versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.17 no.3 São Paulo 2019 Epub 05-Set-2019
http://dx.doi.org/10.31744/einstein_journal/2019rb4898
Para aprimorar as adaptações do treinamento físico, buscam-se, além de uma dieta adequada, recursos ergogênicos, que possam, direta e/ou indiretamente, maximizar o desempenho físico, por meio da produção e eficiência da utilização de energia, da recuperação das sessões de exercício, da melhora da composição corporal e da maior resistência à fadiga periférica e central. Entre as categorias de recursos ergogênicos, o nutricional compreende a modulação da composição dietética e/ou uso de suplementação.1
A International Society of Sports Nutrition (ISSN) considera um suplemento como ergogênico quando a ciência básica por trás da sua alegação possui lógica teórica; é legal e seguro, e há um número grande de evidências sólidas que apoiam e suportam a eficácia de alegação ergogênica.2
A comercialização dos aminoácidos de cadeia ramificada (BCAA - branched-chain amino acids ) possui muita popularidade entre os suplementos com alegação ergogênica. O principal marketing está na afirmação de que o consumo isolado de BCAA associado ao exercício físico resistido estimula a síntese de proteína muscular. A alegação de que a síntese de proteína muscular é estimulada pelos BCAA tem mais de 35 anos, tendo sido baseada em estudos em modelo celular e animal, que demonstraram aumento da sinalização intracelular de vias anabólicas em resposta a estes.3 No entanto, as evidências da eficácia da ingestão isolada de BCAA para a hipertrofia muscular em humanos são equivocadas.
Assim, da perspectiva da bioquímica básica, o objetivo deste trabalho é revisar a síntese de proteína muscular, no estado pós-absortivo e pós-exercício físico resistido, e as evidências que suportam ou não a afirmação dos potenciais efeitos anabólicos dos BCAA na síntese, quando consumidos isoladamente em humanos. Foi conduzida uma busca eletrônica nas bases de dados PubMed®, Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS) e Scientific Electronic Library Online (SciELO) usando os termos Medical Subject Headings (MeSH) “ leucine ”, “valine”, “isoleucine”, “branched-chain amino acids”, “muscle protein” e “exercise”. Uma pesquisa secundária foi realizada por meio da leitura das listas de referência dos artigos.
As proteínas são formadas por 20 aminoácidos (AA) unidos por ligações peptídicas que se combinam em diferentes formas e quantidades. Dos 20 AA, 9 são considerados AA essenciais (EAA - essential amino acids ), o que significa que não podem ser sintetizados pelo corpo, devendo ser obtidos pela dieta. Os BCAA leucina, isoleucina e valina são três dos nova EAA e representam quase 50% do total de EAA em proteínas musculares. Os 11 AA restantes são considerados não essenciais (NEAA - nonessential amino acids ), pois podem ser sintetizados no corpo.4 , 5
Em indivíduos saudáveis e com apropriada mobilidade, as proteínas do músculo esquelético são mantidas por um equilíbrio dinâmico entre degradação e síntese de novas proteínas. No estado pós-absortivo (jejum), a degradação de proteína muscular excede a síntese, levando à perda líquida de proteínas. No estado pós-prandial, a síntese excede a degradação, pois a ingestão de alguns nutrientes, como proteínas e carboidratos, estimula a síntese de proteína muscular e aumenta a liberação de insulina, que suprime a degradação.6 Assim, a hipertrofia muscular só acontece quando o balanço líquido de proteínas for positivo (quando a síntese de proteína muscular exceder a degradação de proteína muscular).
Os dois principais determinantes da síntese de proteína muscular em indivíduos adultos são o exercício físico e a disponibilidade de nutrientes.7 , 8 Os efeitos anabólicos dos nutrientes são impulsionados principalmente pela transferência e pela incorporação de AA obtidos das proteínas da dieta, em proteínas do músculo esquelético.7 Mais precisamente, estes efeitos são atribuíveis aos EAA.9
Para a síntese de novas proteínas musculares, todos os EAA, juntamente dos 11 NEAA, devem estar presentes em quantidades adequadas. A síntese de proteína muscular está limitada pela falta/baixa disponibilidade de qualquer EAA, ao passo que a escassez de NEAA pode ser compensada pelo aumento da produção de novo.3
No estado pós-prandial, aproximadamente entre 30 e 45 minutos após a ingestão de uma refeição contendo proteína (tempo médio para digestão, absorção e transporte de AA para a circulação sistêmica), a disponibilidade de EAA é aumentada, e a taxa de síntese de proteína muscular excede a de degradação de proteína muscular, produzindo um estado anabólico e atingindo um máximo entre 1,5 a 3 horas.10
A ativação da síntese de proteína muscular induzida por aminoacidemia é transitória. No estado pós-absortivo, após 2 a 3 horas da última refeição, se não houver nova ingestão dietética de proteína, as concentrações plasmáticas de EAA caem abaixo dos valores pós-prandiais. Nesta circunstância, a disponibilidade plasmática contínua de EAA, por conseguinte o turnover proteico, é mantida às custas do catabolismo das proteínas do maior reservatório corporal: a musculatura esquelética.11 Importante ressaltar que o balanço descrito pode ser modificado diante de fatores como quantidade e qualidade da proteína, distribuição do consumo de proteínas ao longo do dia e exercício físico.
