versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.23 no.3 Rio de Janeiro mar. 2018
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018233.13102016
De acordo com a Organização Mundial de Saúde, o álcool é uma substância psicoativa que pode causar dependência, e que é amplamente consumida em todo o mundo. O uso nocivo do álcool é responsável por várias doenças como dependência à bebida alcoólica, cirrose hepática, câncer, entre outras. Em 2012, ocorreram 3,3 milhões de óbitos no mundo devido ao consumo de álcool, com 139 milhões de anos de vida perdidos, ou vividos com incapacidade1.
Medir e qualificar o consumo de bebida alcoólica é complexo devido a diferenças culturais, variabilidade de instrumentos de medida ou por falta de padronização de conceitos. Pode-se medir o consumo em diferentes períodos (atualmente2-8, na vida7,9, número de dias4,8,10), unidades de medida (gramas3,11-15, mililitros7,9, ou o número de doses padrão10,16-18), ou ainda diferentes padrões de consumo (ficou bêbado4,7,8). Também podem ser utilizadas escalas, como AUDIT5,14,17,19-24, CAGE3,11,25, MAST11 e Manual Estatístico e Diagnóstico de Transtornos Mentais (DSM)10,26.
A prevalência do consumo de bebida alcóolica em população rural no mundo apresenta grandes variações, com uma amplitude entre 1,4%10,11,14,22,27 a 64%12,15,17,19,27 para o consumo de risco em homens e mulheres, e 4,5%12,28 a 38%3,13,20 para beber pesado em homens. Em agricultores a prevalência de consumo de risco de bebida alcoólica variou de 18%16 a 43%17,27.
Os fatores positivamente associados a qualquer padrão de consumo de bebida alcoólica em população rural foram sexo masculino5,14,21,22,24 e tabagismo5,6,8,21. Estar desempregado foi risco para bebedor excessivo13,24 e dependência10. Ser trabalhador manual6 foi associado com consumo regular2 e bebedor excessivo13. Viver em uma casa com mais de 6 pessoas24, ter tido mais do que cinco eventos adversos na vida e viver menos da metade da vida em zona rural22 foi associado com consumo de risco. Trabalhar mais tempo no campo, dirigir veículo a motor ou trator e usar equipamento agrícola foram associados com consumo nos últimos 30 dias29.
Estar aposentado e ter algum suporte social22 foram fatores de proteção para consumo de risco, praticar alguma religião esteve negativamente associado à desordem pelo álcool30 e consumo de risco19,31. Achados inconsistentes foram encontrados em relação à associação da idade9,18,21,22,31, renda8,9,18,22, estado civil5,9,18,22,31, escolaridade6,7,10,12,19,21,31 e horas de trabalho na agricultura32 com diferentes padrões de consumo.
A Pesquisa Nacional de Saúde realizada no Brasil, em 2013, mostra que a prevalência de pessoas que consomem bebida alcoólica na área rural no Brasil é de 20,3%33, e 10,56% consumiram nos últimos 30 dias34. Estudo em fumicultores no Sul do Brasil mostrou que o consumo de bebida alcoólica chega a 90%35 nesta população. Entretanto, nenhum dos estudos avaliou os fatores associados a consumo de bebida alcoólica. A fumicultura é uma importante atividade econômica, envolvendo cerca de 700 municípios da região sul do Brasil, e empregando mais de 200 mil famílias36. Desta forma, considerando a magnitude da fumicultura brasileira, e a escassez de estudos em população rural no Brasil, objetiva-se descrever a prevalência do beber pesado e do consumo de risco de bebida alcoólica e avaliar os fatores associados em fumicultores do sul do Brasil.
Foi realizado estudo transversal, de base populacional, com amostragem aleatória dos fumicultores de São Lourenço do Sul/RS. A coleta de dados foi realizada durante a colheita das folhas de fumo em 2011 (janeiro a março).
O município de São Lourenço do Sul está localizado na região sul do Estado do Rio Grande do Sul. A distribuição fundiária do município é caracterizada por grandes latifúndios produtores de milho e soja e pequenas unidades produtivas, que cultivam principalmente o fumo em folha37.
A preferência pela cultura do fumo se deve à possibilidade do plantio desta cultura poder ser feito em pequenas propriedades, através do Sistema Integrado de Produção. Este sistema estabelece uma interdependência entre a produção agrícola e o beneficiamento industrial subsequente, e está baseada no planejamento das safras, assistência técnica e financeira e garantia de compra das folhas de fumo, com o estabelecimento do preço da produção pela indústria fumageira38.
