Compartilhar

Content validation of an instrument for identifying violence against children

Content validation of an instrument for identifying violence against children

Autores:

Luciana da Silva Revorêdo,
Maihana Maíra Cruz Dantas,
Rodrigo Silva Maia,
Gilson de Vasconcelos Torres,
Eulália Maria Chaves Maia

ARTIGO ORIGINAL

Acta Paulista de Enfermagem

On-line version ISSN 1982-0194

Acta paul. enferm. vol.29 no.2 São Paulo Mar./Apr. 2016

http://dx.doi.org/10.1590/1982-0194201600029

Introdução

Aproximadamente 10% dos grandes traumas ocorridos nos países desenvolvidos têm crianças como vítimas e, entre estas, destacam-se as lesões não acidentais que tem ocorrido com alta prevalência em menores de dois anos. No Brasil, observou-se nas últimas décadas a redução das taxas de mortalidade infantil e na infância pelas diversas ações no campo da saúde, da sanidade pública e de acesso a outros benefícios sociais. Entretanto, ressalta-se a elevação nas taxas de homicídio de 13,8%, ainda no primeiro ano de vida e, de 13,5% até os cinco anos de idade, ente os anos 2000 e 2010.(1,2)

Nesse sentido, a violência e os acidentes constituem a terceira maior causa de morte entre crianças de zero a nove anos, caracterizando-se como uma problemática social e se destacando enquanto grave questão de saúde pública. Muitos desses agravos, não resultam na morte do indivíduo, contudo, podem trazer prejuízos ao desenvolvimento da vítima.(3,4)

Os maus tratos contra a criança começaram a receber maior atenção da sociedade no final da década de 1980, por meio da Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente, quando tornou-se obrigatória a notificação de casos confirmados ou de suspeita de violência contra crianças ou adolescentes, também prevendo penas para médicos, professores e responsáveis por estabelecimentos de saúde e educação que deixassem de comunicar casos de seu conhecimento. Segundo o Art. 5º da lei nº 8.069/90 do Estatuto da Criança e do Adolescente, nenhuma criança ou adolescente deve ser objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.(5,6)

Cabe aos profissionais de saúde estar atentos aos fatores de risco para a ocorrência da violência e para os sinais gerais de maus tratos. Estes podem ser, muitas vezes, os primeiros a identificarem a possibilidade da criança sofrer violência.(4,7,8)

A atuação das equipes multiprofissionais é fundamental para a prevenção e a identificação precoce de situações de agressão, abuso e maus tratos. Além disso, estas devem assegurar acompanhamento adequado e que as famílias de risco sejam identificadas e monitoradas. Entretanto, observa-se que ainda existe grande dificuldade entre os profissionais quanto à identificação dos sinais de violência.(4,9,10)

Ainda que possam ser encontrados na literatura instrumentos padronizados e validados para o contexto brasileiro, que investiguem a violência em criança, segundo a observação do professor ou por meio do relato da própria família, salienta-se a escassez de instrumentos validados e padronizados voltados para o manuseio e o preenchimento direto por profissionais e/ou equipes de saúde.(11)

Observa-se também que existem manuais do Ministério da Saúde e protocolos desenvolvidos por secretarias municipais e estaduais de saúde, direcionados aos profissionais dessa área, mas que carecem de avaliação semântica e psicométrica. Além disso, tratam-se de manuais informativos extensos sobre a temática e que não permitem o preenchimento por profissionais ou equipes de saúde durante o processo de investigação.(12-14)

A violência física é definida como todo ato violento com uso da força física não acidental e de forma intencional, é praticada por uma pessoa mais velha, mais forte ou com mais influência, que tem o intuito de obter o que deseja. A violência psicológica é toda e qualquer ação que possa colocar em risco ou causar dano à autoestima, à identidade ou ao desenvolvimento da criança.(12,15)