Em humanos, no estado pós-absortivo, a degradação de proteína muscular excede a síntese em torno de 30%, devido ao fato de que 25% dos EAA são liberados no plasma e captados por outros tecidos, e 5% são utilizados para oxidação dentro do próprio músculo. O restante, aproximadamente 70%, é utilizado novamente para manter a síntese de proteína muscular.12 Então, no estado pós-absortivo, a taxa de síntese sempre será menor que a de degradação de proteína muscular devido ao catabolismo das proteínas musculares, e um estado anabólico não pode ocorrer na ausência de ingestão dietética de EAA.
No estado pós-absortivo, a hipótese de que os BCAA isoladamente poderiam otimizar a síntese de proteína muscular está baseada no fato de que a ingestão exógena diminuiria os 30% de degradação, ao disponibilizar mais EAA para síntese − ao invés de estes serem desviados para oxidação ou liberados no plasma.3 Parte de toda esta popularidade é devida ao AA leucina, que, por si só, é capaz de exercer uma resposta na síntese de proteína muscular, ao ativar o complexo 1 da proteína-alvo mecanística da rapamicina (mTORC1 - mechanistic target of rapamycin complex 1), considerado um regulador fundamental do crescimento celular.13
O grupo de Louard et al.,14 , 15 testou esta hipótese. Os pesquisadores avaliaram em humanos, após uma noite de jejum, a infusão intravenosa de BCAA por 3 e por 16 horas, na resposta de síntese e de degradação de proteína muscular. Em ambos os protocolos de tempo, a infusão aumentou as concentrações plasmáticas de todos os três BCAA, enquanto as concentrações de outros EAA diminuíram. Também em ambos, a degradação de proteína muscular foi reduzida em quantidade similar à redução na síntese, mas o equilíbrio entre síntese e degradação continuou negativo. Assim, quando apenas três dos EAA foram consumidos isoladamente, a degradação de proteína muscular foi até amenizada, mas ainda permaneceu acima da síntese de proteína muscular, significando que o estado catabólico predominou para disponibilizar os outros EAA necessários para a síntese. Desse modo, é teoricamente impossível, para o consumo de apenas BCAA, criar um estado anabólico no qual a síntese exceda a degradação de proteína muscular.
Outro conhecimento importante é saber que a ativação de vias anabólicas de proteína e o aumento da síntese de proteína muscular são eventos dissociados. Um aumento na concentração de insulina é um potente ativador das vias de sinalização anabólicas proteicas, mas isso não aumenta a síntese de proteína muscular quando há deficiência de EAA.16 Por outro lado, o consumo de uma pequena quantidade (3g) de EAA estimula a síntese independentemente da ativação das vias de sinalização anabólicas.17 Este aumento nas concentrações plasmáticas de EAA, mesmo que pequeno, não teria efeito se a síntese de proteína muscular fosse limitada pelo estado de ativação dos fatores de iniciação da via. Portanto, estes resultados demonstram que o fator limitante da síntese em humanos é a disponibilidade de todos os EAA, em oposição à ativação das vias de sinalização anabólicas.3
O exercício físico, com ênfase no tipo resistido, combinado com a ingestão de proteínas, maximiza e prolonga a estimulação da síntese de proteína muscular devido a uma sensibilidade aumentada do tecido às propriedades anabólicas dos AA por aproximadamente 24 horas após a sessão.8 , 18 , 19
Churchward-Venne et al.,20 investigaram em humanos o impacto da leucina na síntese de proteína muscular. Os participantes (homens, jovens e treinados) consumiram, após uma sessão de exercício físico resistido: uma dose de 25g de proteína do soro do leite contendo 3 g de leucina (dose suficiente para induzir estimulação máxima de síntese de proteína muscular após exercício físico resistido21 ou um quarto da dose de proteína do soro do leite enriquecida com 3 g de leucina. O estudo demonstrou que, ao longo de 1 a 3 horas após o exercício, a dose subótima de proteína do soro do leite enriquecida com leucina aumentou a síntese de proteína muscular similarmente à dose de 25g de proteína do soro do leite. No entanto, apenas a dose de 25g de proteína do soro do leite foi capaz de sustentar elevada a síntese por até 5 horas após o exercício.
