versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.24 no.8 Rio de Janeiro ago. 2019 Epub 05-Ago-2019
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018248.23232017
Os benzodiazepínicos atuam como sedativos, hipnóticos, relaxantes musculares e anticonvulsivantes, e são especialmente úteis no tratamento da ansiedade aguda e da insônia transitória. O ponto de atenção exigido para eles é o uso crônico, e seus desdobramentos em termos de potencial de dano e risco de dependência, síndrome de abstinência e reações adversas1. A dependência química associada aos benzodiazepínicos – consequente à tolerância e evidenciada pelo comportamento de busca pronunciado – sugere que se deva suspender seu uso, o que não costuma ser simples. A síndrome da abstinência surge em, no mínimo, 1/3 dos usuários de longa duração e inclui insônia, manifestações psicológicas e físicas de ansiedade, depressão, percepções sensoriais distorcidas ou aumentadas, dores e espasmos musculares, agitação, torpor, perda de apetite, psicose, delirium, ataques epiléticos, que podem persistir por semanas ou meses2. A descontinuação pode envolver estratégias que vão do aconselhamento, reuniões, programas com a assistência de médicos ou de psicólogos, até o uso de medicamentos e psicoterapia de grupo3.
As principais reações adversas aos benzodiazepínicos comprometem as funções mentais e motoras, afetam a cognição e o desempenho motor, podem ter consequências graves e incidem, principalmente, entre os idosos. São elas: a disfunção cognitiva, cujo risco é 50% maior entre os usuários do que entre os não usuários4; as quedas, que incidem 5 vezes mais em usuários com hipotensão postural do que em não usuários5; as fraturas de quadril, principalmente nas duas primeiras semanas de uso6; e os acidentes de trânsito com veículos motorizados7.
A frequência elevada de uso de benzodiazepínicos encontra poucos paralelos entre os produtos terapêuticos de uso corrente, tanto em países europeus8 como nos EUA, onde o uso não médico cria grande demanda de atendimentos de emergência9 e crescente mortalidade por overdose10. Na Austrália 3% da população adulta recebia prescrição na década de 199011 e no Uruguai 1/5 da população consumiu algum tipo de tranquilizante ou hipnótico alguma vez na vida12. No Brasil, o panorama não é diferente13-16.
Um importante representante da classe dos benzodiazepínicos é o clonazepam, considerado fármaco potente e de meia vida longa, daí a preocupação com os efeitos do uso prolongado e do potencial para abuso17. No Uruguai, 28% dos agentes envolvidos em intoxicações agudas eram benzodiazepínicos, estando o clonazepam entre os mais implicados18. Nos EUA, o clonazepam ocupou a terceira posição no total de consultas médicas do Medicare que receberam prescrição de benzodiazepínicos, tendo dobrado entre 2005 a 200919.
No Brasil, o clonazepam chamou a atenção da mídia leiga e dos profissionais de saúde a partir da divulgação de dados da Anvisa. Considerando todas as formulações industrializadas e as manipuladas sujeitas a controle especial, ele foi o princípio ativo mais consumido no País, entre 2007 e 201020,21.
As especialidades farmacêuticas contendo clonazepam estão registradas na Anvisa com indicações terapêuticas para distúrbio epiléptico, transtornos de ansiedade e transtornos do humor, na forma de comprimidos, comprimidos sublinguais e solução oral22. O clonazepam faz parte do formulário terapêutico nacional e está sujeito a controle especial. O produto de referência é o Rivotril®, da Roche, e há 23 genéricos e 6 similares registrados23.
Assim, diante da escassez de estudos de consumo do clonazepam, considerou-se oportuno situar o problema da venda e do consumo de produtos contendo esse princípio ativo no Estado do Rio de Janeiro. O objetivo é estimar a prevalência de uso a partir de informações oferecidas pela Anvisa. Pretende-se ainda explorar possíveis explicações para diferenças encontradas entre os municípios do Estado.
