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Consultório na rua: as práticas de cuidado com usuários de álcool e outras drogas em Macapá

Consultório na rua: as práticas de cuidado com usuários de álcool e outras drogas em Macapá

Autores:

Marina Nolli Bittencourt,
Paulo Victor das Neves Pantoja,
Paulo Cesar Beckman da Silva Júnior,
José Luis da Cunha Pena,
Camila Rodrigues Barbosa Nemer,
Rafael Pires Moreira

ARTIGO ORIGINAL

Escola Anna Nery

versão impressa ISSN 1414-8145versão On-line ISSN 2177-9465

Esc. Anna Nery vol.23 no.1 Rio de Janeiro 2019 Epub 24-Jan-2019

http://dx.doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2018-0261

INTRODUÇÃO

O Relatório Mundial sobre Drogas, publicado em 2018, apontou a expansão do mercado mundial de drogas ilícitas, como ópio e cocaína, e a Cannabis apresentou-se dentre as drogas ilícitas mais utilizadas em 2016, inclusive no Brasil, com uma tendência de aumento mundial. Além disso, o uso de medicações sem prescrição tem se apresentado como uma ameaça 1 O estudo ainda mostrou que, no Brasil, o uso da pasta a base de cocaína tem aumentado; 5% dos entrevistados brasileiros relatou ter feito uso de drogas ilícitas em 2018.1

Dados publicados em 20172sobre o uso de álcool e tabaco no Brasil apontaram que 10,1% dos entrevistados relataram ser fumantes, sendo homens (13,2%) e mulheres (7,5%); a maior incidência de fumantes foi em Curitiba, e a menor, em Salvador2. Em relação ao álcool, 19,1% dos entrevistados consumiu cinco ou mais doses de bebida alcoólica no mês anterior a entrevista, sendo homens (27,1%) e mulheres (12,1%); a maior frequência de usuários em consumo abusivo foi no Distrito Federal, e a menor em Manaus.

Em relação a Macapá, 7,2% dos adultos relataram ser fumantes, sendo 11% homens e 3,4% mulheres. Em relação ao álcool, 15,9%, relataram ter feito o consumo abusivo de álcool no último mês, sendo homens (23,7%) e mulheres (8,6%).2

Muitas são as consequências do uso abusivo do álcool e outras drogas, dentre elas o fato de ser um dos motivos pelos quais as pessoas passam a viver na rua. No entanto, a condição de rua também pode levá-lo a drogadição.3 Um estudo apontou o álcool e o crack como as drogas mais utilizadas por moradores de rua (26,7%, e 23,37, respectivamente), e também as drogas de maior vicio, especialmente quando há associação entre elas3. Todos os entrevistados no estudo relataram fazer uso de drogas; apenas 25,3% relatou não ser dependente das drogas de uso.3

Nesse sentido, a inclusão das equipes de Consultórios na Rua (eCR) pela Política Nacional de Atenção Básica de 2011, e como dispositivo de cuidado da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), por meio da portaria 3088/2011, foi essencial para a população de rua, em especial, para aqueles com problemas relacionados ao uso de Álcool e Outras Drogas (AOD).

Conforme a portaria 122 de 2011, as eCR atuam como componente da atenção básica na RAPS, constituindo-se na porta de entrada deste segmento populacional nos serviços de atenção, e tem como diretrizes de atendimento as ações de atenção psicossocial, Redução de Danos (RD), atividades educativas, e de acompanhamento, sendo integrada às Unidades Básicas de Saúde e aos Centro de Atenção Psicossocial (CAPS).4A eCR pode ser proposta em três modalidades distintas, e o seu financiamento é conforme o censo populacional das pessoas em situação de rua do município, sendo uma equipe para cada 80 a 1000 moradores de rua4. A cidade de Macapá é atendida por duas equipes da Modalidade I, com cinco profissionais de nível superior e médio.

