nas narrativas dos entrevistados. Estes utilizaram, frequentemente, expressões como “papéis”, “papelada”, “folhinha”, “questionário” e “documentos” para se referirem ao consentimento, situando, de forma difusa, a sua assinatura entre “os momentos vários em que lá vamos [ao centro de PMA]” (E34). Anabela, por exemplo, perspetivou o consentimento como “mais um formulário”, enquadrando a sua opinião na falta de informação detalhada sobre o mesmo e no tempo que esperou para ser atendida:
Anabela – “Não houve uma informação detalhada e […] as pessoas estão ali […] três horas à espera. […] Salvo as pessoas que estejam mais sensibilizadas e que até tenham algum conhecimento de causa, [as outras preenchem o consentimento como] mais um formulário.” (E6)
Um dos fatores que, na perspetiva dos entrevistados, contribuiu para a concetualização do consentimento como uma formalidade foi a inadequação do momento em que é assinado. A grande maioria mencionou ter assinado o consentimento “à toa”, “em cima do joelho” ou “à pressa”, após a transferência de embriões, num contexto de relativa sonolência e desgaste – “uma altura em que eu estava ainda […] meia abananada” (E5) – e onde imperavam outras preocupações, como assegurar a maximização da probabilidade de confirmar uma gravidez. Os relatos seguintes alertam para a necessidade de considerar um eventual estado de dissonância cognitiva e/ou afetiva dos casais na definição do momento adequado para assinar o consentimento sobre a criopreservação de embriões17, ao evidenciar como o foco no sucesso do tratamento37 não favorece a reflexão nem a decisão autónoma sobre questões que não visem diretamente o alcance da gravidez:
Rita – “Ali foi uma pressão: assinem, leiam, assinem! E uma pessoa está tão focada na gravidez, quer um bebé...” (E29)
Mónica – “Foi uma época um bocadinho complicada para mim, porque eu tinha tanta coisa na cabeça que, realmente, quando [os profissionais de saúde] me diziam para assinar [um documento] eu era quase de cruz.
Nilton - Sim, é verdade!” (E33)
Maurício – “Agora, que as coisas já estão bem encaminhadas [gravidez confirmada], acho que temos outra disponibilidade para pensar sobre o assunto e, com clareza, dizer o que é que queríamos e o que é que gostávamos em função daquilo que sabemos ou que nos informaram.” (E1)
Também a escolha de profissionais não qualificados para aplicar o consentimento sustentou a perceção de que este se reduz a um instrumento formal. De acordo com as situações relatadas pelos entrevistados, tal tarefa coube maioritariamente à rececionista e, muito raramente, a biólogos. A maioria dos casais enquadrou a delegação da entrega do consentimento a um profissional menos qualificado na falta de tempo dos médicos para o fazer, devido ao excesso de trabalho. O recurso a este argumento coexistiu com o reconhecimento da ausência de competências dos profissionais administrativos para proporcionarem informações adicionais e esclarecerem dúvidas específicas sobre o conteúdo do consentimento, como ilustra o diálogo estabelecido entre Nicolau e Rosana.
Nicolau – “A rececionista não foi, de maneira nenhuma, mal-educada nem nada dessas coisas, nem [nos] despachou. […] Só que ela tem sempre muita coisa que fazer e pode haver certas coisas que…
Rosana – Há coisas que ela não consegue explicar, não é?” (E22)
Os entrevistados alertaram para a necessidade de contemplar tais competências na definição do perfil adequado dos profissionais responsáveis pela aplicação do consentimento sobre a criopreservação dos embriões, independentemente do grupo profissional que o faça – médicos, enfermeiros, biólogos ou embriologistas.