Trata-se de abordagem ecológica e descritiva para quantificar o consumo de clonazepam pela população do Estado do Rio de Janeiro, entre os anos de 2009 a 2013, a partir de banco de dados administrativo da Anvisa. No presente estudo, as aquisições foram assumidas como proxy para o consumo, mesmo considerando que nem todos os produtos adquiridos tenham sido efetivamente utilizados e considerando que não fazem parte do sistema informação sobre produtos consumidos em hospitais, na rede pública, ou distribuídos por instituições não governamentais.
A fonte de informação é o Sistema de Gerenciamento de Produtos Controlados (SNGPC/Anvisa), conforme previsto na Portaria SVS/MS nº 344/1998. As drogarias e farmácias privadas enviam arquivo XML (eXtensible Markup Language) à Anvisa, em períodos de até sete dias, contendo informações sobre aquisição, prescrições dispensadas, perdas e transferências de medicamentos sujeitos a controle especial no Brasil24. As planilhas fornecidas pelo SNGPC/Anvisa contêm as unidades físicas adquiridas de especialidades farmacêuticas (produtos industrializados) e de fórmulas (produtos manipulados) com clonazepam, assim como a conversão em miligramas anuais.
O consumo foi computado como o valor total em miligramas de clonazepam adquiridos por ano. A partir da definição da OMS para Dose Diária Definida por dia, por 1000 habitantes, foram utilizados dois indicadores, um deles com a população total e o outro com a população com 18 anos ou mais de idade. A fórmula para o cálculo é:
mg= total de miligramas de clonazepam adquiridos por ano.
DDD= Dose Diária Definida. Padronizada pela OMS em 8mg25.
Hab= população total ou população com 18 anos ou mais de idade.
Para algumas análises utilizou-se na fórmula a DDD de 1 mg, ao invés de 8 mg, uma vez que essa última é a dose indicada para tratamento como anticonvulsivante, sendo 1 mg o valor aproximado para o uso como hipnosedativo.
As descrições do consumo no Rio de Janeiro, entre 2009 e 2013, são apresentadas em miligramas de clonazepam, e em DDD, por dia, por 1000 habitantes, com população total ou com população de 18 anos e mais de idade.
Os Municípios da Região Metropolitana foram submetidos à análise de cluster, que permite agrupar objetos, segundo características, formando grupos ou conglomerados. É técnica estatística exploratória, com a qual um grupo de observações é reduzido para permitir uma análise mais consistente dos dados. Utilizou-se o método hierárquico aglomerativo de Ward, que minimiza o quadrado da distância euclidiana às médias dos grupos. Um grupo será reunido a outro se essa reunião proporcionar o menor aumento da variância intragrupo26. Os conglomerados formados são apresentados segundo o consumo médio e mediano de clonazepam.
Os Municípios foram agrupados segundo: a) Índice de Desenvolvimento Humano (IDH); b) Índice de Gini. O cálculo do IDH envolve a transformação de três dimensões - longevidade, educação e renda - em índices que variam entre 0 (pior) e 1 (melhor), e a combinação deles num indicador síntese. O Índice de Gini mede o grau de concentração de renda em determinado grupo. Ele aponta a diferença entre os rendimentos dos mais pobres e o dos mais ricos e varia de zero a um, sendo o zero representativo da igualdade, ou seja, todos têm a mesma renda27.
Os dados disponíveis sobre o Índice de Gini são oriundos dos Censos Demográficos realizados em 1991, 2000 e 2010, processados pelo Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicadas - IPEA, de acordo com os critérios do indicador de Índice de Gini da renda domiciliar per capita -B.9, dos Indicadores e Dados Básicos da Rede Interagencial de Informações para a Saúde - Ripsa. O DATASUS disponibiliza as informações sobre o Índice de Gini da renda domiciliar per capita em http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/ibge/censo/cnv/ginibr.def28
Em 2012, o PNUD Brasil, o Ipea e a Fundação João Pinheiro assumiram o desafio de adaptar a metodologia do IDH Global para calcular o IDH Municipal (IDHM) dos 5.565 municípios brasileiros. Esse cálculo foi realizado a partir das informações dos 3 últimos Censos Demográficos do IBGE – 1991, 2000 e 2010 – e conforme a malha municipal existente em 201029.