Apesar de poucos estudos que analisam as práticas dessas equipes junto aos usuários de AOD no Brasil - que incluem enfermeiros e técnicos de enfermagem, assistentes sociais, psicólogos, terapeutas ocupacionais, agentes sociais e técnico de saúde bucal -, os estudos apontam que a prática acolhedora, livre de preconceitos e promotora de reinserção social como essenciais, mas também evidenciam que os profissionais atuantes na equipe do eCR enfrentam dificuldades para prestar assistência à população. Tratam-se de questões relacionadas à insegurança e elaboração de novos métodos de abordagem, já que há uma falha na formação desses profissionais quanto ao atendimento aos usuários de AOD.5-6

Dessa forma, diante do exposto, é importante a realização de estudos que, como esse, tenham como objetivo analisar as práticas assistenciais de profissionais das eCR sobre o cuidado prestado aos usuários de AOD no município de Macapá-AP, pois servirão como evidências para a proposição de novas políticas para a população de rua e para a melhora nas condições de trabalho das eCR, tanto de Macapá como das demais cidades brasileiras. Também servirão para o fortalecimento da temática em questão, já que estudos que envolvem o cuidado ao usuário de AOD pelas eCR são escassos na literatura brasileira.

MÉTODO

Trata-se de estudo descritivo de cunho qualitativo. No Amapá, o município de Macapá possui aproximadamente 1000 moradores de rua, e, por isso, é o único município atendido pela eCR no estado, com duas eCR na Modalidade I, que funcionam desde 2012 e são coordenadas pela Secretaria Municipal de Saúde em parceria com o Programa de Residência em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Amapá, tendo em cada equipe: um enfermeiro, um psicólogo, um técnico de enfermagem, um assistente social e um educador social, totalizando cinco profissionais em cada eCR. Considerando que os profissionais de ambas as equipes atuavam há mais de 6 meses nos serviços (critério de inclusão), todos os dez profissionais foram incluídos no estudo.

A coleta de dados ocorreu no período de abril a junho de 2017. As entrevistas foram realizadas em um local reservado, garantindo ambiente neutro e calmo onde não houvesse interrupções e onde fosse possível aproveitar o tempo reservado pela equipe para o planejamento das rotas de atividade. As entrevistas foram gravadas e transcritas e tiveram aproximadamente uma hora de duração. Para preservar a identificação dos entrevistados, optou-se por referenciar os participantes no corpo do trabalho pela letra E, seguida do número das entrevistas.

As entrevistas foram compostas pelas seguintes questões norteadoras: “Qual a proposta do Consultório na Rua na abordagem do usuário de álcool e outras drogas? Como acontece a abordagem aos usuários de álcool e outras drogas? Quais as facilidades no cuidado ao usuário de álcool e outras drogas? Quais as dificuldades no cuidado ao usuário de álcool e outras drogas? Como ocorre a articulação entre a equipe e outros setores da saúde que também atendem esses usuários?”.

Para a análise das entrevistas, foi utilizada a estratégia da Análise de Conteúdo Categorial Temática7, que compreende os passos a seguir: 1) Pré-análise; 2) Exploração do material; 3) Tratamento dos resultados obtidos e interpretação7. Na pré-análise, foi feito a leitura do material, permitindo orientação e direcionamento na análise das impressões. Na etapa de exploração, foi realizada a distribuição, esquema de classificação e organização de trechos, frases e outras partes características do fenômeno investigado, dialogando com parte dos textos da análise.

Na interpretação, foram extraídos dos depoimentos os temas que emergiram das fichas, que foram agrupados e analisados por meio do método de análise de conteúdo categorial temática, que se caracteriza como um conjunto de técnicas de análise das comunicações, que utiliza procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens.7

A pesquisa obedeceu à Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde, que estabelece diretrizes e normas regulamentadoras quanto aos aspectos éticos da pesquisa envolvendo seres humanos. O projeto foi apreciado e aprovado pela Universidade Federal do Amapá (UNIFAP), com parecer nº 1.919.549.