Para a seleção da amostra, foram sorteadas aleatoriamente 1100 notas fiscais de venda do fumo do ano de 2009, fornecidas pela Secretaria da Fazenda de São Lourenço do Sul. A amostra foi calculada no programa epi-info e utilizou como parâmetros uma estimativa de prevalência de consumo de bebida alcoólica de risco nos não expostos em torno de 20% e a relação exposto/não exposto que variou de 1:1 (faixa etária) a 1:6 (jornada de trabalho). Assim, a amostra estudada (N=2.469) conferiu um poder estatístico de 80% para examinar associações com uma razão de prevalências em torno de 1,5 e um nível de confiança de 95%.
Foram incluídos os trabalhadores rurais maiores de 18 anos que realizavam atividades agrícolas durante pelo menos 15 horas por semana39. Foram excluídos os indivíduos que não residiam na área rural, que mudaram para outra cidade, e quem era fumicultor no ano de 2009, mas deixou de ser no ano seguinte. Neste caso, a unidade produtiva foi substituída pela do vizinho mais próximo que plantasse fumo.
As entrevistas foram realizadas nas propriedades rurais. Os entrevistadores selecionados eram agentes comunitários de saúde, ex-recenseadores do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e demais interessados que conhecessem a área rural e que preferencialmente dispusessem de meio próprio de locomoção. Todos receberam treinamento prévio. As questões foram aplicadas no formato digital por meio de um Personal Digital Assistant (PDA). Para controle de qualidade, foram realizadas reuniões semanais e aplicação de um questionário reduzido em uma amostra aleatória de 10% dos entrevistados.
Foram utilizados dois questionários, o primeiro abordou questões da propriedade (mecanização, perda da lavoura), e socioeconômicas (venda do fumo, renda gerada, propriedade da terra, empréstimos), e o outro abordou questões individuais sobre o fumicultor, como aspectos demográficos (sexo, idade, presença de companheiro), comportamentais (uso de álcool, religião e tabagismo), comorbidades, e ocupacionais (atividades, jornada de trabalho).
Foi avaliado o consumo de qualquer tipo de cigarro, e foi considerado tabagista quem consumiu um ou mais cigarros por dia há pelo menos um mês, ex-tabagista quem parou de fumar há mais de um mês e não tabagista quem nunca fumou. O comportamento religioso foi definido pela participação em atividades religiosas. Foram incluídas variáveis ocupacionais de jornada de trabalho; atividades da cultura do fumo, como plantio, colheita, aplicação de agrotóxicos; cargas de trabalho, como esforço físico; e comorbidades, como dor nas costas e aplicação de instrumento para rastreamento de problema psiquiátrico menor (SRQ- Self Report Questionnaire).
Para a descrição de problemas com álcool utilizou-se o questionário CAGE, que foi validado por Masur e Monteiro em 198340, e é composto por quatro perguntas: sentiu que deveria parar de beber; críticas das pessoas pelo modo de beber; chateado consigo mesmo pelo modo de beber; bebe pela manhã, além da bebida preferida.
Para a análise multivariada caracterizou-se os desfechos a partir da frequência do consumo de bebida alcoólica, segundo as definições do Guia de Orientação Dietética para Americanos (2015)41, considerando: (1) Consumo de risco: excedente ao consumo moderado, ou seja, “consumo > 2 doses por dia para homens e > 1 dose por dia para mulheres”; e (2) Beber Pesado: ≥ 15 doses padrão por semana para homens e ≥ 8 por semana para mulheres. Para tal, utilizaram-se as perguntas: consumo de bebida alcoólica nos dias de semana e aos finais de semana nos últimos 30 dias.
Na análise de dados foi calculada a prevalência, e realizada análise da associação entre variáveis independentes para o consumo de risco de bebida alcoólica para homens e mulheres, e o beber pesado apenas para homens, devido à amostra reduzida para mulheres. As análises bruta e ajustada foram realizadas através da regressão de Poisson, que avaliou a significância estatística das associações através do teste Wald de heterogeneidade e teste de tendência linear. A análise ajustada seguiu um modelo hierarquizado, com seleção para trás, que incluiu variáveis demográficas e econômicas no primeiro nível, comportamentais e ocupacionais no segundo nível, e comorbidades no terceiro nível. As variáveis com valor p £ 0,2 foram mantidas no modelo e aquelas com valor p < 0,05 foram consideradas associadas. A variável escolaridade foi retirada do modelo multivariado por ter correlação com a variável idade. A análise foi realizada no programa Stata® 13.0.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Pelotas. Todos os entrevistados foram devidamente informados sobre o tema da pesquisa, sobre o sigilo das informações prestadas e sobre o direito a se recusar a participar e assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido.