O abuso sexual é definido como atos ou jogos sexuais que tenham como objetivo estimular a criança para a obtenção da satisfação sexual, por indivíduos mais velhos. As relações podem ser homo ou heterossexuais. A negligência é caracterizada por omissões dos responsáveis pela criança, que deixam de fornecer as necessidades básicas para o desenvolvimento físico, moral, emocional, espiritual e social das crianças. O abandono é uma forma mais grave de negligência.(12,15)

Assim, observa-se a necessidade de um instrumento validado que possa ser utilizado por profissionais de saúde, de maneira prática e objetiva, no rastreamento de violência contra crianças no cotidiano da prática clínica. Diante da conjuntura anteriormente destacada, o presente trabalho teve como objetivo elaborar e validar o conteúdo de um instrumento para identificação de violência contra criança, ponto inicial para acompanhamento multiprofissional do caso.

Métodos

Trata-se de um estudo metodológico de abordagem quantitativa, desenvolvido em duas etapas: a primeira foi a elaboração do instrumento; e, a segunda, a validação de conteúdo mediante a avaliação dos instrumentos por juízes/especialistas.

Na primeira etapa, o instrumento foi elaborado fundamentando-se na teoria bioecológica do desenvolvimento humano por meio de uma revisão da literatura sobre os fatores psicossociais de risco para a violência contra criança. Posteriormente, reuniram-se também as informações da Linha de Cuidados para a Atenção Integral à Saúde da Criança, Adolescentes e suas Famílias em Situação de Violências para a construção de cada item.(12,16)

O questionário foi denominado Instrumento para a Identificação de Violência Contra Criança, cuja população-alvo são as equipes multiprofissionais de saúde que pudessem investigar a presença de sinais de violência em crianças até 12 anos incompletos, conforme definição do Estatuto da Criança e do Adolescente. Os itens apresentam sinais e/ou sintomas indicadores das quatro naturezas do fenômeno, a saber: violência física, sexual, psicológica e de negligência contra criança, com opções de respostas, “Sim”, “Não”, e “Não se aplica”.

Na segunda etapa, inicialmente, foram selecionados profissionais de saúde para colaborar na validação do conteúdo do instrumento.(17) Para tanto, utilizou-se a técnica Delphi.(18)

Foi selecionada uma amostra intencional de 178 profissionais por meio da Plataforma Lattes do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), utilizando-se a busca avançada por assunto, considerando os seguintes critérios de inclusão: ser doutor; pesquisador ou profissional da área da saúde; trabalhar com uma das seguintes temáticas: violência contra criança, desenvolvimento humano infantil ou método Delphi; possuir currículo atualizado nos últimos 60 meses; e que tenha publicado trabalhos ou artigos sobre a temática nos últimos 5 anos. Foram excluídos os especialistas que não cumpriram com o prazo do aceite estipulado pelos pesquisadores, a saber, de outubro a dezembro de 2014.

Posteriormente, estabeleceu-se contato com os especialistas selecionados por endereço eletrônico, pelo qual foi enviado um questionário on-line de avaliação construído via Google Docs, além do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e uma carta convite explicando a proposta do estudo.

O questionário de avaliação do instrumento permitia que os especialistas analisassem cada item por meio de uma escala de três níveis de concordância: adequado, parcialmente adequado ou inadequado para os critérios de pertinência, objetividade, clareza, simplicidade, exequibilidade e vocabulário.

Havia também um espaço para formulação de sugestões referentes a cada item. No final do questionário, os especialistas fizeram uma avaliação global do instrumento, utilizando os mesmos critérios, por meio de uma questão aberta, que permitia a formulação de sugestões para o instrumento como um todo.