O mesmo grupo de pesquisa conduziu outro estudo para investigar o potencial de uma maior quantidade de leucina em aumentar a síntese de proteína muscular.22 Os participantes (homens, jovens e treinados) consumiram, após uma sessão de exercício físico resistido, uma dose de 25g de proteína do soro do leite contendo 3g de leucina; um quarto da dose de proteína do soro do leite contendo 0,75g de leucina; um quarto da dose de proteína do soro do leite enriquecida com 3g ou 5g de leucina; um quarto da dose de proteína do soro do leite com 5g de leucina mais isoleucina e valina na mesma proporção da dose de 25g de proteína do soro do leite. Ao longo de 1,5 hora após o exercício, todos os tratamentos aumentaram a síntese de proteína muscular igualmente. No entanto, ao longo de 4,5 horas após o exercício físico resistido, somente a dose subótima de proteína do soro do leite com 5g de leucina foi tão eficaz quanto a de 25g de proteína do soro do leite em sustentar elevada a síntese de proteína muscular.
Os autores especularam o motivo de a dose de um quarto de proteína do soro do leite com 5g de leucina, valina e isoleucina também aumentadas não ter sustentado a síntese de proteína muscular. Associaram ao possível fato de que os BCAA competem pelo mesmo transportador nas células intestinais e musculares.23 , 24 Portanto, a adição dos outros dois BCAA pode ter limitado a sustentação da síntese de proteína muscular, devido à redução da entrada de leucina na célula, endossada pelo fato de que os participantes que receberam este tratamento apresentaram menor concentração de leucina sanguínea e intracelular na primeira hora após a ingestão.
A leucina parece estimular a síntese de proteína muscular após o exercício físico resistido, mas está sujeita ao mesmo problema que os BCAA: exige que todos os outros EAA estejam disponíveis e em quantidades que não compitam pelos transportadores celulares e nem limitem sua ação.
Em humanos (homens, jovens e treinados), recentemente, foi investigada a resposta de síntese de proteína muscular à ingestão isolada de 5,6g de BCAA comparada à ingestão de placebo após sessão de exercício físico resistido. Após 4 horas, a síntese foi 22% maior que o grupo placebo.25 Embora significativo, esse aumento foi seis vezes abaixo da resposta de síntese de proteína muscular, que é comumente sustentada pela mesma duração após a ingestão de proteína do soro do leite que contém quantidade semelhante de BCAA e demais EAA.20 , 22 , 26
O Comitê Olímpico Internacional não faz declaração sobre a ingestão de BCAA. Já a ISSN não recomenda o uso de BCAA para maximizar a síntese de proteína muscular devido ao conjunto de evidências científicas disponíveis serem limitadas e sem resultados consistentes para apoiar a eficácia.2 , 27 , 28
Posto que o exercício físico resistido aumenta após a sessão, por até 24 horas, a sensibilidade do tecido muscular à ação dos AA, pouco importa a ingestão de proteínas antes, durante ou 1 a 3 horas após o exercício. O aspecto mais importante é a ingestão periódica de proteína ao longo do dia, de acordo com as recomendações individuais. É a estimulação cumulativa do estado anabólico proteico, por meio de repetidas sessões de exercício físico resistido e alimentação, que impulsiona a remodelação e a hipertrofia do músculo esquelético.29 , 30
Por este motivo, ambas as organizações endossam e recomendam para maximizar a síntese de proteína muscular associada ao exercício físico resistido a ingestão de fontes de proteínas completas e de alta qualidade (ricas em EAA, sendo 700 a 3.000mg de leucina) na quantidade de 1,6g a 2,2g de proteína/kg de massa corporal/dia, com as doses distribuídas uniformemente ao longo dia (a cada 3 a 4 horas), sendo uma das doses após a sessão de exercício e a outra próxima ao dormir.2 , 27 , 28
Com base nas evidências disponíveis, os BCAA exibem capacidade de estimular a síntese de proteína muscular após o exercício físico resistido, mas, na ausência dos demais aminoácidos essenciais, não conseguem sustentar uma resposta máxima de síntese. Se a estimulação da síntese de proteína muscular não pode ser sustentada, há pouco significado fisiológico. Por esta razão, um crescente corpo de literatura continua a endossar que a suplementação isolada de BCAA em humanos não fornece benefícios adicionais à síntese de proteína muscular em detrimento à ingestão de uma fonte de proteína completa de alta qualidade, que fornece todos os aminoácidos essenciais necessários.