RESULTADOS

A idade dos sujeitos variou de 34 e 39 anos, sendo nove do sexo feminino. Por meio da análise do conteúdo dos discursos, emergiram três temáticas de análise e subcategorias adjacentes a elas, quais sejam: Temática I: As estratégias de cuidado dos profissionais das eCR junto ao usuário de AOD - com duas subcategorias; Temática II: Fatores que facilitam o cuidado aos usuários de AOD pela equipe do consultório na rua - com três subcategorias; e a Temática III: Fatores que dificultam o cuidado aos usuários de AOD pelas eCR - com três subcategorias.

Temática I: As estratégias de cuidado dos profissionais da eCR junto ao usuário de AOD

Essa primeira temática está relacionada às estratégias utilizadas pelos profissionais das eCR para a promoção do cuidado ao usuário de AOD em Macapá. Dessa temática, emergiram duas subcategorias: a) Proposta de Redução de Danos; b) Promotor do acesso dos usuários de álcool e outras drogas aos serviços de saúde.

Subcategoria 1: Redução de Danos

Essa subcategoria refere-se aos discursos que apontam a redução de danos como uma estratégia de cuidado realizada pelas eCR de Macapá-AP:

[...] Específico com o usuário de álcool e outras drogas, a gente trabalha com redução de danos. No caso não é forçar o usuário a parar de usar droga [...] (E1).

[...] A gente trabalha com redução de danos, né. Então, na verdade, não é pra acabar totalmente com os usuários, e sim para amenizar mais as situações, né [...] (E2).

Subcategoria 2: Promotor do acesso dos usuários de álcool e outras drogas aos serviços de saúde

Essa subcategoria apresenta a promoção do acesso dos usuários de álcool e outras drogas aos serviços de saúde como estratégia de cuidado dos profissionais das eCR, conforme apontado nos discursos a seguir:

[...] O consultório na rua foi implantado para fazer um link entre os usuários de álcool e outras drogas, pra ele ter acesso à saúde. Sendo que eles são um público que não vão às UBS [Unidades Básicas de Saúde], tem dificuldades de chegar à UBS por conta do preconceito, que é muito grande [...] (E3).

[...] A nossa primeira proposta é primeiro ganhar a confiança da maioria, pois muitos deles não possuem mais contato com familiares e a questão do vínculo é fundamental para que possamos levar os serviços de saúde para essa população que vive na rua [...] (E4).

Temática II: Fatores que facilitam o cuidado aos usuários de AOD pela eCR.

Essa segunda temática refere-se aos discursos que apontam os principais fatores facilitadores encontrados pelos profissionais da eCR do município de Macapá- AP durante o exercício de suas atividades de cuidado direcionadas aos usuários de álcool e drogas em situação de rua. Dessa temática, emergiram três subcategorias: a) Vínculo como meio facilitador; b) Disponibilidade da eCR; c) Articulação entre as eCR e os demais serviços da RAPS.

Subcategoria 1: Vínculo como meio facilitador

Essa subcategoria aponta, nos discursos, a criação de vínculo como ferramenta facilitadora do cuidado, uma vez que auxilia no desenvolvimento de confiança entre a eCR e o usuário. Os profissionais relataram que o vínculo é a maneira menos invasiva de inserção no ambiente de uso e abuso de álcool e substâncias psicoativas, o que facilita o cuidado:

[...] O principal é o vínculo mesmo, para eles aderirem a nossa proposta. Criar um vínculo, estar indo lá sempre, acompanhado através do cuidado continuado para fortalecer laços [...] (E1).

[...] O que a gente consegue de facilidade vem da conversa e do vínculo. Quando eles já nos conhecem, eles mesmos já chegam e dizem o que estão precisando, como agendamento de consulta, por exemplo. Isso já deixa o nosso trabalho um pouco mais fácil [...] (E4).

[...] Através do vínculo, que nos possibilita conversar com ele, e isso já facilita o nosso trabalho, já vamos atrás de consulta pra quem precisa, melhora eles irem nas UBS também, no acompanhamento de algum tratamento com medicação, tudo isso fica mais fácil [...] (E5).

