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Consultórios de rua ou na rua? Reflexões sobre políticas de abordagem à saúde da população de rua

Consultórios de rua ou na rua? Reflexões sobre políticas de abordagem à saúde da população de rua

Autores:

Carmen Santana,
Felicialle Pereira da Silva,
Iracema da Silva Frazão,
Francisca Márcia Pereira Linhares

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos de Saúde Pública

versão impressa ISSN 0102-311X

Cad. Saúde Pública vol.30 no.8 Rio de Janeiro ago. 2014

http://dx.doi.org/10.1590/0102-311XCA010814

A presença de pessoas vivendo nas ruas não apenas sem-teto, mas sem-horizontes, é uma situação para qual não há ainda uma resposta efetiva. O poder público tem desenvolvido diversos programas para atenção às pessoas em situação de rua. O artigo Práticas de Saúde das Equipes dos Consultórios de Rua 1 aborda umas dessas iniciativas relevantes para as áreas dos direitos humanos e da saúde. No entanto, cabe ainda apresentar ao leitor desta revista a atual política voltada para a saúde da população de rua, que reflete uma ampliação no sentido da integralidade do cuidado à saúde. Além disso, esta carta também pretende refletir sobre os elementos da intersetorialidade e a participação social como contribuição à efetivação do direito à saúde das pessoas em situação de rua.

Atualmente, a maioria das equipes voltadas para o atendimento da população em situação de rua está vinculada ao Departamento da Atenção Básica, Ministério da Saúde (não mais à coordenação de saúde mental), sob a denominação de consultório na rua. Diferentes dos consultórios de rua tratados pelo artigo, as atuais equipes responsabilizam-se pela atenção primária à saúde dessas pessoas. Na prática mudou, além do nome, a composição da equipe e o escopo de suas ações anteriormente focadas na saúde mental e nos transtornos relacionados ao uso de substâncias. O transtorno mental pode ser um fator que contribui para que a pessoa viva em situação de rua; e se as condições de vida nas ruas colaboram para o aparecimento da doença mental, devemos entender que também contribui para o aparecimento de outros agravos. A dificuldade de acessar os serviços de saúde piora todas essas condições. O foco na saúde mental é essencial, mas outros problemas também devem ser considerados.

A proposta dos consultórios na rua, além da saúde mental, engloba o atendimento à gestante de rua, tratamento de patologias pulmonares (a tuberculose é frequente), tratamento de doenças sexualmente transmissíveis (HIV/AIDS), tratamento de doenças de pele (úlceras de membros inferiores), problemas ortopédicos (decorrentes de situação de violência, atropelamento), diabetes, hipertensão, e várias outras situações que ficam sob a responsabilidade da estratégia saúde da família na atual política de atenção básica. Dessa forma, entendemos que a inserção das equipes de saúde voltadas à população de rua no escopo das ações da atenção básica representa uma ampliação no sentido de efetivar os direitos à saúde desta população.

Reconhecemos o valor dos dois programas: consultórios de rua e consultórios na rua. No entanto, a maior dificuldade não é criar a política, mas viabilizar a sua implantação. O cenário atual é composto de trabalhos pouco articulados entre si, gerando sofrimento aos seus trabalhadores, duplicidade de funções e pouca resolutividade de ações. As equipes de trabalho estão sobrecarregadas com responsabilidades clínicas, assistenciais e administrativas. Estudos demonstram que o sucesso desses programas depende de ações intersetoriais e interinstitucionais, institucionalizadas e duradouras 2.

Ações isoladas, além de serem pouco efetivas, podem contribuir para culpabilização do sujeito que se sente incapaz de se inserir nessa estrutura complexa. A atuação desarticulada e deficiente em termos de materiais, recursos humanos, organização dos serviços e outros, somada às barreiras e preconceitos existentes entre os profissionais, refletem os limites das políticas setoriais 3,4.

A vulnerabilidade na população em situação de rua, é expressa por pouca longevidade, escassez de acesso aos recursos privados e públicos, e carência de educação básica. Para superar essa situação a população necessita pensar e intervir, no sentido de alcançar níveis crescentes de autonomia individual e coletiva. Além das carências materiais, o problema maior está no fato de o indivíduo não ter autonomia 5.

A perspectiva dos direitos humanos apoiados nos princípios da intersetorialidade e da participação social permite fortalecer a análise da complexa relação entre a saúde integral e as condições de vida nas ruas. Mas o trabalho intersetorial carece de experiências e estudos quanto à sua implantação no âmbito da organização de serviços de saúde. Nesse aspecto, uma avaliação honesta e detalhada dos resultados das ações dos consultórios de e na rua poderia contribuir para a diminuição da lacuna existente entre as políticas públicas, o conhecimento e a sua aplicação na prática.

REFERÊNCIAS

. Silva FP. Frazão IS, Linhares FMP. Práticas de saúde das equipes dos Consultórios de Rua. Cad Saúde Pública 2014; 30:805-14.
. Silveira C, Carneiro Jr. N, Marsiglia R. Projeto inclusão social urbana: nós do centro. Metodologia de pesquisa e de ação para inclusão social de grupos em situação de vulnerabilidade no centro da Cidade de São Paulo. São Paulo: Fundação Arnaldo Vieira de Carvalho/Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo; 2009.
. Carneiro Jr. N, Nogueira E, Lanferini G, Ali D, Martinelli M. Serviços de saúde e população de rua contribuições para um debate. Saúde Soc 1998; 7:47-62.
. Hunter JK. Barriers to providing health care to homeless persons: a survey of provider’s perceptions. Health Values 1991; 15:3-11.
. Demo P. Pobreza da pobreza. Petrópolis: Editora Vozes; 2003.
. Coordenação Nacional de Saúde Mental, Ministério da Saúde. Consultórios de Rua do SUS. Material de Trabalho para II Oficina Nacional de Consultórios de Rua do SUS. Brasília: Ministério da Saúde; 2010.
. Nery Filho A, Valério ALR, organizadores. Módulo de capacitação dos profissionais do Projeto Consultório de Rua. Brasília: Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas/Salvador: Centro de Estudos e Terapia de Abuso de Drogas; 2010.
3.  . Brasil. Portaria no 122, de 25 de janeiro de 2012: define as diretrizes e funcionamento das equipes de Consultório de Rua. Diário Oficial da União 2012; 26 jan.
. Silva FP, Frazão IS, Linhares FMP. Práticas de saúde das equipes dos Consultórios de Rua. Cad Saúde Pública 2014; 30:805-14.