A pesquisa foi aprovada pelo CEP da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Na Tabela 1 observa-se aumento do consumo de clonazepam no Estado do Rio de Janeiro, entre 2009 e 2013. Ele cresceu cerca de 6 vezes no período e atinge quase 100 quilos em 2013. O número de Doses Diárias Definidas (DDD) aumentou no período de 0,35 para 1,97 DDD por ano, por 1000 habitantes. Os valores são maiores quando se considera apenas os indivíduos acima de 18 anos de idade, atingindo 2,64 em 2013. Ao se empregar na fórmula de cálculo 1mg, ao invés de 8mg, os valores aumentam expressivamente e, em 2013, atingiram 21,09 DDD por ano, por 1000 habitantes acima de 18 anos.
Tabela 1 . Descrição do consumo de Clonazepam em miligramas, em Dose Diária Definida por dia, por 1000 habitantes. Estado do Rio de Janeiro, 2009 a 2013.
Ano | Consumo em mg | Δanual mg (base 2009) |
DDD por dia, por 1000 habitantes | |||
---|---|---|---|---|---|---|
DDD População total | DDD População > 18 anos |
|||||
8mg | 1mg | 8mg | 1mg | |||
2009 | 16.152.265 | 1 | 0,35 | 2,77 | 0,48 | 3,81 |
2010 | 27.042.552 | 1,67 | 0,58 | 4,64 | 0,78 | 6,27 |
2011 | 38.185.220 | 2,36 | 0,81 | 6,50 | 1,10 | 8,77 |
2012 | 57.294.098 | 3,55 | 1,21 | 9,68 | 1,63 | 13,07 |
2013 | 93.923.124 | 5,81 | 1,97 | 15,73 | 2,64 | 21,09 |
No Estado do Rio de Janeiro, paralelamente ao aumento do consumo em miligramas houve aumento do número de farmácias e drogarias incorporadas ao SNGPC, porém, esse último de forma bem menos pronunciada (Figura 1). Os crescimentos diferenciados afetam a interpretação das estimativas de consumo, como se verá adiante.
Figura 1 Consumo de Clonazepam em miligramas e número de farmácias e drogarias incorporadas pelo Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados (SNGPC-Anvisa). Estado do Rio de Janeiro, 2009 a 2013.Δ = Variação no período
As características dos Municípios da Região Metropolitana (Tabela 2) mostram a população (total e acima de 18 anos), a razão de sexos, o IDH e o Índice Gini para cada um deles. Nota-se que Niterói e Rio de Janeiro apresentam os valores mais elevados para o primeiro Indicador (0,837 e 0,799, respectivamente) denotando melhor situação. O Rio de Janeiro apresenta o valor mais alto para Gini (0,639) sugerindo maior desigualdade.
Tabela 2 Características demográficas e consumo de Clonazepam. Municípios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, 2010.
Município | População (habitantes) |
Razão de sexos M:F (%) | IDH* | GINI** | |
---|---|---|---|---|---|
Total | ≥ 18 anos de idade | ||||
Belford Roxo | 469.332 | 325.829 | 93,5 | 0,684 | 0,461 |
Duque de Caxias | 855.048 | 603.037 | 92,6 | 0,711 | 0,488 |
Guapimirim | 51.483 | 35.847 | 96,5 | 0,698 | 0,523 |
Itaboraí | 218.008 | 155.281 | 95,0 | 0,693 | 0,497 |
Itaguaí | 109.091 | 76.747 | 99,5 | 0,715 | 0,500 |
Japeri | 95.492 | 64.931 | 101,4 | 0,659 | 0,458 |
Magé | 227.322 | 158.201 | 94,7 | 0,709 | 0,508 |
Maricá | 127.461 | 95.421 | 96,7 | 0,765 | 0,510 |
Mesquita | 168.376 | 121.424 | 90,1 | 0,737 | 0,492 |
Nilópolis | 157.425 | 117.669 | 88,0 | 0,753 | 0,481 |
Niterói | 487.562 | 387.133 | 86,3 | 0,837 | 0,598 |
Nova Iguaçu | 796.257 | 561.073 | 92,1 | 0,713 | 0,514 |
Paracambi | 47.124 | 35.845 | 102,0 | 0,720 | 0,472 |
Queimados | 137.962 | 94.809 | 93,3 | 0,680 | 0,458 |
Rio de Janeiro | 6.320.446 | 4.815.996 | 88,1 | 0,799 | 0,639 |
São Gonçalo | 999.728 | 745.418 | 90,6 | 0,739 | 0,461 |
São João de Meriti | 458.673 | 330.201 | 90,7 | 0,719 | 0,462 |
Seropédica | 78.186 | 55.329 | 96,7 | 0,713 | 0,484 |
Tanguá | 30.732 | 21.785 | 99,0 | 0,654 | 0,462 |
*IDH Índice de Desenvolvimento Humano.
