versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.21 no.5 Rio de Janeiro maio 2016
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015215.19602015
Um importante marco para o desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (APS) mundial foi a publicação da Declaração de Alma Ata no ano de 1978, a qual defendia a APS como núcleo central de um sistema de saúde. As ideias centrais para o aprimoramento dos sistemas de saúde contemporâneos foram apresentadas nessa declaração, trazendo contribuições para resultados mais favoráveis e equitativos em saúde, maior eficiência, efetividade e satisfação do usuário1.
Todavia, é relevante destacar a existência de diferentes formas de implementar a APS. Em alguns países, a APS é considerada como um programa focalizado e seletivo, que oferta cesta reduzida de serviços a populações mais pobres; em outros, é o primeiro nível de um sistema de saúde com oferta de serviços clínicos, responsável pela coordenação do cuidado e pela sua organização, e ainda como uma política de reorganização do modelo assistencial2-4.
No Brasil, desde os anos 1920 até a atualidade, assistimos a várias tentativas de se organizar a APS. Nesse período, vários modelos foram implantados em diferentes regiões do país, em função de interesses e concepções bastante distintas. Contudo, o marco mais importante da APS ocorreu por meio da implantação do Programa Saúde da Família (PSF), influenciado por abordagens internas e externas de cuidados primários, apresentando-se como uma proposta mais abrangente de APS2,3,5.
Em decorrência das suas potencialidades, o PSF passou a ser reconhecido como Estratégia Saúde da Família (ESF) pela sua capacidade em orientar a organização do sistema de saúde, buscar respostas para todas as necessidades de saúde da população e contribuir na mudança do modelo assistencial vigente. Para isso, a ESF baseia-se em princípios norteadores para o desenvolvimento das práticas de saúde, como a centralidade na pessoa/família, o vínculo com o usuário, a integralidade e a coordenação da atenção, a articulação à rede assistencial, a participação social e a atuação intersetorial6,7.
É preciso considerar que, em 20 anos de implantação, essa estratégia tem sido defendida como o principal elemento da agenda política para a organização dos serviços e ações de APS no Brasil, produzindo vários resultados favoráveis à saúde da população8.
Contudo, devido à sua inserção em cenários complexos e diversificados, permeados por interesses políticos, econômicos e sociais, algumas de suas potencialidades podem ser minimizadas, o que tem trazido questionamentos quanto à sua credibilidade como reorganizador dos serviços e ações de saúde, e substitutivo do modelo tradicional de APS no Brasil. Diante dessa perspectiva, faz-se necessário avaliar a ESF, detectando as áreas passíveis de intervenção pelas autoridades sanitárias com vistas ao seu futuro aperfeiçoamento.
Assim, este artigo teve como objetivos identificar e analisar as principais contribuições e os desafios da ESF para o desenvolvimento da APS brasileira, com a finalidade de refletir sobre os aspectos que podem afetar a sustentabilidade desse modelo.
Neste estudo foi realizada uma revisão de literatura, com pesquisa de publicações no site da Bireme (www.bireme.br) do período de 2002 a 2011, abrangendo base de dados como Lilacs, IBECS, Medline, Biblioteca Cochrane e SciELO. Para descritores, fez-se uso dos termos: “Atenção Primária à Saúde” e “Estratégia Saúde da Família” e, como filtro, as publicações do tipo artigo, cujo assunto principal era a “Estratégia Saúde da Família”.
Foram encontrados 197 artigos. Destes, 57 estudos não possuíam o texto completo disponível na plataforma de busca e, por isso, foram excluídos. Estavam repetidos na listagem gerada pelo site 31 artigos, que foram removidos para evitar duplicidade na consolidação dos dados. Dos 109 artigos restantes, onze foram excluídos por se tratar de estudos de reflexão, ensaio, opinião, informes técnicos, de protocolos específicos para atendimento clínico, identificação de prescrição médica, ou por apresentar resultados agregados da ESF e APS tradicional. Dessa forma, foram incluídos, nesta revisão, os estudos que tiveram unidades de saúde, profissionais, universitários, gestores e/ou usuários associados ao contexto da ESF, bem como os estudos de revisão de literatura, totalizando, assim, 98 artigos.