Os entrevistados salientaram a necessidade de lhes disponibilizarem informações detalhadas e no tempo adequado sobre os seguintes tópicos: 1) quem suporta os custos financeiros da criopreservação e qual o montante; 2) vantagens e desvantagens associadas aos diferentes destinos dos embriões criopreservados, nomeadamente informações adicionais sobre os projetos de investigação que os pretendem utilizar e sobre a eventual ocorrência de nascimentos de embriões doados a outros casais, assim como sobre o destino efetivo dos embriões doados; 3) possibilidade de poder alterar as decisões formalizadas no consentimento. Mariana, por exemplo, preocupou-se em esclarecer o destino efetivo dos embriões após os três anos de criopreservação, indagando a possibilidade de os embriões serem eliminados:
Mariana – “A minha pergunta foi: E passados os dois anos ou três […] deitam fora? […] Eles [profissionais de saúde] disseram: Não, […] se quiser continuar com eles criopreservados é só informar-nos que continuam”. (E1)
A informação oral sobre a oportunidade de prolongar a criopreservação para além do período legalmente previsto, com base na simples solicitação do casal, contraria a seguinte informação escrita no consentimento: “Compreendemos que, de acordo com a legislação em vigor, os embriões serão conservados por um período máximo de três anos e que, decorrido este prazo, se os embriões não tiverem sido por nós utilizados ou não lhes tiver sido dada outra utilização por nós consentida, serão descongelados e eliminados”. Também o relato de Antónia evidencia contradições no esclarecimento de dúvidas acerca dos custos financeiros a suportar pelo casal no âmbito da criopreservação:
Antónia – “Lemos [o consentimento] […[ e perguntamos: “Olhe, ninguém nos informou sobre os custos. Qual é o custo?”. E a senhora [rececionista] também não sabia dizer e foi perguntar ao enfermeiro, que depois acabou por dar a resposta errada. Nós depois tivemos que pagar […], mas a resposta que nos deram era que não haveria custos. […] Não sei se foi 20€, se foi 25€ por cada um [embrião] que pagamos. Mas eu depois ainda perguntei: “Mas isso é por ano ou é para os três anos?”. Não me sabiam dizer!” (E13)
Estas situações alertam para a importância de assegurar o rigor e a qualidade das informações prestadas pelos profissionais de saúde, elementos que facilitam a obtenção de consenso entre os elementos do casal e têm sido associados à diminuição dos seus níveis de ansiedade12,16,17,38,39. O investimento no reforço da informação é especialmente relevante num contexto em que a maioria dos entrevistados realçou a confiança depositada em todos os profissionais que os acompanharam, ainda que elegessem os médicos e, esporadicamente, os biólogos como os profissionais melhor posicionados para prestar informações no âmbito da criopreservação de embriões – “um médico ou um biólogo; quem esteja dentro [do assunto]” (E27).
A otimização da prestação de um consentimento na criopreservação de embriões passa, na perspetiva dos entrevistados, por um processo bidirecional contínuo e dinâmico que envolve, simultaneamente, os casais e os profissionais de saúde, em particular o/a médico/a responsável pela assinatura do consentimento. O acesso a informação pormenorizada e coerente surgiu frequentemente articulado com a necessidade de promover a disponibilidade, solicitude e sensibilidade dos profissionais de saúde para: explicar conteúdos de natureza técnica e científica; esclarecer dúvidas; e proporcionar aconselhamento no processo de decisão em torno das questões colocadas no consentimento (o destino dos embriões criopreservados e a divulgação da identidade dos beneficiários nos casos legalmente previstos). Estes processos ocorrerão, sobretudo, nos casos em que os casais sentem tais necessidades e deverão respeitar a liberdade das escolhas individuais:
Maurício – “Eu, agora que volto atrás, digo que o facto de não ser apoiada a decisão permite total anonimato e liberdade aos decisores, que somos nós, de tomarem a sua decisão.” (E1)
Os entrevistados também salientaram a sua própria responsabilidade na procura ativa de informações, questionando diretamente os profissionais de saúde e/ou utilizando diversas fontes de informação (por exemplo, internet e folhetos disponíveis em diversos centros), existindo casais que se culpabilizaram por não o ter feito:
Mariana – “Se nós tivéssemos mais perguntas para fazer, de certeza que [os profissionais de saúde] nos respondiam.” (E1)
Rita – “Realmente, nós somos uns inconscientes! Devíamos ter pensado nisto [decisão em torno do destino dos embriões criopreservados], devíamos ter falado disto em casa os dois.
