versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.35 no.11 Rio de Janeiro 2019 Epub 31-Out-2019
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00077419
No dia 26 de março de 2019, o Ministério da Justiça e Segurança Pública publicou a Portaria nº 263/20191, que institui um Grupo de Trabalho (GT) para avaliar a possibilidade de redução nos tributos dos cigarros fabricados no Brasil, visando a “diminuir o consumo de cigarros estrangeiros de baixa qualidade, o contrabando e os riscos à saúde dele decorrentes”. De acordo com essa Portaria, o GT abordaria temas como a proposição de medidas que visem à redução do consumo desses cigarros e, inclusive, a possibilidade de redução da tributação sobre aqueles fabricados no Brasil para evitar o consumo de cigarros estrangeiros de “baixa qualidade”.
A base científica utilizada para a implantação desse grupo foi o trabalho intitulado Uma Alternativa de Combate ao Contrabando de Cigarro a partir da Estimativa da Curva de Laffer e da Discussão sobre a Política de Preço Mínimo2.
O referido documento aponta que os cigarros contrabandeados não teriam as mesmas condições de qualidade dos cigarros brasileiros legalizados e, consequentemente, seriam mais danosos à saúde. Além disso, o comércio ilícito responderia por metade do mercado de cigarros.
O grupo conta com representantes da Polícia Federal, Secretaria Nacional do Consumidor, da Assessoria Especial de Assuntos Legislativos e representantes dos ministérios da Economia e da Saúde 1.
Sendo assim, o objetivo deste texto é contribuir com a análise das premissas e dos tópicos de estudos do GT e propor medidas para a redução do comércio ilícito de produtos de tabaco.
O aumento dos preços dos produtos derivados de tabaco, especialmente aquele promovido pelo aumento de impostos, é uma das maneiras mais eficazes para a redução do uso destes produtos principalmente entre os mais pobres 3,4.
Uma monografia 5, publicada pelo Instituto Nacional do Câncer dos Estados Unidos em colaboração com a Organização Mundial da Saúde (OMS), em que estudos de diversos países foram analisados, conclui que existe correlação entre impostos e preços mais altos e a redução do consumo de tabaco e na sua prevalência. A monografia conclui que um aumento de 10% no preço dos cigarros pode diminuir o consumo de tabaco em 4% nos países de alta renda e 5% em países de renda média e baixa.
Alguns autores apontam que o aumento dos impostos teria a capacidade de desestimular o consumo de tabaco de maneira mais rápida entre os mais pobres do que entre os mais ricos, o que diminuiria o impacto do custo de aquisição destes produtos nos orçamentos familiares; por esta razão, seria a intervenção com o maior potencial de diminuição das iniquidades socioeconômicas no tabagismo 6 e que ainda poderia ser um instrumento importante de redução da pobreza 7. Esse é um fato particularmente importante, porque no Brasil o tabagismo tem relação com menor renda e baixa escolaridade 8.
Por outro lado, algumas evidências apontam que o aumento de preços pode levar a uma substituição do consumo dos produtos de tabaco, entre eles produtos de origem ilícita ou outras variedades de forma de consumo 9.
No caso brasileiro, um estudo sugere que ambas as situações ocorrem. Uma redução na prevalência do tabagismo em maior grau e um aumento no consumo de produtos ilícitos em menor grau 10. Entretanto, o benefício da cessação foi mais significativo do que o aumento do comércio ilícito 10.
Somando-se a isso, a literatura científica aponta que no Brasil o aumento de impostos do cigarro, e seu consequente aumento de preço, foi a medida que mais contribuiu para a queda da prevalência do tabagismo no país 11.
No Brasil, o tabagismo é responsável por cerca de 156 mil mortes anuais, 157 mil infartos agudos do miocárdio, 75 mil acidentes vasculares cerebrais e 63 mil cânceres diagnosticados anualmente 12,13. Os eventos médicos do tabaco relacionados geram um custo para o sistema de saúde brasileiro de mais de R$ 57 bilhões/ano (0,96% do PIB), enquanto a arrecadação é em torno de R$ 13 bilhões/ano 14. Ou seja, para cada Real arrecadado com impostos de produtos de tabaco, mais de R$ 4 são gastos com tratamentos de saúde dos fumantes 13,14.