Na primeira rodada, 25 especialistas aceitaram participar da pesquisa, constituindo a amostra do estudo. Na segunda rodada, a amostra foi composta por 22 especialistas e a terceira, por 21, respeitando o postulado pela literatura que orienta não usar mais que 30 especialistas na análise.(19)

No que diz respeito à análise estatística, os dados foram inseridos em uma planilha eletrônica. Verificaram-se a concordância dos especialistas, no que concerne à relevância dos itens, por meio do Índice de Validade de Conteúdo, calculado a partir da divisão do número de juízes que julgaram o item como adequado pelo número total de especialistas. Para a avaliação global do instrumento, o cálculo foi realizado por meio da razão entre o número de itens considerados adequados pelos especialistas e o número total de itens.

Analisou-se ainda a confiabilidade da concordância da avaliação dos itens na avaliação dos juízes, utilizando-se o índice Kappa, indicado como complemento para o Índice de Validade de Conteúdo. Como critério de aceitação, foi estabelecida uma concordância >0,61 para o coeficiente Kappa e ≥0,75 para o Índice de Validade de Conteúdo, tanto para avaliação de cada item, quanto para a avaliação geral do instrumento.(20,21, 22)

A análise subsidiou as reformulações do instrumento de acordo as sugestões dos especialistas. Os demais dados foram analisados utilizando-se estatística descritiva.

O estudo foi registrado na Plataforma Brasil sob o numero do Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) 24583413.9.0000.5292.

Resultados

Participaram do estudo 25 profissionais da saúde, sendo a maioria (96%) do sexo feminino e com idade entre 27 e 61 anos, média 45,2. No que se refere à categoria profissional, 52% eram enfermeiros, 24% psicólogos, 16% médicos, 4% fisioterapeutas e 4% terapeutas ocupacionais. Quanto à qualificação, além do doutorado, 12% tinham pós-doutorado.

Inicialmente, o instrumento apresentou 62 itens contínuos sem a categorização em dimensões, embora correspondessem a sinais das quatro naturezas do fenômeno. No que concerne à primeira rodada, 39 (62,90%) apresentaram Kappa ≥0,61 e Índice de Validade de Conteúdo ≥0,79. Nos demais itens (n=23; 37,10%), foram encontrados baixos índices de concordância Kappa e, por isso, receberam reformulações. O instrumento recebeu avaliação geral de Kappa de 0,62 e Índice de Validade de Conteúdo de 0,85, que são considerados bons resultados.

Alguns itens foram considerados semelhantes pelos especialistas, que solicitaram a reunião das informações (Quadro 1).

Quadro 1 Primeira rodada: itens que tiveram as informações reunidas 

Itens da primeira versão do instrumento IVC/Kappa
Contusão(ões) ou hematoma(s) no formato de uma mão, cinto, ou vara; ou ainda apresentar marca de dentes ou unhas 0,76/0,43
Contusão(ões) ou hematoma(s) em qualquer parte não óssea do corpo (como cabeça, pescoço, rosto, nádegas, tronco ou braços) 0,80/0,48
Hematoma(s) ou mancha(s) vermelha(s) ou roxa(s) 0,80/0,48
Lesão(ões) com aparência de mordida humana adulta 0,80/0,48
Corrimento, secreção, sangramento, lesão, cicatrizes ou úlceras genitais 0,88/0,67
Ânus aberto, durante um exame 0,84/0,58
Comportamentos sexualizados (como falar e demonstrar ter conhecimento sexual, desenhar genitálias, simular a atividade sexual com outra criança) 0,88/0,67
Comportamentos sexual precoce 0,84/0,58
Ausências frequentes nas atividades escolares 0,88/0,67
Pouca ou nenhuma frequência escolar sem condições clínicas que justifique 0,92/0,77
Recusa do pai/ cuidador em procurar um profissional de saúde para os cuidados da criança ou a falta de permissão para que a própria criança procure um profissional de saúde 0,84/0,58
Os pais/cuidadores não procuram os serviços de saúde quando a criança necessita de atendimento; não conseguem administrar o tratamento prescrito para a criança; ou não a acompanham, com frequência, nos serviços de saúde 0,96/0,88
A criança não tem recebido monitoração adequada da imunização, tratamento para cárie dentária e crescimento e desenvolvimento 0,88/0,67