**GINI- Índice de Gini.
Na Região Metropolitana do Rio de Janeiro o consumo de clonazepam variou amplamente entre os Municípios, embora, de forma geral, tenha aumentado ao longo do tempo. O cálculo empregando a população com 18 anos ou mais de idade retorna valores superiores. Assim, para o ano de 2013, entre os Municípios, as estimativas variaram de 0,28 a 4,52, o que significa que há Municípios onde, a cada dia, mais do que 4 doses para tratamento foram dispensadas, a cada 1000 adultos. Chamam atenção os valores do Município do Rio de Janeiro e de Niterói (3,38 e 4,52, respectivamente), os mais elevados da Região (Tabela 3).
Tabela 3 Consumo de Clonazepam em DDD* por dia, por 1000 habitantes. Municípios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, 2009 a 2013.
Município | DDD por dia, por 1000 habitantes | |||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
2009 | 2010 | 2011 | 2012 | 2013 | ||||||
População total |
População >18anos |
População total |
População >18anos |
População total |
População >18anos |
População total |
População >18anos |
População total |
População >18anos |
|
Belford Roxo | 0,07 | 0,10 | 0,14 | 0,20 | 0,22 | 0,32 | 0,44 | 0,64 | 0,56 | 0,80 |
Duque de Caxias | 0,17 | 0,24 | 0,36 | 0,51 | 0,71 | 1,00 | 1,01 | 1,43 | 1,00 | 1,40 |
Guapimirim | 0,67 | 0,98 | 0,92 | 1,31 | 0,83 | 1,19 | 0,64 | 0,92 | 0,89 | 1,25 |
Itaboraí | 0,77 | 1,11 | 0,94 | 1,32 | 0,71 | 1,00 | 0,80 | 1,12 | 1,57 | 2,18 |
Itaguaí | 0,16 | 0,24 | 0,16 | 0,23 | 0,17 | 0,24 | 0,48 | 0,68 | 1,16 | 1,62 |
Japeri | 0,08 | 0,12 | 0,08 | 0,12 | 0,14 | 0,20 | 0,14 | 0,21 | 0,24 | 0,35 |
Magé | 0,17 | 0,25 | 0,24 | 0,34 | 0,22 | 0,31 | 0,31 | 0,44 | 0,61 | 0,87 |
Maricá | 0,44 | 0,59 | 0,62 | 0,82 | 0,88 | 1,18 | 1,28 | 1,71 | 1,13 | 1,47 |
Mesquita | 0,02 | 0,03 | 0,12 | 0,17 | 0,11 | 0,15 | 0,25 | 0,34 | 0,21 | 0,28 |
Nilópolis | 0,73 | 0,99 | 0,71 | 0,95 | 0,67 | 0,89 | 0,61 | 0,82 | 1,68 | 2,24 |
Niterói | 0,64 | 0,82 | 0,98 | 1,23 | 1,51 | 1,90 | 2,42 | 3,04 | 3,60 | 4,52 |
Nova Iguaçu | 0,15 | 0,22 | 0,29 | 0,41 | 0,46 | 0,65 | 0,75 | 1,06 | 1,10 | 1,55 |
Paracambi | 1,73 | 2,34 | 0,74 | 0,97 | 0,95 | 1,26 | 1,18 | 1,55 | 1,80 | 2,35 |
Queimados | 0,22 | 0,32 | 0,44 | 0,64 | 0,50 | 0,73 | 0,82 | 1,19 | 1,79 | 2,57 |
Rio de Janeiro | 0,32 | 0,43 | 0,58 | 0,76 | 0,78 | 1,02 | 1,21 | 1,58 | 2,59 | 3,38 |
São Gonçalo | 0,23 | 0,31 | 0,38 | 0,52 | 0,67 | 0,90 | 1,22 | 1,63 | 2,01 | 2,67 |
São João de Meriti | 0,12 | 0,17 | 0,31 | 0,44 | 0,44 | 0,61 | 0,64 | 0,89 | 0,78 | 1,08 |
Seropédica | 0,29 | 0,42 | 0,91 | 1,28 | 0,95 | 1,34 | 1,18 | 1,67 | 1,00 | 1,40 |
Tanguá | 0,27 | 0,39 | 0,43 | 0,61 | 0,64 | 0,90 | 1,17 | 1,65 | 1,05 | 1,46 |
Média | 0,38 | 0,53 | 0,49 | 0,68 | 0,61 | 0,83 | 0,87 | 1,19 | 1,30 | 1,76 |
Desvio Padrão | 0,40 | 0,54 | 0,30 | 0,41 | 0,35 | 0,46 | 0,52 | 0,66 | 0,83 | 1,04 |
Mediana | 0,23 | 0,32 | 0,43 | 0,61 | 0,67 | 0,90 | 0,80 | 1,12 | 1,10 | 1,47 |