Subcategoria 2: Disponibilidade da eCR

Essa subcategoria destaca nos discursos à disposição para enfrentar as adversidades, facilitando o cuidado dos usuários atendidos pelos profissionais das eCR. Os profissionais sugerem que uma eCR, para ser eficaz, deve estar munida de profissionais dispostos a promover o cuidado, conforme falas a seguir:

[...] O que facilita essa abordagem dessas pessoas é a disponibilidade da equipe, porque se a gente chega indisponível, fica difícil para criar qualquer laço [...] (E7).

[...] Eu penso que, como a equipe é feita de profissionais de saúde, e gostam de ajudar o próximo, é que todos estão dispostos a ajudar, essa é a facilidade. Nós vamos conquistando aos poucos, tentando entender. Manter-se disponível [...] (E8).

[...] Em relação aos serviços, é facilidade quando nosso acesso com os nossos pacientes é facilitada, quando os profissionais se dispõem a atender eles, o que as vezes não acontece de forma imediata [...] (E9).

Subcategoria 3: Articulação entre a eCR e os demais serviços da RAPS.

Essa subcategoria apresenta o discurso sobre a importância da articulação entre os serviços que compõem a Rede de Atenção Psicossocial como um fator facilitador do cuidado dos profissionais que atuam nas eCR, como apontado nas falas:

“Essa interligação acontece através de parcerias, através de pessoas que nós já conhecemos e nos ajudam quando precisamos, porque o usuário sozinho não consegue, o Centro Popular nos ajuda na questão de documentos, os CAPS ajudam também, principalmente CAPS AD e CAPS I, mas em geral é através dessas parcerias” (E9)

“A gente diz que a gente é do consultório e se tiver alguém que a gente conhece aí torna acessível e eles são atendidos. Lá no Hospital de Emergência, no CAPS, funciona através de conhecidos da gente nos outros setores da saúde, exames também, a maioria dos nossos acessos é através dos nossos contatos da vida” (E8)

“É pelo contato que a equipe tem com profissionais que possam facilitar o atendimento dessas pessoas que a gente conhece gente na UBS, CAPS AD, e assim nós conseguimos alguma coisa” (E7)

“Através de parcerias, com o CAPS AD, com o Centro Popular, as unidades de saúde nas quais a gente consegue atendimento com psicólogo, médico, a gente entra em contato e consegue marcar a consulta” (E5)

Temática III: Fatores que dificultam o cuidado aos usuários de AOD pela eCR.

Essa terceira temática refere-se aos discursos que apontam as principais dificuldades encontradas pelos profissionais das eCR do município de Macapá-AP durante o exercício de suas atividades profissionais direcionadas aos usuários de álcool e drogas. Dessa temática, emergiram três subcategorias: a) Autocuidado dos usuários; b) Déficit estrutural e de recursos humanos; c) Preconceito e estigma

Subcategoria 1: Autocuidado dos usuários

Essa terceira subcategoria está relacionada ao efeito negativo que o déficit de autocuidado do morador de rua tem sobre os profissionais, que têm preconceito e, sobre eles mesmos que, sem querer se cuidar, não procuram ajuda, conforme falas a seguir:

[...] com o usuário que faz uso de substância psicoativa, o autocuidado vai depender dele e isso acaba criando uma resistência dele, pois devido ao efeito da droga, ele acaba se descuidando do próprio corpo, da sua saúde, e só acaba buscando algum ajuda quando já está sentindo muita dor ou está em um estado mais grave [...] (E9).