IVC - Índice de Validade de Conteúdo

Destaca-se que, além dos itens “Corrimento, secreção, sangramento, lesão, cicatrizes ou úlceras genitais” e “Ânus aberto, durante um exame” terem se unificado, houve a adição da seguinte sentença: “Considerar também o relato da criança sobre coceiras e/ou dores nas áreas genitais”, seguindo as considerações de um dos especialistas. Além destes, os itens “Desconforto recorrente ou persistente na passagem da urina ou na região perianal” e “Evidência de corpos estranhos em um dos órgãos genitais”, ambos apresentaram K=0,58 e IVC=0,84, também receberam duas e três sugestões, respectivamente, indicando a necessidade do relato da criança. As indicações foram aceitas e as descrições dos itens reformuladas. Outros itens receberam alterações devido à necessidade de mais clareza segundo os especialistas (Quadro 2).

Quadro 2 Primeira rodada: itens que foram analisados com necessidade de mais clareza no conteúdo 

Itens da primeira versão do instrumento IVC/Kappa
Lesões graves ou incomuns 0,68/0,28
Lesão intracraniana ou hemorragias subdurais, na ausência de um grande trauma acidental 0,76/0,43
Sinais de uma lesão na coluna vertebral, na ausência de confirmação de trauma acidental 0,84/0,58
Lesões intra-abdominais ou torácicas, na ausência de grande trauma acidental e/ou de hematomas externos 0,84/0,58
Comportamento controlador com os pais/cuidadores 0,84/0,58

IVC - Índice de Validade de Conteúdo

Um dos especialistas apontou que o item “Surgimento de novos sintomas quando os anteriores são resolvidos, situação clínica improvável ou não explicável pelo histórico anterior da criança, procura dos pais/cuidadores por opiniões de diferentes profissionais, mesmo diante de um parecer clínico definitivo” (K=0,58;IVC=0,84) apresentava duas ideias distintas. Assim, dividiu-se em dois, separando as informações em quesitos diferentes.

Ademais, o item “Hipernatremia (níveis anormais de sódio no sangue)” foi analisado por cinco especilalistas como restrito ao uso médico (K= 0,47; IVC= 0,80). A sugestão feita por um deles foi aceita, sendo o item reformulado para “Hipernatremia (níveis anormais de sódio no sangue) sem explicação clínica”, com a intenção de clarificar o conteúdo em análise. Os demais quesitos foram alterados de acordo com as sugestões dos juízes (Quadro 3).

Quadro 3 Primeira rodada: sugestões dos especialistas para os demais itens que receberam reformulações. 