Participaram do estudo 2469 fumicultores (59% eram homens), residentes em 912 propriedades rurais. As perdas e recusas somaram um total de 5,9%.
Conforme a Tabela 1, 29,2% das mulheres tinham de 18 a 29 anos, 12,8% não tinham companheiro, e 45,2% eram altamente (≥ 90%) dependentes da renda proveniente do fumo, 47% faziam esforço físico pesado, e 39,8% tinham se exposto a agrotóxico. Trinta e quatro por cento participava com frequência de atividades religiosas e 14,3% apresentavam SRQ positivo. Entre os homens, 25,9% perderam a lavoura devido a granizo, 5,4% eram empregados ou arrendatários, 36,3% trabalhavam mais de 13 horas na cultura do fumo durante o período de safra, e 31,2% fumavam.
Tabela 1 Descrição demográfica, econômica e ocupacional dos fumicultores estratificado por sexo. N = 2452.
Variáveis | Mulher | Homem | ||
---|---|---|---|---|
| ||||
n | % | n | % | |
Demográficas | ||||
Idade | ||||
18 a 29 | 294 | 29,2 | 403 | 27,5 |
30 a 39 | 229 | 22,8 | 342 | 23,4 |
40 a 49 | 246 | 24,5 | 316 | 21,6 |
≥ 50 | 236 | 23,5 | 403 | 27,5 |
Escolaridade | ||||
0 a 4 anos | 441 | 43,9 | 645 | 44,0 |
5 a 8 anos | 173 | 47,1 | 732 | 50,0 |
9 ou mais | 91 | 9,0 | 87 | 6,0 |
Estado civil | ||||
com companheiro | 876 | 87,2 | 987 | 67,4 |
sem companheiro | 129 | 12,8 | 477 | 32,6 |
Econômicas | ||||
Percentual da renda representada pelo fumo | ||||
até 75% | 301 | 30,2 | 438 | 30,0 |
76 a 89% | 246 | 24,6 | 348 | 24,0 |
≥ 90% | 451 | 45,2 | 668 | 46,0 |
Perda da lavoura por granizo | ||||
não | 743 | 74,4 | 1079 | 74,1 |
sim | 256 | 25,6 | 377 | 25,9 |
Empréstimo em 2010 | ||||
não | 146 | 14,6 | 235 | 16,1 |
sim | 853 | 85,4 | 1221 | 83,9 |
Venda do fumo para picareta | ||||
não | 474 | 47,4 | 694 | 47,7 |
sim | 525 | 52,6 | 762 | 53,3 |
Ocupacionais | ||||
Relação de trabalho | ||||
família proprietária | 960 | 95,5 | 1385 | 94,6 |
empregado/arrendatário | 45 | 4,5 | 79 | 5,4 |
Horas de trabalho agrícola na safra | ||||
até 8 horas | 195 | 19,5 | 124 | 8,5 |
9 a 12 horas | 556 | 55,4 | 805 | 55,2 |
≥ 13 horas | 252 | 25,1 | 530 | 36,3 |
Enfardou o fumo | ||||
não/às vezes | 295 | 29,4 | 187 | 12,8 |
frequente/sempre | 707 | 70,6 | 1275 | 87,2 |
Cuida da horta | ||||
Não | 146 | 14,5 | 918 | 62,8 |
de vez em quando | 178 | 17,7 | 352 | 24,0 |
frequente/sempre | 681 | 67,8 | 193 | 13,2 |
Desgalhou árvores no último ano | ||||
não/às vezes | 731 | 73,1 | 551 | 37,8 |
frequente/sempre | 270 | 26,9 | 907 | 62,2 |
Esforço físico pesado | ||||
Não | 532 | 53,0 | 360 | 24,6 |
Sim | 472 | 47,0 | 1104 | 75,4 |
Frequência de uso de agrotóxicos por mês em período de uso intenso | ||||
Sem exposição | 605 | 60,2 | 242 | 16,5 |
0 a 10 dias | 354 | 35,2 | 1,38 | 70,9 |
> 11 dias | 46 | 4,6 | 184 | 12,6 |
Comportamentais | ||||
Frequência que participa de atividades religiosas | ||||
não participa | 24 | 2,5 | 45 | 3,2 |
de vez em quando | 615 | 63,0 | 970 | 68,4 |
Frequente | 337 | 34,5 | 403 | 28,4 |
Fuma | ||||
Não | 930 | 92,5 | 729 | 49,8 |
Sim | 31 | 3,1 | 457 | 31,2 |
ex- fumante | 44 | 4,4 | 278 | 19,0 |
Comorbidades | ||||
Dor nas costas no último ano | ||||
Não | 332 | 33,1 | 572 | 39,1 |
Sim | 672 | 66,9 | 891 | 60,9 |
Self Report Questionnaire (SRQ) positivo | ||||
Não | 837 | 85,7 | 1274 | 89,6 |
Sim (Homem ≥ 6 / Mulher ≥ 8) | 140 | 14,3 | 148 | 10,4 |
A Tabela 2 mostra, em relação à prevalência do consumo de bebida alcoólica, que as mulheres eram mais abstêmias do que os homens (68,3% vs 18,2%). Durante a semana, 9,9% dos homens consumiram até uma dose de álcool e 20,7% consumiram mais de três doses no final de semana. O consumo de risco nos 7 dias da semana e o beber pesado foram de 30,8% e 4,8% para homens, e 4,7% e 1,1% para mulheres, respectivamente.