[...] a primeira dificuldade é fazer ele ter mais cuidado com ele mesmo, porque o vício atrapalha muito e a nossa barreira é tentar conscientizar que a sua saúde é mais importante do que o vício, o preconceito nas unidades e nos outros serviços, tanto de saúde quanto sociais, pois essas pessoas são olhadas de forma ruim pela sociedade, a aparência, falta de higiene, tudo isso influencia no sentido do atendimento [...] (E8)

Subcategoria 2: Déficit estrutural e de recursos humanos

Nessa subcategoria, os profissionais do Consultório na Rua de Macapá-AP colocam a falta de veículos e profissionais como principais empecilhos na sua prática com usuários de álcool e outras drogas na rua, conforme os trechos de discursos que se seguem:

[...] O carro é para duas equipes e tem que esperar a rota de cada um e a gasolina é limitada, é só 15 litros, e às vezes não é só a rota, tem que levar eles para a consulta, para fazer exame [...] (E8).

[...] a quantidade de profissionais nas equipes não é suficiente, principalmente na saúde, pois muitos usuários não aceitam ir até a unidade de saúde para receber atendimento, porque já foram maltratadas antes [...] (E9).

Subcategoria 3: Preconceito e estigma de outros profissionais de saúde

Essa terceira subcategoria apresenta nos discursos as consequências do preconceito e o estigma dos profissionais de saúde dos demais serviços frente aos moradores de rua, situações que acabam interferindo nos atendimentos, conforme exposto nos trechos de discursos que se seguem:

[...] Umas das dificuldades enfrentadas é o preconceito nas unidades e nos outros serviços, tanto de saúde quanto sociais, pois muitos deles devem para a justiça, ou são profissionais do sexo e também têm um estigma com essas pessoas, que são olhadas de forma ruim pela sociedade [...] (E9).

[...] Muitas das vezes, a gente chega no local de atendimento e as pessoas começam a tapar o nariz, a olhar diferente pra eles, muitas das vezes a gente faz a medicação no próprio local onde eles estão, devido à resistência de não ir na UBS. Alguns médicos e o pessoal da UBS têm uma resistência em atender morador de rua, esse preconceito com morador de rua dificulta bastante nosso trabalho [...] (E4).

Para finalizar, a Tabela 1 apresenta as temáticas e as subcategorias que emergiram do conteúdo das entrevistas. Também foi apresentado o código e o número das falas que representaram cada uma das subcategorias - Tabela 1.

Tabela 1 Temáticas e subcategorias do estudo. Macapá, AP, 2018. 

Temáticas Subcategorias Código e número dos trechos dos discursos
I: As estratégias de cuidado dos profissionais do CR junto ao usuário de AOD 1: Redução de Danos E1; E2
2: Promotor do acesso dos usuários de álcool e outras drogas aos serviços de saúde E3; E4
II: Fatores que facilitam o cuidado aos usuários de AOD pela equipe do Consultório na Rua 1: Vínculo como meio facilitador E1; E4; E5
2: Disponibilidade da eCR E7; E8; E9
3: Articulação entre a eCR e os demais serviços da RAPS. E9; E7; E5
III: Fatores que dificultam o cuidado aos usuários de AOD pela eCR 1: Autocuidado dos usuários E1
2: Déficit estrutural e de recursos humanos E8; E9
3: Preconceito e estigma E9; E4

DISCUSSÃO

Observou-se que os profissionais evidenciaram a redução de danos e a promoção de acesso ao cuidado em saúde como estratégias de cuidado aos usuários de AOD pelas eCR. Em relação às facilidades, eles apresentam a formação do vínculo entre usuários e profissionais e a disponibilidade da equipe, assim como a articulação entre as eCR e os demais serviços da RAPS. Em relação às dificuldades, eles apontaram o déficit de autocuidado dos moradores de rua, a precariedade de estrutura para a realização do trabalho e a escassez de recursos humanos na equipe, além do preconceito associado ao estigma aos moradores de rua.

Na primeira Temática, a subcategoria 1 demonstrou que os profissionais das eCR utilizam a estratégia de redução de danos como uma das estratégias de cuidado ao usuário de AOD. A identificação da redução de danos como estratégia de cuidado pelos profissionais das eCR de Macapá é relevante e positiva, pois trata-se da estratégia que está dentre as ações da Política Nacional de Atenção Básica8, da Política para a Atenção Integral ao Uso de Álcool e Outras Drogas9, e das diretrizes de funcionamento das eCR4, demonstrando, assim, que os profissionais das eCR de Macapá conduzem suas práticas informadas pelas políticas que direcionam o cuidado à população de rua que faz uso de AOD.