Mínimo | 0,02 | 0,03 | 0,08 | 0,12 | 0,11 | 0,15 | 0,14 | 0,21 | 0,21 | 0,28 |
Máximo | 1,73 | 2,34 | 0,98 | 1,32 | 1,51 | 1,90 | 2,42 | 3,04 | 3,60 | 4,52 |
*DDD = 8mg.
A Figura 2 apresenta as médias e as medianas do consumo dos Municípios da Região Metropolitana do Rio, para todo o período, expressas em Doses Diárias Definidas, por dia, por 1000 habitantes e também por 1000 indivíduos com 18 anos ou mais de idade. As diferenças são mais proeminentes quando os Municípios são agrupados por IDH, e ao se empregar, como referência, a população total (Figura 2c). Aí, as medianas para os grupos de Municípios 1, 2 e 3 são, respectivamente, 1,14, 0,67 e 0,36 DDD, por dia, por 1000 habitantes. As médias são 1,46, 0,70 e 0,47 DDD, por dia, por mil habitantes. Nas demais condições - com o Índice GINI e com referência àqueles com 18 anos ou mais de idade, o padrão é semelhante.
Figura 2 Médias e Medianas de consumo de Clonazepam em DDD por dia, por 1000 habitantes, por grupos de Municípios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, agrupados segundo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e Índice GINI, 2009 a 2013 (DDD = 8mg).A: população total; B: população > 18 anos, GINI. Municípios: Grupo 1- Rio de Janeiro, Niterói; Grupo 2- Nova Iguaçu, Maricá, Magé, Guapimirim, Itaguaí, Itaboraí, Seropédica, Nilópolis, Mesquita, Duque de Caxias; Grupo 3 – Paracambi, Queimados, Japeri, Tanguá, São João de Meriti, São Gonçalo, Belford Roxo;C: população total; D: população > 18 anos, IDH. Municípios: Grupo 1- Rio de Janeiro, Niterói; Grupo 2- Nilópolis, Maricá, São Gonçalo, Mesquita, Itaguaí, Magé, Paracambi, Nova Iguaçu, Itaboraí, Seropédica, São João de Meriti, Guapimirim, Duque de Caxias; Grupo 3- Tanguá, Japeri, Queimados, Belfort Roxo.
O acesso a informações padronizadas e válidas sobre uso de medicamentos pode ser útil para auditorias, para identificação de problemas, para fins educativos e para monitorar os desfechos das intervenções. Daí a importância do SNGPC/Anvisa, criado em 2009, como reconhecimento da relevância do uso racional de medicamentos no contexto dos cuidados com a saúde. O Sistema permitiu identificar desvio de uso do cloridrato de fluoxetina, fora da indicação terapêutica como antidepressivo30; conhecer o volume de vendas e a distribuição do consumo de inibidores do apetite24; e estimar o consumo de benzodiazepínicos e sua relação com indicadores sociais31. A cobertura do SNGPC é abrangente; em 2010, 69% dos municípios brasileiros possuíam, pelo menos, uma farmácia ou drogaria no Sistema, contemplando 41032 unidades cadastradas, o que correspondia a 58% do total20. O presente estudo reforça a importância do emprego das grandes bases de dados administrativas em investigações epidemiológicas, particularmente, as do campo da farmacovigilância e dos estudos de utilização de medicamento.