Tabela 2 Prevalência de padrões de consumo de bebida alcoólica dos fumicultores estratificado por sexo. N = 2452.
Variáveis | Mulher | Homem | ||
---|---|---|---|---|
| ||||
n | % | n | % | |
Qual bebida gosta de beber? | ||||
Não bebe | 687 | 68,3 | 272 | 18,2 |
Cerveja | 268 | 26,6 | 1040 | 71,0 |
Destilados | 2 | 0,1 | 72 | 4,9 |
Vinho | 44 | 4,3 | 30 | 2,0 |
sem preferência | 4 | 0,3 | 49 | 3,3 |
Ingestão de álcool na semana | ||||
não bebeu/ocasional | 990 | 98,5 | 1209 | 83,0 |
Até uma dose | 12 | 1,2 | 145 | 9,9 |
Duas doses | 2 | 0,2 | 65 | 4,5 |
Três doses | 0 | 0,0 | 19 | 1,3 |
Mais de três doses | 1 | 0,1 | 19 | 1,3 |
Ingestão de álcool no final de semana | ||||
não bebeu/ocasional | 887 | 88,3 | 610 | 41,7 |
Até uma dose | 71 | 7,0 | 146 | 10,0 |
Duas doses | 38 | 3,8 | 259 | 17,7 |
Três doses | 3 | 0,3 | 145 | 9,9 |
Mais de três doses | 6 | 0,6 | 302 | 20,7 |
Consumo de risco | ||||
Na semana (5 dias) | 3 | 0,3 | 38 | 2,6 |
No final de semana | 47 | 4,7 | 447 | 30,6 |
7 dias | 48 | 4,7 | 449 | 30,8 |
Beber Pesado Episódico | ||||
Na semana | 1 | 0,1 | 19 | 1,3 |
No final de semana | 6 | 0,6 | 302 | 20,7 |
Beber pesado | 11 | 1,1 | 71 | 4,8 |
Cage positivo | 1 | 0,1 | 69 | 4,7 |
A Tabela 3 mostra a análise ajustada do consumo de risco de bebida alcoólica para as mulheres. Idade e percentual de renda representada pelo fumo foram inversamente associados com o desfecho. O consumo de risco foi 2 a 3 vezes mais frequente entre as mulheres que não tinham companheiro (RP 3,05), eram empregadas ou arrendatárias (RP 3,10) e que foram expostas a agrotóxico (RP 2,10).
Tabela 3 Consumo de risco de bebida alcoólica: Prevalência e fatores associados em fumicultores entre mulheres. N = 1005.
