versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.26 no.3 São Paulo maio/jun. 2014
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/201420130022
Diversos estudos demonstram que as imagens ultrassonográficas do contorno da língua visualizadas durante a produção da fala podem ser usadas para diversos fins; entretanto, o uso específico dessas imagens como análise complementar do diagnóstico do transtorno fonológico (TF) ainda é uma questão recente na literatura.
O uso da ultrassonografia (USG) para a análise dos movimentos de língua na produção de fala permite a visualização dos movimentos e do contorno da língua desde a ponta até raiz da língua em tempo real. Muitos estudos têm utilizado a USG para descrever o movimento de língua na produção de sons vocálicos( 1 ) e de consonantais como /s/( 2 ), /∫/( 3 ), /t/( 4 ), /k/( 5 ), /l/( 6 ), /r/( 7 ).
A idade máxima de aquisição das palatais em falante típicos do Português Brasileiro é de, aproximadamente, 4 anos e 6 meses( 8 ), mas muitas crianças que são diagnosticadas com TF apresentam dificuldades em produzir esses sons.
Assim, o objetivo deste estudo foi caracterizar o contorno de língua observado na produção dos sons /s/ e /∫/ em crianças com e sem TF.
A pesquisa foi aprovada pela Comissão de Ética para Análise de Projetos de Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), sob protocolo número # 276/13. Todos os responsáveis assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Participaram seis crianças, sendo quatro com diagnóstico de TF e duas sem alterações de fala e linguagem. Os critérios de inclusão para as crianças com TF foram: erros de fala na avalição do Teste de Fonologia do Teste de Linguagem Infantil ABFW( 8 ), ausência de dificuldades em outras áreas da linguagem( 9 ); audiometria dentro da normalidade e ausência de intervenção fonoaudiológica prévia. Os critérios de inclusão para o grupo de crianças sem TF foram: ausência de erros de fala e de dificuldades nas outras áreas de linguagem( 9 ), audiometria dentro da normalidade e ausência de intervenção fonoaudiológica prévia.
Foram criados três subgrupos: Grupo 1 (G1) - duas crianças com desenvolvimento típico de fala e linguagem, sendo um menino de 7 anos e 10 meses e uma menina de 8 anos e 3 meses; Grupo 2 (G2) - duas crianças com TF e uso de diferentes processos fonológicos que não envolvessem a produção da palatal /∫/, sendo um menino de 6 anos e 2 meses e uma menina de 5 anos e 9 meses; Grupo 3 (G3) - duas crianças apresentando obrigatoriamente o processo fonológico de frontalização de palatal (as duas crianças produziam o /∫/ como /s/), sendo um menino de 7 anos e uma menina de 7 anos e 2 meses.
Após o diagnóstico, todas as crianças foram submetidas à avaliação da USG (Mindray 6600 acoplado ao software Articulate Assistant Advanced) realizada em uma sala acusticamente tratada. O capacete estabilizador( 10 ) foi ajustado individualmente, permitindo o melhor posicionamento do transdutor endocavitário utilizado para a coleta das amostras de fala.
As crianças foram posicionadas em frente a um computador, onde deveriam produzir as figuras /'∫avi/ e /'sapu/ cinco vezes. O contorno da língua foi traçado manualmente a partir de imagens sagitais obtidas pela USG, totalizando 30 análises do /∫/ e 30 do /s/.
Pode ser observado o traçado do contorno da língua sobreposto por gênero (Figura 1) e por som (Figura 2) nos três grupos. A raiz da língua está à esquerda e ponta da língua à direita nas imagens.
O estudo apresentou uma análise inicial dos sons /∫/ e /s/ produzidos por crianças com e sem TF. As análises qualitativas foram feitas considerando-se a variabilidade de produção intrafalante, o gênero e as imagens do contorno da língua.
A produção do /s/ realizada pelo G1 foi mais estável, além de ter sido observada postura de língua mais achatada. A produção do /s/ feita pelo menino do G2 foi semelhante, em termos articulatórios, à produção do G1, enquanto a produção da menina do mesmo grupo (G2) foi realizada com o dorso de língua mais elevado, assumindo um contorno de língua diferente tanto do menino do G2 como das crianças do G1. A produção do /s/ realizada pelo G3 apresentou configuração de língua diferente da observada nas crianças dos outros dois grupos. A língua da menina ficou posicionada numa região mais anterior da boca e, tanto a menina quanto o menino, posicionaram a língua mais alta na boca.
Assim como na produção do /s/, também não foi observada diferença na produção do /∫/ realizada pelas crianças do G1: o /∫/ foi produzido com a ponta de língua abaixada em direção ao soalho da boca e o dorso elevado. As duas crianças do G2 produziram o /∫/ de forma semelhante ao G1, embora seja possível verificar que a altura da língua da menina foi maior que a do menino (assim como na produção do /s/). Já nas duas crianças do G3, que produziram o /∫/ como /s/ em todas as repetições das palavras, verificou-se que a língua estava achatada na boca, com uma pequena elevação do dorso da língua.
Houve variabilidade na produção dos sons durante as cinco repetições realizadas pelos participantes( 11 ). As quatro crianças com TF, independentemente do gênero e da presença do processo fonológico de frontalização de palatal, produziram os sons alvo com maior variabilidade do que as crianças sem alterações de fala e linguagem. A produção da menina foi mais estável que a do menino nos dois sons alvo, no G1. Entretanto, vale destacar que o contorno de língua que mais diferenciou a produção do /s/ da produção do /∫/ foi a do menino. Pode-se dizer que, embora a classificação perceptivo-auditiva indique que tanto a menina quanto o menino do G1 produzam o /s/ diferente do /∫/, a posição da língua do menino mostra que ele diferencia melhor o gesto articulatório entre as duas produções. A produção do G2 foi semelhante à do G1; entretanto, nesse caso, a menina diferenciou melhor o gesto articulatório na produção dos dois sons. Não foi observada diferença na produção das crianças do G3, mostrando que esses sujeitos não produzem qualquer diferenciação do gesto articulatório empregado na produção do /s/ e do /∫/.
A análise mostrou evidências de que os sons /s/ e /∫/ são produzidos com o emprego de diferentes posturas de língua, permitindo a melhor identificação dos sons. O contorno da língua observado na produção do /s/ e do /∫/ em crianças com TF que apresentavam o processo fonológico de frontalização de palatal foi semelhante, reforçando a não diferenciação dos gestos articulatórios necessários para a produção desses sons. Desta forma, conclui-se que o uso das imagens ultrassonográficas aplicado à análise de fala foi efetivo para confirmar o julgamento perceptivo-auditivo dos sons feito pelo fonoaudiólogo.