Os dados analisados apontaram consumo crescente de clonazepam no Estado do Rio de Janeiro, entre 2009 e 2013, quando medido em miligramas – com implicações nos gastos familiares e na política de medicamentos – e em Doses Diárias Definidas (DDD) - indicador da Organização Mundial da Saúde (OMS) que pondera para o efeito do tamanho populacional, permitindo fazer comparações e avaliar a racionalidade do uso. O crescimento do consumo é real e ocorreu independente da incorporação de novas farmácias e drogarias ao SNGPC, mesmo aquelas que se somaram com a entrada dos antimicrobianos no Sistema, criada em meados de 2011. O presente estudo indica que no Estado do Rio de Janeiro, entre 2009 e 2013, o número de unidades incorporadas aumentou quase 40% enquanto o consumo em miligramas cresceu quase 500% (Figura 1).
A DDD é fruto da busca de uma unidade de medida para comparar medicamentos consumidos ao longo do tempo, e entre países ou regiões. Criada em meados da década de 1970, ela define para cada princípio ativo a dose diária média assumida para manutenção do tratamento na indicação terapêutica principal para os adultos. Juntamente com a classificação Anatomical Therapeutic Chemical (ATC) forma o sistema ATC/DDD, coordenado pelo Collaborating Centre for Drug Statistics Methodology25. O método foi desenvolvido para padronizar informação sobre grandes volumes de vendas, disponíveis nas farmácias, em unidades que façam sentido do ponto de vista médico17. É útil para fármacos de uso crônico, nos quais o valor da DDD coincide com a dose média32 quando as indicações terapêuticas e as posologias não variam muito, e quando os princípios ativos são comercializados individualmente, e não associados. A DDD é formulada a partir de compromissos baseados em revisão da informação disponível sobre as doses usadas em vários países. Entretanto, não corresponde necessariamente à dose recomendada ou à prescrita, que sofrem influência de aspectos farmacocinéticos, de fatores individuais ou de grupos de pacientes32 e das indicações terapêuticas.
Assim, a análise da Região Metropolitana sugere que há Municípios onde são dispensados acima de 4 tratamentos, por dia, a cada 1000 adultos com 18 anos ou mais de idade. A despeito da cifra elevada, acredita-se que haja subestimação, uma vez que a DDD padronizada pela OMS é de 8 mg, dose indicada no tratamento anticonvulsivante, sua principal indicação terapêutica em países europeus. Porém, no Brasil, os comprimidos comercializados contêm entre 0,5 mg e 2,5 mg do princípio ativo, dose indicada para transtornos da ansiedade e do sono. Consequentemente, estimativas baseadas no valor padronizado pela OMS mascaram níveis mais elevados de utilização11. Estudo australiano estimou que o número de DDD cresce de 4,46 para 71,42 doses quando se considera a DDD de 8 mg e a de 0,5 mg, respectivamente11. Estudo no Uruguai empregou DDD de 1 mg e obteve uma média de doses em usuários das farmácias hospitalares de 36,5112. No presente estudo, as DDD crescem de 2,64 para 21,09 doses na população adulta em 2013, quando se considera a DDD de 8 mg e a de 1 mg, respectivamente.
As hipóteses para explicar as diferenças no consumo de clonazepam entre os Municípios podem incluir: aspectos da morbimortalidade; desigualdades de acesso à assistência médica; diferenças entre as farmácias e drogarias quanto à capacidade operacional de incorporar-se ao SNGPC; e desigualdades sociais e econômicas.