Variáveis | Bruto | Ajustado | |||
---|---|---|---|---|---|
| |||||
% | RP | 95%IC | RP | 95%IC | |
Primeiro nível | |||||
Idade | |||||
18 a 39 | 6,7 | 1 | 1 | ||
≥ 40 | 2,7 | 0,40 | 0,21-0,75 | 0,47 | 0,25-0,90 |
Estado civil | |||||
com companheiro | 3,6 | 1 | 1 | ||
sem companheiro | 12,4 | 3,39 | 1,91-6,01 | 3,05 | 1,70-5,47 |
Percentual da renda representada pelo fumo | |||||
até 75% | 7,3 | 1 | 1 | ||
76 a 89% | 3,6 | 0,50 | 0,23-1,06 | 0,42 | 0,20-0,90 |
> 90% | 3,7 | 0,51 | 0,27-0,95 | 0,44 | 0,23-0,82 |
Relação de trabalho | |||||
família proprietária | 4,5 | 1 | 1 | ||
empregado/arrendatário | 11,1 | 2,48 | 1,03-5,96 | 3,10 | 1,30-7,38 |
Segundo nível | |||||
Frequência de uso de agrotóxicos por mês em período de uso intenso | |||||
Sem exposição | 3,3 | 1 | 1 | ||
Com exposição | 7,0 | 2,11 | 1,20-3,70 | 2,10 | 1,20-3,67 |
RP: Razão de prevalências. IC95%: Intervalo de Confiança 95%.
A análise ajustada do consumo de risco de bebida alcoólica para os homens (Tabela 4) mostra que idade foi inversamente associada com o desfecho. Já as variáveis estar sem companheiro (RP 1,28), percentual de renda representada pelo fumo (RP 1,31), empregado ou arrendatário (RP 1,34), empréstimo em 2010 (RP 1,62), vender o fumo para picareta (RP 1,39), frequência de uso de agrotóxico maior que 10 dias (RP 1,54) e ser tabagista (RP 1,46) foram associadas positivamente com o desfecho.
Tabela 4 Consumo de risco de bebida alcoólica: Prevalência e fatores associados em fumicultores entre homens. N = 1456.
Variáveis | Bruto | Ajustado | |||
---|---|---|---|---|---|
| |||||
% | RP | 95%IC | RP | 95%IC | |
Primeiro nível | |||||
Idade | |||||
18 a 29 | 36,2 | 1 | 1 | ||
30 a 39 | 34,1 | 0,94 | 0,77-1,14 | 1,01 | 0,82-1,23 |
40 a 49 | 30,1 | 0,83 | 0,67-1,02 | 0,91 | 0,73-1,13 |
≥ 50 | 23,2 | 0,63 | 0,51-0,79 | 0,75 | 0,59-0,96 |
Estado civil | |||||
com companheiro | 27,4 | 1 | 1 | ||
sem companheiro | 37,9 | 1,38 | 1,18-1,61 | 1,28 | 1,08-1,51 |
Percentual da renda representada pelo fumo | |||||
até 75% | 26,7 | 1 | 1 | ||
76 a 89% | 38,5 | 1,43 | 1,17-1,76 | 1,31 | 1,07-1,60 |
> 90% | 29,9 | 1,11 | 0,92-1,35 | 1,01 | 0,83-1,23 |
Relação de trabalho | |||||
família proprietária | 30,2 | 1 | 1 | ||
empregado/arrendatário | 41,5 | 1,37 | 1,04-1,81 | 1,34 | 1,03-1,76 |
Perda da lavoura por granizo | |||||
não | 29,0 | 1 | 1 | ||
sim | 36,6 | 1,26 | 1,07-1,48 | 1,24 | 1,06-1,45 |
Empréstimo em 2010 | |||||
não | 19,7 | 1 | 1 | ||
sim | 33,1 | 1,67 | 1,28-2,20 | 1,62 | 1,24-2,13 |
Venda para picareta | |||||
não | 25,4 | 1 | 1 | ||
sim | 35,9 | 1,41 | 1,20-1,65 | 1,39 | 1,19-1,63 |
Segundo nível | |||||
Frequência que participa de atividades religiosas | |||||
não participa | 47,7 | 1 | 1 | ||
de vez em quando | 30,7 | 0,64 | 0,46-0,89 | 0,73 | 0,53-1,02 |
frequente | 29,1 | 0,60 | 0,43-0,86 | 0,72 | 0,50-1,02 |
Fuma | |||||
não | 27,2 | 1 | 1 | ||
sim | 35,7 | 1,31 | 1,10-1,56 | 1,46 | 1,22-1,73 |
ex-fumante | 32,3 | 1,18 | 0,96-1,46 | 1,32 | 1,07-1,63 |
Horas de trabalho agrícola na safra | |||||
até 8 horas | 15,3 | 1 | 1 | ||
9 a 12 horas | 29,6 | 1,93 | 1,25-2,96 | 1,39 | 0,92-2,10 |
≥ 13 horas | 36,1 | 2,35 | 1,53-3,62 | 1,81 | 1,19-2,74 |
Enfardou o fumo | |||||