Joel – Bom, eu não senti que fossemos inconscientes. A questão é que teria sido, de facto, melhor.” (E29)
Nas narrativas dos entrevistados, emergiu a necessidade de reforçar a privacidade física no contexto da assinatura do consentimento, ou seja, o direito do casal a estar sozinho ou num espaço físico com acessibilidade limitada. A maioria dos casais manifestou “incómodo” ou “desconforto” por ter assinado o consentimento na sala de espera, diante de outras pessoas e, muitas vezes, a pé e junto ao balcão de atendimento, local de passagem obrigatória para aceder à porta que dá acesso aos consultórios, gabinetes e salas de exame:
António – “[Assinei o consentimento] Na receção, depois de ter estado quatro horas à espera e já com outras pessoas ali que estavam a ser chamadas, e têm que passar por aquele guiché para entrar. Portanto, sem condições, com poucas, com fracas condições para poder tomar uma decisão.” (E6)
Rita – “Estarmos ali os dois ao balcão a falar [sobre a nossa decisão]… Imagine o que é uma sala cheia de gente: aquela sala é pequenina, uma pessoa tem os bancos, mas está sempre cheia, e estamos ali a assinar! […] Pois, eu nem me senti bem!” (E29)
Alguns casais referiram ter saído da sala de espera para ler e assinar o consentimento num espaço público imediatamente contíguo, junto aos elevadores, com o objetivo de conquistar alguma reserva e recolhimento enquanto dialogavam sobre as decisões a tomar: “Fomos para junto dos elevadores para falarmos um bocadinho, mas foi uma coisa de dois minutos” (Carina, E9).
De acordo com os entrevistados, o tempo proporcionado para refletir sobre o consentimento livre e esclarecido foi escasso, considerando a sensibilidade das questões colocadas sobre o destino dos embriões criopreservados e sobre a divulgação da identidade dos beneficiários, assim como as eventuais dificuldades associadas à procura de consenso entre os membros do casal.
Rita – “Não foi uma coisa [assinar o consentimento] muito refletida.
Joel – Sim. Com essa formalidade de termos objetivamente ali aquilo apresentado, falarmos sobre qual é que ia ser a nossa decisão e de pensarmos um bocadinho o que é que queríamos.” (E29)
Horácio – “Eu acho que é um tema muito delicado e não pode ser pensado nem decidido logo na hora. Devíamos ter mais tempo […] e tirarmos as nossas dúvidas.” (E23)
Alguns entrevistados sugeriram abrir a possibilidade de levar o consentimento para casa antes de o assinarem, maximizando, desta forma, o tempo de reflexão, discussão e eventual aconselhamento. Marco, por exemplo, mencionou não ter sentido dificuldades em assinar o consentimento de imediato, mas reconheceu que outras pessoas poderão necessitar de mais tempo para solidificar o processo de tomada de decisão:
Marco – “[Para nós] Foi fácil [decidir de imediato], mas acho que há pessoas que ficam ali a pensar se estão a tomar uma decisão correta ou não. Se calhar, queriam voltar para casa, aconselhar-se com alguém. […] Aí as decisões seriam mais sólidas, mais seguras.” (E3)
De facto, a maioria dos entrevistados recordou a “surpresa” que sentiu perante a solicitação da assinatura do consentimento – “foi uma surpresa, porque nunca achei que fosse ali naquela hora, sem apoio, sem mais explicações. Por isso é que, entretanto, acho que já mudei de ideias” (E32). As suas narrativas expressam, frequentemente, a necessidade de dispor de mais tempo para refletir, o que possibilitaria uma melhor gestão das emoções e mais certeza e segurança nas decisões a tomar:
Daniela – “Mas quando se começa a ler [o consentimento]…
Manuel – Assusta!
Daniela – Assusta, assusta! […] É a decisão sobre aquilo que pode ser, na minha conceção, um ser humano.” (E7)
Américo – “Fui eu que preenchi o papel [consentimento] e assinalei sim nos dois casos [doação para outros casais e doação para investigação científica]. Mas depois, quando dei [à companheira] para assinar, ela leu melhor […] e começou a chorar. […] E depois foi pedir o papel novamente [à secretária] para alterar a decisão para [não doar a outros] casais.” (E30)
Leandro – “Eu realmente não pensei muito naquele momento. […]
Sónia – Eu já tinha posto a cruz e ele só assinou. […]
Leandro – Concordei [com a decisão dela]. Fui um bocado empurrado a concordar, mas concordei.” [E4]
No discurso dos entrevistados prevaleceu a perceção do consentimento como um formalismo, diluído em memórias associadas a outras fases do tratamento. Destacou-se a inadequação do momento em que o consentimento é assinado (após a transferência de embriões, quando imperavam outras preocupações associadas ao sucesso do tratamento) e a escolha de profissionais não qualificados para o entregar. Os casais realçaram a necessidade de investir nos seguintes aspetos: provisão de informações detalhadas, rigorosas, coerentes, e no tempo adequado, sobre os custos e a duração máxima da criopreservação e os destinos dos embriões criopreservados; reforço da privacidade física; e dispor de tempo para refletir sobre as suas decisões quanto ao destino dos embriões criopreservados e à divulgação da identidade do casal. Estas condições parecem ameaçar elementos fundamentais do consentimento – informação, voluntarismo e ponderação, convidando a refletir sobre três dimensões centrais na provisão de cuidados de saúde centrados no paciente, com implicações para a prática clínica e para a regulação.