Além disso, o consumo de cigarros é também é um fator de empobrecimento, especialmente para as pessoas de baixa renda. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2002/2003 15 apontam que os brasileiros fumantes gastavam mais dinheiro com cigarros do que com a compra de arroz e feijão. Já a PNAD 2008/2009 16 apontou que as mulheres gastam por mês, em média, 12% de um salário mínimo com cigarros industrializados.
Diante do exposto, pode ser verificado que a redução dos impostos dos cigarros poderá reverter os avanços das políticas de controle do tabaco, estimular o consumo de cigarros entre os mais pobres e em última instância aumentar os níveis de pobreza. Além disso, a redução dos impostos dos cigarros irá aumentar ainda mais os gastos na manutenção da saúde que é representada pela diferença entre impostos arrecadados e as despesas médicas.
O comércio ilícito de produtos de tabaco afeta as políticas de controle por ofertar produtos mais baratos, que facilitam o acesso a estes produtos, interferindo assim nas políticas de redução de consumo baseadas no aumento dos preços destes produtos 3,4.
Dessa forma, a premissa de que o comércio ilícito impacta a saúde da população é correta, pois existe relação entre o consumo dos cigarros e uma série de enfermidades. Por outro lado, não existe evidência de que um cigarro estrangeiro supostamente de “baixa qualidade” teria maior impacto na saúde do que um cigarro brasileiro.
De acordo com a OMS, o tabaco é “mortal sob qualquer forma ou disfarce” 17. Por esse motivo, a terminologia “de baixa qualidade” não deve ser aplicada como referência aos produtos derivados do tabaco, pois a “qualidade” não diminui seus impactos negativos; basta que ele seja consumido para que tais impactos ocorram. Em resumo, ambos os produtos são igualmente danosos à saúde do ponto de vista toxicológico.
Somando-se a isso, de acordo com a entrevista concedida ao Informe ENSP18 pelo economista e especialista em economia do tabaco, Dr. Roberto Magno Iglesias, o “Brasil é o principal fornecedor do complexo produtivo do cigarro paraguaio”, incluindo-se aí a folha de tabaco e insumos para a fabricação.
Reforçando essa fala, em 2018 foram alvo de ações da Receita Federal e da Polícia Federal brasileiras, empresas acusadas de lavagem de dinheiro e de enviar tabaco ilegalmente para o Paraguai, suprindo assim com matéria-prima de origem nacional as fábricas que alimentam o mercado ilícito no Brasil 19.
Dessa forma, o discurso da “qualidade” do produto brasileiro versus produto estrangeiro perde o fundamento.
Além disso, possivelmente em decorrência do market share das marcas paraguaias no mercado brasileiro, observou-se relatos de casos de falsificação de cigarros paraguaios por fábricas clandestinas no Brasil 20,21.
Uma publicação do Instituto Nacional do Câncer (INCA) 22 aponta que 38% do mercado brasileiro de cigarros são compostos por cigarros ilícitos, enquanto entidades ligadas à indústria do tabaco informam que este percentual seria de 48% 23. Segundo o INCA, as possíveis razões para o superdimensionamento do mercado ilícito no Brasil feitas pelas indústrias seriam as de pressionar o governo para baixar os impostos do tabaco e impedir políticas de controle relevantes 22.
Uma reportagem publicada pelo jornal Folha de S.Paulo24 sugere que a indústria do tabaco poderia ter influenciado a decisão de formação do GT; o documento que serve de base científica para a implantação do GT foi elaborado a pedido de uma instituição que tem parceria com um fabricante de cigarros, apesar de os autores afirmarem que a demanda foi espontânea, sem financiamento da indústria do tabaco. A mesma reportagem apontou que representantes de fabricantes de cigarros tiveram reuniões com autoridades do governo no mês anterior à da formação do GT.