não/às vezes | 17,6 | 1 | 1 | ||
frequente /sempre | 32,7 | 1,85 | 1,34-2,55 | 1,52 | 1,12-2,07 |
Cuida da horta | |||||
não | 35,7 | 1 | 1 | ||
de vez em quando | 22,8 | 0,63 | 0,51-0,78 | 0,71 | 0,58-0,88 |
frequente /sempre | 22,3 | 0,62 | 0,47-0,82 | 0,70 | 0,53-0,92 |
Esforço físico pesado | |||||
não | 22,5 | 1 | 1 | ||
sim | 33,5 | 1,48 | 1,20-1,83 | 1,19 | 0,96-1,48 |
Frequência de uso de agrotóxicos por mês em período de uso intenso | |||||
Sem exposição | 20,3 | 1 | 1 | ||
1 a 10 dias | 31,3 | 1,54 | 1,18-2,01 | 1,17 | 0,88-1,54 |
≥ 11 dias | 41,8 | 2,05 | 1,52-2,78 | 1,54 | 1,12-2,13 |
Terceiro nível | |||||
SRQ positivo | |||||
não | 31,5 | 1 | 1 | ||
sim | 23,3 | 0,73 | 0,54-1,00 | 0,67 | 0,50-0,89 |
RP: Razão de prevalências. IC95%: Intervalo de Confiança 95%.
Ainda na Tabela 4, em relação às variáveis ocupacionais, o consumo de risco em homens foi mais frequente entre os que enfardavam o fumo (RP 1,52) e que trabalhavam mais de 12 horas por dia em período de safra (RP 1,81). Cuidar da horta e ter SRQ positivo foi inversamente associado com o consumo de risco. Participar de atividades religiosas e esforço físico pesado perderam a significância na análise ajustada.
Na Tabela 5 observa-se que, para homens, ter 40 anos ou mais apresentou maior razão de prevalências para beber pesado do que os menores de 39 anos (RP 1,84). Ter perdido a lavoura por granizo (RP 1,63), vender fumo para “picaretas” (RP 2,10), tabagismo (RP 1,92), desgalhar árvores (RP 2,53) e ter dor lombar crônica (RP 2,10) foram associados positivamente com o desfecho. Os que participavam de atividades religiosas tinham uma razão de prevalências 70% menor de beber pesado. Trabalhar mais de 12 horas no período da safra perdeu a significância na análise ajustada.
Tabela 5 Beber Pesado: Prevalência e fatores associados em fumicultores entre homens. N = 1456.
Variáveis | Bruto | Ajustado | |||
---|---|---|---|---|---|
| |||||
% | RP | 95%IC | RP | 95%IC | |
Primeiro nível | |||||
Idade | |||||
18 a 29 | 3,2 | 1 | 1 | ||
30 a 39 | 4,4 | 1,35 | 0,65-2,81 | 1,34 | 0,64-2,77 |
≥ 40 | 6,0 | 1,84 | 1,00-3,39 | 1,84 | 1,01-3,37 |
Perda da lavoura por granizo | |||||
não | 4,2 | 1 | 1 | ||
sim | 6,9 | 1,64 | 1,02-2,62 | 1,63 | 1,02-2,61 |
Venda do fumo para picaretas | |||||
não | 3,1 | 1 | 1 | ||
sim | 6,5 | 2,14 | 0,31-3,53 | 2,10 | 1,27-3,47 |
Segundo nível | |||||
Frequência que participa de atividades religiosas | |||||
não participa | 15,9 | 1 | 1 | ||
de vez em quando | 4,1 | 0,26 | 0,12-0,54 | 0,28 | 0,13-0,61 |
frequente | 5,4 | 0,34 | 0,15-0,75 | 0,36 | 0,16-0,84 |
Fuma | |||||
não | 3,3 | 1 | 1 | ||
sim | 7,3 | 2,20 | 1,32-3,68 | 1,92 | 1,13-3,26 |
ex-fumante | 5,1 | 1,51 | 0,81-2,94 | 1,54 | 0,80-2,98 |
Horas de trabalho agrícola na safra | |||||
≤ 12horas | 5,7 | 1 | 1 | ||
≥ 13horas | 3,4 | 0,59 | 0,35-1,01 | 0,60 | 0,35-1,03 |
Desgalhou árvores no último ano | |||||
não/às vezes | 2,3 | 1 | 1 | ||
frequente/sempre | 6,3 | 2,67 | 1,47-4,83 | 2,53 | 1,39-4,58 |
Terceiro nível | |||||
Dor lombar crônica > 3 meses | |||||
não | 4,4 | 1 | 1 | ||
sim | 10,5 | 2,39 | 1,32-4,31 | 2,10 | 1,16-3,80 |
RP: Razão de prevalências. IC95%: Intervalo de Confiança 95%.