Itens da primeira versão do instrumento IVC/Kappa Sugestões dos especialistas (n) Justificativas
Mudança acentuada no comportamento ou estado emocional que não seja esperada para sua idade ou explicada por uma situação estressante (como separação parental). Exemplos: choro, agitação psicomotora, tiques, gagueira, micção, distúrbios do sono, medo, apatia, baixa autoestima, retraimento, comportamentos destrutivos ou autodestrutivos, comportamento agressivo (não habitual), tentativa de suicídio. 0,76/0,43 Inserir a chegada de irmão.(1) A chegada de um novo irmão é considerada um período de crise no desenvolvimento para a maioria das crianças, podendo provocar mudanças no comportamento ou estado emocional.(23)
Excessiva simpatia (não habitual) com estranhos, incluindo profissionais de saúde (procura por afeto). 0,80/0,50 Usar demonstração de carência afetiva, o que evidenciaria negligência emocional por parte dos cuidadores.(1) A negligência também se caracteriza pelo descaso com o bem-estar da criança no que se refere à afetividade, indicando de que se deve realizar uma investigação detalhada da situação familiar.(12)
Queimaduras: em áreas cobertas do corpo ou em regiões posteriores (como palma das mãos, plantas dos pés, nádegas, costas); no formato de um utensílio (como cigarro ou ferro); no formato de uma luva ou meia; bilaterais; simétricas. 0,80/0,50 Considerar neste item qualquer tipo de queimadura que não possa ser justificada, independente do formato ou localização.(1) A violência física pode ser praticada por meio de tapas, beliscões, chutes e arremessos de objetos, o que causa lesões, traumas, queimaduras e mutilações.(12)
Dissociação (despersonalização e amnésia). 0,84/0,58 Descrever os termos para melhor entendimento do profissional que estará utilizando o instrumento.(1) Os conceitos das experiências dissociativas são complexos e necessitam de clareza até mesmo para os profissionais de saúde mental.(24)
Encoprese (defecar repetidamente, inclusive em lugares impróprios) ou enurese (não ter controle dos esfíncteres) sem a identificação de situações estressantes (como luto ou separação parental). 0,84/0,58 Especificar se ocorre com frequência ou se é pontual.(1) O aparecimento da encoprese e enurese com frequência é indicativo de violência.(25)
O uso da criança para a satisfação das necessidades dos adultos (alienação parental). 0,84/0,58 Definir o conceito de alienação parental.(1) Trata-se de um termo mais utilizado na esfera jurídica, que diz respeito às sequelas emocionais e comportamentais sofridas pela criança vítima da conduta do pai ou da mãe que, após a separação, age para que o filho rejeite o ex-cônjuge.(12)

IVC - Índice de Validade de Conteúdo; O número de juízes que sugeriu modificações nas categorias de composição dos instrumentos é indicado por (n)

No que concerne à avaliação global, todos os especialistas avaliaram bem o instrumento, mas quatro deles indicaram a necessidade de categorização dos itens de acordo com a natureza da violência contra criança. Neste sentido, o conteúdo do instrumento foi distribuído nas seguintes dimensões: sinais comportamentais da criança; sinais de violência física; síndrome de Münchausen por procuração (indução de sintomas e doenças na criança pelos pais/cuidadores); sinais de violência sexual; e sinais de negligência.

Após as reformulações, o instrumento passou a apresentar 50 itens e foi avaliado pelos especialistas novamente. No que diz respeito à segunda rodada, observou-se que 49 itens apresentaram Índice de Validade de Conteúdo entre 0,81 e 1,00, e Kappa entre 0,61 e 0,99. O instrumento foi avaliado de forma positiva, obtendo Kappa igual a 0,85 e Índice de Validade de Conteúdo de 0,95.

Verificou-se que o item que avaliou hipernatremia apresentou índice Kappa de 0,50. Quatros especialistas permaneceram avaliando essas informações como pouco pertinentes, devido à especificidade médica e complexidade do item. Enquanto que três dos juízes sugeriram esclarecer a necessidade de evidências laboratoriais para a aplicação do item, que foi reformulado para “Hipernatremia (níveis anormais de sódio no sangue) verificada por meio de exame clínico-laboratorial e sem explicação clínica”. Os demais não foram alterados e o instrumento permaneceu com 50 quesitos.

As alterações foram avaliadas pelos juízes na terceira rodada. Os itens referentes à investigação de mudança acentuada no comportamento, presença de níveis de drogas no sangue, e ausência de promoção de socialização adequada apresentaram Kappa 0,85 e Índice de Validade de Conteúdo de 0,95. Os demais apresentaram coeficiente Kappa e Índice de Validade de Conteúdo igual a 1,00.

O item que avaliou os níveis de sódio no sangue obteve Índice de Validade de Conteúdo ótimo (0,80), mas coeficiente Kappa de 0,58. Assim, optou-se por excluí-lo devido à ausência de concordância entre os especialistas. Os índices gerais de Kappa e de Validade de Conteúdo do instrumento foram 0,98 e 0,99, respectivamente. Neste sentido, concluiu-se a validação de conteúdo com 49 itens, sendo este, o único quesito excluído do instrumento. Todas as sugestões dos especialistas, ao longo do processo, foram acatadas em decorrência de congruência com a literatura. A versão final do instrumento está no apêndice 1.