A situação de saúde associa-se às condições socioeconômicas, e por isso buscou-se explorar o papel do IDH e do Índice de Gini sobre o consumo desigual do clonazepam entre os Municípios. Aplicada a técnica de análise de conglomerados, ou cluster, eles mostraram-se promissores quanto à sua capacidade de distinguir localidades. O Rio de Janeiro e Niterói ficaram agrupados no mesmo conglomerado (Grupo 1) em todas as análises, o que sugere bom desempenho e consistência do modelo. Reafirma essa constatação, a ordem de grandeza das médias e medianas de consumo, observadas para ambos os indicadores. Há um gradiente decrescente de consumo do Grupo 1 para o Grupo 3, com os níveis mais elevados de consumo no Rio e em Niterói. As estimativas fazem supor que o consumo de clonazepam é menor em piores condições sociais e econômicas. Pode haver um paradoxo, com desvios de excesso e de acesso. Populações com melhores condições econômicas e de assistência – e pronunciada desigualdade, como no município do Rio de Janeiro - com consumo exagerado convivendo com outras em piores condições e sem acesso a medicamentos necessários.
Segundo o bulário da Anvisa, o clonazepam é recomendado, isolado ou com outros fármacos, em inúmeras condições, entre as quais crises epilépticas, transtornos de ansiedade, distúrbio do pânico, fobia social; transtornos do humor; transtorno afetivo bipolar, mania; depressão maior; síndromes psicóticas; perturbação do equilíbrio22. Os benzodiazepínicos como o clonazepam são eficazes no tratamento agudo dos transtornos de ansiedade como ansiedade generalizada e pânico1.
A despeito da eficácia dos benzodiazepínicos, e da relevância epidemiológica dos sintomas de distúrbios mentais, é preciso observar que a necessidade de tratamento farmacológico é questionável e o próprio diagnóstico é problemático e implica amplo dissenso33. O uso abusivo e off label de benzodiazepínicos tem sido questionado, sobretudo, no seu papel para abordar condições ou dificuldades inerentes à vida, tais como a ansiedade, a tristeza, a atenção, a memória, o parto, o sobrepeso, a performance sexual masculina e a feminina, o envelhecimento33. O fenômeno, denominado medicalização, baseado em grande parte no excesso de prescrição parece ser generalizado. Nos EUA, um a cada 5 adultos usa no mínimo um fármaco indicado para problema psiquiátrico; cerca de 4% das crianças usam um estimulante; 4% dos jovens usam antidepressivo; 26% dos residentes em instituições de longa permanência usam antipsicóticos33.
Deve-se considerar ainda as reações adversas, sendo que as mais frequentes ocorrem em 1/3 dos usuários, e incluem sonolência, ataxia, perda de memória, diminuição da atenção, euforia transitória. Podem causar depressão respiratória, quedas, dificuldade de coordenação motora, convulsões. Entre os efeitos psicológicos ou psiquiátricos estão déficit cognitivo, delirium, psicose, depressão. Podem desencadear comportamentos agressivos e antissociais, em particular quando combinados com álcool2. A dependência pode desenvolver-se em dias ou semanas, podendo a interrupção causar efeitos opostos aos esperados ou mesmo a intensificação dos sintomas anteriores. Como contraponto, há terapias alternativas ao tratamento farmacológico; para fobia social, não há diferenças relevantes entre terapia cognitiva-comportamental e uso de clonazepam, ambos os tratamentos produzindo efeitos positivos34.
Neste cenário, a análise dos dados do SNGPC cria um mapeamento específico do uso das substâncias psicoativas, em especial dos benzodiazeínicos como o clonazepam, e associa-se à discussão teórica sobre o tema da medicalização, e do excesso de diagnósticos que tem levado ao tratamento farmacológico para condições que não se enquadrariam em síndromes clínicas. Essa discussão é enriquecida com os sentidos e as formas de utilização que adquirem entre seus usuários, provenientes das pesquisas qualitativas, que também estão sendo realizadas por parte deste grupo de pesquisa. Em nosso meio, há uma complexa realidade que mescla, a um só tempo, processos de medicalização correntes e flagrantes situações de falta de acesso a medicamentos essenciais35. Por isso, o estudo da frequência e dos padrões de uso desse medicamento reveste-se de particular importância, pois revela as particularidades locais da relação da população estudada com o uso de ansiolíticos.