Os dados também apontaram que os profissionais viam as eCR como ferramenta importante na promoção do acesso dos usuários de AOD aos serviços de saúde, fortalecendo a importância do papel das eCR em promover a articulação entre os demais serviços da RAPS, pois, como mesmo apontado por eles, essa articulação permite um olhar integral a esse usuário e fortalece o cuidado iniciado por eles.4,10-13Porém, vale ressaltar, que além das eCR serem um serviço de atenção à saúde dessa população que vive na rua, é também uma ferramenta que permite problematizar as formas de cuidar que permeiam essa assistência diante das fragilidades que essas redes possuem.10,13

Observou-se também que os profissionais identificaram o vínculo como meio facilitador, e que potencializa os cuidados realizados por eles. Isso é um achado relevante, pois a criação de vínculos permeia as relações interpessoais saudáveis que são construídas junto aos sujeitos que necessitam de cuidados e que, conforme estudo prévio com usuários de um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD), essas relações harmônicas com os profissionais permitem que eles sejam melhor compreendidos, e os profissionais reconheçam as reais necessidades apresentadas por eles14, criando laços de empatia e confiança, o que pode refletir em escolhas mais saudáveis de vida.

Além disso, os profissionais levantam o compromisso das eCR com o cuidado e colocam que a disponibilidade e o compromisso da equipe na criação do ambiente terapêutico podem ser estimulados quando os profissionais que atuam nas eCR possuem perfil para atuar livre de receios, construídos a partir de um estigma social com o qual a pessoa em situação de rua sofre na sociedade.12

É importante salientar que o Consultório na Rua é a porta de entrada prioritária da população em situação de rua à Atenção Básica do Sistema Único de Saúde (SUS) e que, para tanto, trata-se também de um espaço que é prioritário para o fortalecimento do cuidado e a criação de vínculo na rede de atenção à saúde12. Dessa forma, é evidente a clareza dessas equipes quanto ao seu real papel enquanto profissionais da atenção básica, já que apontam não só a criação de vínculo como uma prática importante, como também a disponibilidade da equipe com o cuidado livre de estigmas e facilitador do relacionamento terapêutico. Esses achados também remetem para a aproximação dessa equipe com a prática da Clínica Ampliada, já que a promoção de um cuidado singular e promotor de vínculos também permeia as diretrizes que envolvem essa clínica.

Eles ainda citam a articulação existente entre as eCR e os demais serviços que compõem a sua Rede de Saúde e o quanto isso vem a contribuir para promover a melhora na assistência para as pessoas em situação de rua que são usuários de AOD.5,13,15 Tal achado corrobora com o que é exposto na Política para a Atenção Integral ao Uso de Álcool e Outras Drogas, que aponta o uso de AOD como um grave problema de saúde pública e que, para tanto, requer a construção coletiva para seu enfrentamento, com foco nas redes existentes no território.

As falas dos entrevistados na subcategoria “Déficit de autocuidado” apontam esse déficit como fator que dificulta a inserção desses indivíduos em situação de rua na rede. Observa-se que a população em situação de rua, incluindo-se os usuários de AOD, encontram-se em situação de vulnerabilidade social, o que acaba afetando sua autoestima e seu autocuidado, além da atenção à saúde direcionado à população de rua.12 Dessa forma, é essencial que as eCR estimulem e fortaleçam o autocuidado desses usuários, já que se trata de uma das atribuições específicas dos profissionais que atuam na atenção básica, na qual o CR se inclui12, e percebam que ao fortalecer seu autocuidado, estarão fortalecendo também sua cidadania, pois esses passam a se sentir mais empoderados para buscar pelo seu direito de acesso à saúde, ao trabalho e à moradia.