Discussão

A composição do grupo de juízes multidisciplinar, com vasta formação e experiência em diferentes áreas, por meio da técnica Delphi, contribuiu para a obtenção de uma avaliação global, criteriosa e de credibilidade.(19) Quanto à redução da amostra em cada rodada, trata-se de um movimento dentro do esperado segundo a literatura.(21) Objetivou-se reduzir a limitação do uso do consenso por meio da síntese de evidências científicas na elaboração do instrumento e pela utilização de recursos estatísticos-matemáticos na análise dos itens, permitindo a confiabilidade do processo.

Segundo o relatório mundial da OMS, a violência contra crianças ainda é subnotificada, pois há pouco investimento no âmbito da predição de situações de abuso no Brasil.(26) Destaca-se a emergência de um instrumento, que auxilie as equipes multiprofissionais nas diversas esferas da saúde na identificação de sinais de violência, e que contribua para as demais providências necessárias.(27)

O profissional ou equipe de saúde tem momentos essenciais de contato com as crianças para que se observe sinais e sintomas resultantes de uma situação de violência. O instrumento desenvolvido pelo presente estudo poderá ser utilizado para contribuir no rastreamento de violências contra infantes. Os itens foram distribuídos em dimensões relacionadas às quatro naturezas do fenômeno, indicando congruência entre a análise dos juízes e a literatura.( 4,12)

Na dimensão que analisa os sinais comportamentais da criança foram consideradas as alterações no comportamento que frequentemente apresentam-se como demanda do atendimento nos serviços de saúde. A violência psicológica, geralmente, coexiste com as demais naturezas do fenômeno, sendo investigada por meio dos comportamentos da criança e do relacionamento com os pais/cuidadores.(17,28)

Dentre as naturezas da violência contra infantes, os abusos e maus tratos físicos se destacam como a causa mais frequente de notificação, abrangendo acima de 40% do total de crianças e adolescentes que demandam o serviço. Inicialmente, é necessário afastar a possibilidade de que as lesões ou cicatrizes apresentadas sejam consequências de traumatismos não intencionais. Além disso, o atraso na procura de atendimento deve ser interpretado como um sinal de negligência e/ou de tentativa de ocultação da violência.(1,2,4)

A Síndrome de Münchausen por procuração caracteriza-se pela simulação ou criação, por um dos responsáveis ou cuidador, de sinais ou sintomas que caracterizam doenças em seus filhos. Apesar de ser considerada uma forma de violência física, por exigir dos profissionais da área da saúde a execução de uma série de exames e investigações penosas para a criança, optou-se por considerá-la como uma dimensão do instrumento devido à peculiaridade do fenômeno.(12)

A violência sexual provoca sinais e sintomas físicos e psíquicos no indivíduo. Os tipos de maior notificação referem-se ao estupro, assédio sexual e atentado violento ao pudor. As meninas a partir dos 10 anos de idade são as maiores vítimas do estupro. Salienta-se que, em geral, o ato sexual com penetração acontece após algum tempo de sedução do adulto em relação à vítima. Os resultados de uma revisão de meta-análises sobre prevalência da violência contra criança observou que este tipo de violência tem sido o mais estudado, principalmente nos países em desenvolvimento. Esse interesse pode estar relacionado á gravidade das consequências provocadas pelo abuso sexual.(2,17)

Corroborando com a análise dos especialistas, observa-se na literatura a importância do relato da criança para a investigação de violência. Assim, devem-se valorizar as informações do infante, considerando que o relato espontâneo é de alta credibilidade. Enfatiza-se a sutileza na abordagem para evitar mais traumas. Ademais, indica-se a solicitação da ajuda de um psicólogo e de outros profissionais qualificados para o cuidado de crianças em situação de violência.(12)