Este estudo indica uma prevalência importante do consumo de risco de bebida alcoólica e de beber pesado em agricultores que plantam fumo. Neste contexto, o nível de diversificação na renda, as intempéries causadas pelo clima, o endividamento, as longas jornadas de trabalho pesado e os riscos ocupacionais ligados à manipulação de agrotóxicos devem ser considerados na cadeia causal, bem como a variabilidade dos fatores associados conforme o padrão de consumo.
As diversas definições de padrões de consumo de bebida alcoólica encontradas na literatura dificultam a comparabilidade dos estudos. As prevalências de beber pesado3,12,13,20,28 e CAGE3,11,25 em homens e consumo de risco em mulheres10,11,14,27 foram comparáveis às mais baixas encontradas na literatura, enquanto tanto o consumo de risco12,17,19,22,27 como o beber pesado episódico20,42 em homens foram comparáveis às mais altas.
Em todos os padrões de consumo de bebida alcoólica, observa-se que a prevalência é maior em homens do que em mulheres, e foi condizente com a literatura2,3,5,6,10-14,17-20,22,26,28 que aponta uma maior aceitação social desta prática no sexo masculino. A aceitação social pode favorecer um maior consumo, mas também ampliar o relato provocando a superestimativa do consumo em homens e subestimativa em mulheres. O consumo ocorreu principalmente aos finais de semana12, propiciado pelos momentos de reprodução, quando o trabalhador busca momentos de relaxamento3, atividades recreativas e festividades4,28.
Na literatura, a associação entre idade e consumo de risco ou beber pesado são inconsistentes3,7,9,13,19,21,22,28,31. Neste estudo foi encontrada maior frequência de consumo de risco em homens e mulheres jovens19,28, o qual reflete os valores culturais e a norma social, que considera aceitável, e até incentiva o consumo em festas e encontros nas comunidades4,28. Já o aumento da razão de prevalências de beber pesado com idade em homens pode indicar o adoecimento pelo alcoolismo. Outras variáveis como estado civil e percentual de renda do fumo não foram associadas no beber pesado, pois, diferente do consumo de risco, os fatores de ordem biológica e psicológica parecem preponderar no beber pesado43.
Neste estudo, encontrou-se associação entre estado civil e consumo de risco em homens e mulheres, mas na literatura os achados são inconsistentes4,7,13,20. A instabilidade familiar pode ser um motivo para que as pessoas sem companheiro assumam um padrão de risco de consumo de bebida alcoólica4,20.
Desde a adesão do Brasil à Convenção Quadro44, existem esforços pela diversificação da produção, e pela diminuição da dependência da cultura do fumo. De fato, 42% das famílias têm procurado substituir o plantio do tabaco por outras atividades e ocupações45. Houve associação inversa entre a proporção da renda representada pelo fumo e o consumo de risco em mulheres, enquanto para os homens, o grupo com 76 a 89% da renda representada pelo fumo apresentou maior razão de prevalências. Este achado inconsistente entre os sexos parece indicar que uma maior diversificação de culturas em mulheres gera para elas mais incertezas e stress aumentando o consumo de risco, enquanto para os homens o grupo intermediário de diversificação de culturas ainda assim reflete grande dependência de um único cultivo e talvez com mais dívidas e tentativa de maximizar o ganho com a venda para picaretas, do que o grupo que tem 90% ou mais da renda representada pelo fumo. Além dos aspectos ocupacionais é preciso considerar que o grupo com maior diversificação pode estar relacionado com menor nível econômico, que, se por um lado gera stress, por outro, gera menor possibilidade de consumo em geral e, em particular, de bebida alcoólica.
Empregados e arrendatários homens e mulheres apresentaram maior prevalência de consumo de risco de bebida alcoólica. Dados semelhantes foram encontrados em um estudo em área rural da África, onde a prevalência de consumo regular de bebida alcoólica entre agricultoras foi de 26,1%, e a de trabalhadoras assalariadas foi de 37,7%4,46. Isto pode ocorrer porque os empregados e arrendatários em geral tem nível econômico mais baixo, maior demanda de trabalho e menor controle sobre a quantidade e sobre a forma de executar o trabalho. Entretanto, este achado difere de estudo chileno no qual 16,9% dos proprietários consumiam bebida em um padrão de risco, enquanto 14,7% dos empregados apresentavam esta condição16.