As estimativas devem ser olhadas com cautela. Por um lado, há restrições à extrapolação de informações sobre as aquisições para as de consumo. Nem todos os produtos adquiridos são consumidos, e nem todas as doses prescritas são cumpridas, o que indicaria superestimação. Por outro lado, o SNGPC não abrange as doses administradas na rede hospitalar, nem os produtos comprados no atacado e distribuído por instituições, governamentais ou não; e a cobertura das unidades privadas pelo Sistema ainda é incompleta, o que indicaria subestimação e redução da validade externa do estudo.
Como fonte de dados para estudos epidemiológicos, o SNGPC sofre as limitações dos bancos de dados administrativos, não concebidos para alimentar investigações. No caso do SNGPC, não há informação sobre idade, sexo, ou diagnóstico dos usuários. Inquéritos populacionais ou prontuários hospitalares são fontes mais completas e válidas. Ainda assim, o baixo custo para obtenção dos dados e a abrangência nacional tornam as informações do SNGPC úteis para a farmacoepidemiologia, não apenas com estudos descritivos mas para levantar hipóteses a serem testadas posteriormente. Uma das formas de contornar a ausência de variáveis sociais, econômicas e de condições de saúde foi lançar mão de bancos de dados externos, como o que contém o IDH –cujo cálculo envolve longevidade, educação e renda, e o Índice de Gini, que mede o grau de concentração de renda em determinado grupo.
A DDD permite comparações nacionais e internacionais; avaliação de tendências de uso de medicamentos ao longo do tempo; avaliação do impacto de eventos relacionados aos medicamentos; oferta de informações úteis em investigações sobre segurança no uso de fármacos. Mas permite estimar apenas o número aproximado de tratamentos. O emprego da fórmula com a dose de 8 mg, compromete a validade externa, subestima o consumo e merece ser revisado quando empregado em países onde a principal indicação terapêutica seja diferente da padronizada pela OMS.
O uso de 1 mg como padrão possibilitou obter frequência de uso próxima da dos inquéritos com populações brasileiras - 5,4% para benzodiazepínicos13 e 1,61% para tranquilizantes16, reiterando a preocupação com a medicalização do cotidiano, o uso crônico, o risco de dependência, a síndrome de abstinência e as reações adversas.
O emprego da DDD é útil, desde que ajustada às peculiaridades locais. A análise de cluster mostrou-se promissora, pois foi capaz de discriminar diferenças no consumo de um medicamento segundo localização geográfica e características populacionais. Estudos futuros poderão, com essa técnica, explorar outras regiões. O SNGPC merece ser mais utilizado como fonte de estudos sobre medicamentos controlados.
A frequência elevada de uso do clonazepam alerta para a necessidade de tomar medidas para restringir a prescrição de produtos que afetam as funções do sistema nervoso central, sobretudo junto aos profissionais de saúde responsáveis pela prescrição. As estimativas trazem preocupação sobre o uso abusivo, que detalham e aprofundam os dados já indicados pelo sistema SNGPC/Anvisa, e sugerem a revisão dos critérios diagnósticos e terapêuticos no campo da saúde mental. Outros estudos poderão contemplar o impacto do uso massivo de substâncias utilizadas para sintomas psiquiátricos difusos e comuns no cotidiano nos indivíduos, tais como, irritabilidade, humor depressivo, timidez excessiva, ansiedade social, insônia persistente, fadiga, dentre outros.
Além disso, sugere-se, um mapeamento detalhado das principais especialidades médicas e odontológicas que têm prescrito tal substância, investindo em educação continuada dos prescritores a respeito das orientações internacionais sobre a restrição ao uso indiscriminado de benzodiazepínicos, bem como maiores investigações sobre o nível de conhecimento, por parte dos pacientes, dos possíveis efeitos de seu uso crônico.
É digno de nota o papel das variáveis sociais e econômicas no consumo de medicamentos e da desigualdade em saúde. O possível uso excessivo pode estar encobrindo o fato de que setores mais despossuídos e com dificuldade de acesso à assistência médica estejam sendo insuficientemente diagnosticados e tratados.