A análise dos juízes quanto á dimensão que se refere à negligência também apresentou congruência com a literatura. Sendo, assim, avaliada por meio da investigação do descaso com o bem-estar, a saúde e a segurança da criança, com a afetividade, a educação ou a detecção de atrasos de desenvolvimento sem causa orgânica aparente.(12,17)

Segundo o critério de simplicidade para a construção dos itens, cada questão deve expressar uma ideia. Desta forma, itens com o mesmo conteúdo foram reunidos em um único quesito. Ideias distintas presentes, inicialmente, em um mesmo item, foram separadas em questões diferentes seguindo o mesmo critério Além disso, alguns itens foram reformulados observando o critério de clareza, destacado pelos especialistas.(29,30)

A avaliação dos níveis de sódio no sangue foi excluída do instrumento em decorrência da ausência de concordância entre os juízes quanto à sua relevância. A hipernatremia foi considera como difícil de ser avaliada e, segundo alguns dos especialistas, essa informação pouco contribuiria para o rastreamento de maus tratos em infantes.

As instituições de saúde são consideradas portas de entrada para a identificação de sinais de violência em crianças. Assim, é fundamental que as equipes estejam capacitadas para realizar o acompanhamento adequado dos infantes. Nesse sentido, a utilização de instrumentos para a investigação de violência contra crianças apresenta-se como um recurso capaz de auxiliar na orientação da prática assistencial e contribuir para uma atuação em equipe. Contudo, salienta-se o uso de uma abordagem integral nas intervenções profissionais, considerando o indivíduo em sua totalidade, e a multicausalidade do fenômeno.

Conclusão

O instrumento apresentou índices de validade de conteúdo e de Kappa satisfatórios. Assim, poderá auxiliar equipes de profissionais no rastreamento da violência contra criança, ponto inicial para a investigação, e mobilização dos recursos e serviços existentes na saúde e articulação das redes intrassetorial e intersetorial. Salienta-se a necessidade de criação de instrumentos válidos, confiáveis e que possam contribuir para ações e intervenções qualificadas na área da saúde.