Certamente que é complexo definir se houve ou não interferência e qual a extensão desta nas políticas de preços dos cigarros e consequentemente nas políticas de saúde. Caso confirmadas, essas estratégias não seriam diferentes daquelas utilizadas pela indústria do tabaco internacionalmente 25. Nesse caso, se confirmadas, de acordo com nomenclatura de estratégias da indústria do tabaco proposta por Ulucanlar et al. 25, estas poderiam ser classificadas como estratégias discursivas de custos imprevistos para a economia e a sociedade (nos domínios econômico e de aplicação da lei); benefícios não intencionais para grupos indignos (no domínio da lucratividade dos responsáveis pelo comércio ilícito); e de benefícios previstos para a saúde pública (nos domínios das evidências científicas e do funcionamento e aplicação de políticas).
A redução dos impostos dos cigarros estudada, caso aplicada, tem potencial para reverter os avanços das políticas de controle do tabaco, aumentar as despesas com saúde, estimular o consumo de cigarros, especialmente entre os menos favorecidos e, consequentemente, aumentar os níveis de pobreza e adoecimento neste grupo.
Outro ponto importante é esclarecer que produtos ilícitos de tabaco causam impactos na saúde pública, contudo, deve-se ressaltar que todos os produtos de tabaco são intrinsecamente danosos à saúde, independentemente de sua regularidade perante o órgão sanitário e local de origem.
Somando-se a isso, é importante que o Ministério da Justiça e Segurança Pública tenha informações confiáveis sobre o comércio ilícito de cigarros no Brasil para balizar qualquer decisão, sendo necessário inclusive avaliar a participação no mercado das marcas que podem ser consideradas falsificadas e que são fabricadas no Brasil.
Não existem evidências de que a redução de impostos dos cigarros traz algum benefício à saúde e aos cofres públicos. O Estado Brasileiro tem de buscar a redução do número de tabagistas. Assim sendo, de forma a contribuir com a discussão para a redução do mercado ilícito, seguem algumas propostas que poderiam coibir este mercado, aumentar a arrecadação de impostos e reduzir o tabagismo:
(1) Estabelecimento de políticas de preços e impostos para todos os produtos de tabaco e não somente para os cigarros. Tal medida pode coibir a troca de produtos pelo fumante e aumentar a arrecadação.
(2) Elencar a comercialização e o transporte de produtos de tabaco ilícitos, independentemente da origem, como tráfico de drogas. Os produtos regularizados permaneceriam com o mesmo tratamento atual.
(3) Investir na estrutura de fiscalização e repressão de todos os órgãos envolvidos no combate ao mercado ilícito, assim como aplicar o protocolo contra o comércio ilícito de produtos de tabaco da OMS, do qual o Brasil é signatário 26.
(4) Estabelecer embalagens padronizadas para todos os produtos de tabaco, pois além de reduzir o tabagismo, facilitaria a identificação de marcas irregulares.
(5) Permitir a comercialização dos produtos de tabaco somente em estabelecimentos autorizados para este tipo de comércio. Essa ação facilitaria a identificação e a repressão a esse tipo de comercialização.
(6) Estabelecer que parte dos recursos específicos oriundos dos impostos e taxas do tabaco seja destinada especificamente para financiar pesquisas e ações para o combate ao mercado ilícito de produtos de tabaco.
(7) Identificar os países fornecedores de produtos para o mercado ilícito brasileiro e estabelecer termos de cooperação com os mesmos. A maioria dos cigarros ilícitos no Brasil são produtos lícitos em seus países de origem. O trabalho em conjunto com esses países poderia trazer benefícios.
(8) Aprimorar o controle da exportação de tabaco e de componentes para a fabricação de cigarros.
(9) Intensificar as ações contra as empresas e pessoas no Brasil que falsificam marcas estrangeiras.