A participação em atividades religiosas foi um fator de proteção para beber pesado, mas perdeu a significância no consumo de risco para homens, e não foi associada em mulheres. Pessoas que participam de alguma religião frequentemente possuem uma rede social que ajuda a resolver problemas com bebidas, e a manter a abstinência, ou o padrão moderado de consumo alcoólico22,30. Mas pode haver causalidade reversa, pois pessoas eventualmente não bebem porque participam de atividades religiosas. Consistente com a literatura, foi encontrado associação entre tabagismo e consumo de risco em homens5,8,13,21,35, mas não teve poder estatístico para avaliar esta associação em mulheres.
As horas de trabalho estiveram diretamente associadas ao consumo de risco para homens (RP 1,81 em ≥ 13horas), mas foram fator de proteção para beber pesado (RP 0,6 ≥ 13horas). Parece haver uma competição entre o tempo dedicado a produção e aquele dedicado a reprodução com atividades de lazer onde o consumo de risco estaria inserido. Por outro lado, o beber pesado pode ser limitante para uma inserção mais efetiva na produção e resultar no efeito do trabalhador sadio43.
Outras variáveis ocupacionais apresentaram associação positiva tanto com beber pesado (desgalhar árvores RP 2,53) como com o consumo de risco (enfardar o fumo RP 1,52, esforço físico pesado RP 1,19, uso de agrotóxicos RP 1,54 em ≥ 11 dias) em homens. Na agricultura, as pessoas mais fortes, intrépidas, fazem os trabalhos mais pesados, e se arriscam mais. Ao encontro deste perfil de maior risco, estão as mulheres que se expõem a agrotóxicos (RP 2,10). Contrário a isto, estão os homens que cuidam da horta (RP 0,70). Vários estudos mostram que os trabalhadores manuais apresentam risco aumentado para o consumo de bebida alcoólica comparado a outras categorias2,6,13,16,47,48.
O SRQ positivo foi um fator de proteção para o consumo de risco em homens. Este achado parece ocorrer por causalidade reversa, já que sujeitos com problemas psiquiátricos menores podem ter indicação médica de evitar o consumo de bebida alcoólica, especialmente o consumo de risco, inclusive pelo uso de medicações que contraindicam este tipo de consumo. A associação da dor lombar com o consumo moderado já foi relatada na literatura (RP 0,88), mas o efeito é inconsistente e depende do padrão de consumo de bebida alcoólica avaliado49.
Este estudo indica que o consumo de risco de bebida alcoólica é um problema nos homens da população avaliada e mostra que, além dos fatores sócio demográficos já bem estabelecidos, existem fatores ocupacionais associados ao consumo de risco de bebidas alcoólicas em homens. O estudo aponta também que os fatores associados variam conforme o padrão de consumo avaliado.
Este estudo utilizou amostragem aleatória e teve poucas perdas, portanto é representativo da população de fumicultores. O consumo de bebida alcoólica foi avaliado com medidas objetivas em relação à quantidade, frequência e duração durante a semana e final de semana e a categorização do desfecho seguiu as normas do Guia de Nutrição para Americanos41. Entretanto, o instrumento utilizado não foi validado e os entrevistadores deste estudo pertenciam à mesma comunidade dos entrevistados, o que pode ter subestimado a prevalência do desfecho.
O estudo contribui para ampliar o conhecimento sobre padrões de consumo de bebida alcoólica em agricultores familiares, em especial fumicultores, e aprofunda o entendimento do papel dos fatores ocupacionais sobre os desfechos em estudo. Entretanto, o consumo de bebida alcoólica é determinado por aspectos culturais com características étnicas, e a extrapolação dos resultados deve ser feita com cautela.
Futuros estudos devem explicitar os padrões de consumo de bebida alcoólica examinados e avaliar vários padrões, de modo a facilitar a comparabilidade dos achados. Os fatores ocupacionais relacionados ao consumo de bebida alcoólica devem ser mais bem investigados. Os serviços de saúde e de educação devem enfocar, no âmbito dos hábitos de vida saudável, a importância de evitar o consumo excessivo de bebida alcoólica, ter uma alimentação saudável, não fumar e identificar uma prática de atividade física compatível com um trabalho que já é bastante exigente.