REFERÊNCIAS

1. Davies FC, Coats TJ, Fisher R, Lawrence T, Lecky F. et al. A profile of suspected child abuse as a subgroup of major trauma patients. Emerg Med J. 2015; 32:921-5.
2. Waiselfisz JJ. Mapa da Violência 2012. Crianças e adolescentes do Brasil. Rio de Janeiro. 2012.
3. Martins CB, Jorge MH. Child abuse: a review of the history and protection policies. Acta Paul Enferm. 2010; 23(3):417-22.
4. Ngiam XY, Kang YQ, Aishworiya R, Kiing J, Law EC. Child maltreatment syndrome: demographics and developmental issues of inpatient cases. Singapore Med J. 2015; 56(11):612-7.
5. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988.
6. Brasil. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurmídicos. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências [Internet]. Brasília, DF; 1990 [citado 2015 Nov 13]. Disponível em: .
7. Saraiva RJ, Rosas AM, Valente GS, Viana LO. [Qualification of nurses for care to child victims of domestic violence]. Ciênc Enferm. 2012; 18(1):17-27. Portuguese.
8. Sumner SA, Mercy JA, Dahlberg LL, Hillis SD, Klevens J, Houry D. Violence in the United States: status, challenges, and opportunities. JAMA. 2015; 314(5);478-88.
9. Palmezoni VP, Miranda FJ. [The identification of family violence against children and adolescents by the community health worker]. Saúde Coletiva. 2011; 8(49): 88-92. Portuguese.
10. Lopes NR, Eisenstein E, Williams LC. Abusive head trauma in children: a literature review. J Pediatr (Rio J). 2013; 89(5):426-33.
11. Bonfim CB, Santos DN, Menezes IG, Reichenheim ME, Barreto ML. [A study on the construct validity of the Parent-Child Conflict Tactics Scale (CTSPC) in an urban population in Northeast Brazil]. Cad. Saúde Pública. 2011; 27(11): 2215-26. Portuguese.
12. Brasil. Ministério da Saúde. Linha de cuidado para a atenção integral à saúde de crianças, adolescentes e suas famílias em situação de violências: orientação para gestores e profissionais de saúde. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Brasília; 2010.
13. Prefeitura Municipal de Colombo. Protocolo da rede municipal de proteção à criança e ao adolescente em situação de risco para a violência. Rede municipal de proteção à criança e ao adolescente em situação de risco para a violência. Paraná; 2012.
14. Vilela LF. Manual para atendimento às vítimas de violência na rede de saúde pública do DF. Secretaria Estadual do DF. Brasília; 2009.
15. Stoltenborgh M, Bakermans-Kranenburg MJ, Alink LR, van IJzendoorn MH. The prevalence of child maltreatment across the globe: review of a series of meta-analyses. Child Abuse Rev. 2015; 24(1): 37-50.
16. Batista JM, Trigueiro TH, Lenardt MH, Mazza VA, Labronici LM. [Bioecological model: unveiling contributions to the nursing practice within domestic violence]. Esc Anna Nery Rev Enf. 2013; 17(1):173-8. Portuguese.
17. Aktas A, Walsh D, Kirkova J. The psychometric properties of cancer multisymptom assessment instruments: a clinical review. Support Care Cancer. 2015; 23(7):2189-202.
18. Revoredo LS, Maia RS, Torres GV, Maia EM. [The use of delphi’s technique in health: an integrative review of brazilian studies]. Arq Ciênc Saúde. 2015; 22(2):16-21. Portuguese.
19. García VM, Suárez MM. [Delphi method for the expert consultation in the scientific research]. Rev Cub Salud Pública. 2013; 39(2):253-67. Spanish.
20. Alexandre NM, Coluci MZ. [Content validity in the development and adaptation processes of measurement instruments]. Ciênc Saúde Coletiva. 2011; 16(7):3061-8. Portuguese.
21. Rubio DM, Berg-Weger M, Tebb SS, Lee S, Rauch S. Objectifying content validity: conducting a content validity study in social work research. Soc Work Res. 2003; 27(2):94-105.
22. Polit DF, Beck CT, Owen SV. Is the CVI an acceptable indicator of content validity? Appraisal and recommendations. Res Nurs Health. 2007; 30(4):459-67. Review.
23. Volling BL. Family transitions following the birth of a sibling: an empirical review of changes in the firstborn’s adjustment. Psychol Bull. 2012; 138(3): 497-528.
24. Mattos PF, Pedrini PF, Fiks JP, Mello MF. The concept of peritraumatic dissociation a qualitative approach. Qual Health Res. 2015 Nov 3. pii: 1049732315610521.
25. Anderson B, Thimmesch I, Aardsma N, Terrell M, Carstater S, Schober J. The prevalence of abnormal genital findings, vulvovaginitis, enuresis and encopresis in children who present with allegations of sexual abuse. J Pediatr Urol. 2014; 10(6):1216-21.
26. World Health Organization. Global status report on violence prevention 2014. Geneva. WHO; 2014.
27. Gessner R, Fonseca RM, Oliveira RN. Violence against adolescents: an analysis based on the categories gender and generation. Rev Esc Enferm USP. 2014; 48(SPE):102-8.
28. Abranches CD, Assis SG. [The (in)visibility of psychological family violence in childhood and adolescence]. Cad Saúde Pública. 2011; 27(5):843-54. Portuguese.
29. Abasi MH, Eslami AA, Rakhshani F. Introducing an outcome expectation questionnaire and its psychometric properties regarding leisure time physical activity for iranian male adolescent. Iran Red Cresc Med J. 2015; 17(5):e21509.
30. Ergu D, Kou G. Questionnaire design improvement and missing item scores estimation for rapid and efficient decision making. Ann Oper Res. 2012; 197(1):5-23.