Por outro lado, o autocuidado deficiente não é o único fator que influencia na dificuldade de atuação do Consultório na Rua. As falas presentes da subcategoria “Déficit estrutural e de recursos humanos” apontam que esses déficits influenciam de forma negativa na possibilidade de um serviço ser executado em tempo hábil, pois essas tarefas dependem de meios físicos, estruturais e operacionais básicos que, em muitos casos, não existem. Infelizmente, nos últimos anos, o SUS tem sofrido diversos cortes orçamentários, que se agravaram depois da aprovação da Proposta de Emenda Constitucional 241/2016, o que vem sendo refletido em diversas partes do Brasil, inclusive do Estado do Amapá, em que os usuários de um CAPS Álcool e Drogas também apontaram o déficit estrutural como fator dificultador do cuidado14.

Por fim, as falas dos entrevistados identificados na subcategoria “Preconceito e estigma” deixam evidente que, em muitos casos, o julgamento negativo advindo de alguns profissionais de saúde dos demais serviços da rede faz com que as pessoas em situação de rua, com necessidades decorrentes de AOD, passem a evitar esses serviços.6,15-16 Essa discriminação perante a população em situação de rua pode estar relacionada à influência do olhar higienista, que pode desencadear atos de segregação e violência direcionada a esses sujeitos nos centros de saúde.

Além do olhar higienista à pessoa em situação de rua, a estigmatização por parte dos profissionais de saúde pode se justificar pelo fato do consumo de drogas não ser visto como um problema de saúde, mas como falha de caráter, atribuindo ao usuário a responsabilidade pelo aparecimento e pela solução do seu problema5.

Essa postura de estigma e discriminação com usuários de drogas afeta negativamente a qualidade dos serviços prestados, prejudicando o acolhimento e constituindo uma barreira para a busca por ajuda, além de limitar o acesso e a utilização dos serviços. Por isso, é importante que estratégias sejam pensadas com o objetivo de minimizar essas atitudes negativas dos profissionais de saúde, uma vez que o acesso universal a essa população só será alcançado quando esses forem vistos como parte do mesmo coletivo.6,5,16

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados apontaram que as eCR de Macapá realizam práticas assistenciais embasadas nos ideais do SUS e da Política para a Atenção Integral ao Uso de Álcool e Outras Drogas, tendo como principal estratégia facilitadora do cuidado a redução de danos, além de outros elementos facilitadores, como a criação do vínculo entre usuário e profissional, o compromisso da própria equipe e a parceria com outros setores de saúde e demais elementos da RAPS. Dentre os fatores que dificultam o cuidado, eles apontaram déficit de autocuidado, estrutural e de recursos humanos, e o preconceito associado ao estigma.

Esse estudo possui limitações, pois foi realizado em uma pequena capital brasileira, com características muito peculiares - culturais, geográficas, econômicas, e de saúde -, o que pode fazer com que os sujeitos do estudo possuam uma compreensão permeada por essas peculiaridades locais.

Porém, o estudo se torna relevante, pois os achados levantam a importância não só do comprometimento da equipe - em especial a de enfermagem, que é a maioria no estudo - frente ao cumprimento das políticas públicas que embasam seu trabalho junto aos usuários de AOD nos serviços de atenção básica, mas também na formação das parcerias e fortalecimento da RAPS como elementos chave, que além de facilitar o acesso dos usuários, também sensibiliza os demais componentes do SUS para que esses sigam suas diretrizes de integralidade, universalidade e equidade.

No entanto, observa-se que os demais profissionais da Rede, em especial das Unidades Básicas de Saúde, também precisam ser sensibilizados sobre a importância da prática informada pelas políticas públicas no que se diz respeito ao acolhimento e à clínica ampliada, e que essas diretrizes também devem ser aplicadas junto aos usuários de AOD em situação de rua que ainda sofrem preconceitos dos diversos segmentos da sociedade.

REFERÊNCIAS

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