Primeiro, este estudo salienta a necessidade de se investir no desenvolvimento de orientações que regulem o momento da entrega e da assinatura do consentimento, assim como o perfil dos profissionais de saúde com competência e qualificações para acompanhar os casais nessas situações. Ainda que alguns países prevejam a assinatura do consentimento antes do primeiro tratamento40, durante o tratamento41 ou após a conclusão do tratamento42, não existe estandardização deste procedimento entre países, e a legislação é omissa a este respeito em Portugal. Na definição desses momentos, importa considerar as trajetórias reprodutivas dos casais e proporcionar-lhes tempo para refletirem sobre as decisões a tomar. Estudos prévios mostram que o nascimento de um filho pode estar associado a uma mudança na decisão em relação ao destino dos embriões criopreservados43, tendo em conta que a perspetiva dos casais sobre o simbolismo atribuído ao embrião criopreservado muda, tornando-se este uma “criança virtual”16, com a qual estabelecem diversas “relações ontológicas de índole moral, afetiva e social”44. Neste sentido, o pedido do consentimento numa altura em que, para os casais, ainda não é evidente se os seus embriões serão “excedentários”, pode pôr em causa a tomada de decisão consciente e a qualidade do consentimento livre e esclarecido45.
Os resultados obtidos evidenciam, ainda, a necessidade de providenciar atempadamente informações precisas e detalhadas sobre a duração máxima da criopreservação de embriões e os custos financeiros envolvidos nesse procedimento33 e sobre os destinos efetivos dos embriões criopreservados. Importa clarificar, em especial, os objetivos dos projetos de investigação que pretendem usar os embriões9, como recomendado pela American Society for Reproductive Medicine42, num contexto em que a falta de informação é um dos aspetos apontados pelos pacientes como tendo tido mais influência na sua decisão14,17,38,46. Além disso, a informação sobre as circunstâncias em que pode ocorrer o descongelamento e a destruição dos embriões, bem como sobre os moldes em que os casais podem alterar as decisões formalizadas no consentimento, constitui um direito fundamental dos pacientes47. Importa assegurar a coerência, rigor e qualidade das informações prestadas pelos profissionais de saúde e treinar as respetivas competências comunicacionais para esclarecer dúvidas e aconselhar os casais que manifestem tais necessidades, potenciando uma comunicação efetiva entre médicos e pacientes26 e a prestação de cuidados centrados no paciente.
Este estudo mostra, por último, a importância de se reforçar a privacidade física no âmbito da assinatura do consentimento. A existência de espaços físicos confortáveis e com acesso limitado é fundamental, para que cada casal possa expressar as suas sensações e as respetivas decisões de forma autónoma e privada.
A prática de um consentimento livre e esclarecido que potencie a provisão de cuidados de saúde centrados no paciente requer que os vários aspetos que contextualizam este procedimento sejam atendidos. Considerando que a comunicação é particularmente difícil em situações que podem causar distress, moral e emocional12,14,16,48, e que a tomada de decisão dos casais no contexto do consentimento na criopreservação de embriões é fortemente influenciada pelo aconselhamento49, importa disponibilizar o apoio de profissionais qualificados e devidamente treinados50 e, também, de grupos de pares51 para minimizar a ocorrência de conflitos decisionais. Os profissionais são responsáveis por explicar conteúdos baseados na evidência e devem respeitar a liberdade de decisão dos casais52, convidando-os a expressarem as suas preferências e necessidades52. Já o apoio dos pares contribui para atenuar sentimentos de isolamento e estigmatização, e potencia o acesso a informações enraizadas em experiências comuns49.
Constituindo um importante contributo para a reflexão sobre reconfigurações na prática clínica e regulação em torno do consentimento livre e esclarecido para a criopreservação de embriões, importa ter em conta que estes resultados são válidos no contexto em que foram recolhidos, devendo ser analisados como um estudo de caso que procurou compreender e explorar a perspetiva de casais usuários de medicina da reprodução sobre este tema.