Como a ESF é considerada um modelo de atenção à saúde, ou seja, um modo de organizar as ações e de dispor os meios técnico-científicos para intervir sobre os problemas e necessidades de saúde9, para a identificação e a análise das contribuições e dos desafios na ESF para a APS brasileira, foi realizada uma classificação utilizando três dimensões propostas por Teixeira: político-institucional, organizativa e técnico-assistencial10.
Na dimensão político-institucional foram analisados os mecanismos de condução do processo de reorganização das políticas, ações e serviços, sobretudo os investimentos empreendidos para o aprimoramento da APS. Na dimensão organizacional verificou-se o estabelecimento das relações entre as unidades de prestação de serviços, levando em conta a interação entre os níveis de atenção no processo de cuidado. Além disso, averiguou-se a forma de organização dos serviços de saúde com a finalidade de prover a integralidade da atenção.
Na dimensão técnico-assistencial, também denominada de operativa, examinaram-se as relações estabelecidas entre os sujeitos das práticas e seus objetos de trabalho em vários planos (promoção da saúde, prevenção de riscos e agravos, recuperação e reabilitação), mediadas pelo saber e tecnologia que operam no processo de trabalho.
Os elementos para análise em cada dimensão, selecionados a partir da leitura preliminar dos artigos, são exibidos sumariamente no Quadro 1.
Dessa maneira, buscou-se classificar os estudos selecionados, segundo as dimensões definidas, fundamentais para o desenvolvimento da APS, mais especificamente da ESF. Não se pretendeu com os resultados e as análises apresentados exaurir todas as possibilidades de discussão sobre a ESF para a APS do Brasil.
Dos 98 artigos analisados, aproximadamente 71% abordaram pesquisas em um município, 18% em dois ou mais do mesmo ou de diferentes estados, e 11 % foram categorizados como revisão de literatura. No Gráfico 1, é apresentada a tendência crescente desse tipo de publicação no período avaliado.
Identificou-se que, aproximadamente 45% dos artigos, utilizaram métodos qualitativos, 26% quantitativos e 8% associaram esses dois tipos de abordagem. Nos qualitativos, houve maior frequência dos descritivos, exploratórios ou estudos de caso, e nos quantitativos, os transversais. O método etnográfico foi o mais utilizado nos qualitativos e a técnica com grupos focais a mais frequente para a coleta dos dados. Aproximadamente, 10% dos artigos foram identificados por seus autores como avaliativos, sendo a análise de implantação da ESF o tipo mais encontrado.
O Gráfico 2 apresenta o número de publicações relacionadas aos Estados. A região Sudeste foi aquela com a maior quantidade de municípios pesquisados, seguida das regiões Nordeste, Sul, Norte e Centro-Oeste, respectivamente. Cinco estudos abrangeram dois ou mais estados, sendo que quatro deles referiram-se a pesquisas que alcançaram diferentes regiões do Brasil. Considerando os critérios de inclusão e exclusão desta revisão, no período avaliado não foram encontrados artigos sobre a ESF nos Estados do Acre, Rondônia, Roraima e Mato Grosso do Sul.
Na dimensão político-institucional verificou-se que a ESF favoreceu a expansão dos cuidados primários no país e incrementou o processo de institucionalização da avaliação. O resultado encontrado, quanto à promoção da equidade, também foi melhor com a ESF quando comparado com o modelo tradicional de APS em Unidades Básicas de Saúde (UBS). Os principais desafios referiram-se ao financiamento insuficiente, à formação profissional em desarmonia com o modelo de atenção centrado na APS, à precarização do vínculo profissional com as instituições e ao desenvolvimento de ações intersetoriais.
Na dimensão organizativa, a implantação da ESF contribuiu para a ampliação das possibilidades de oferta de serviços nas áreas periféricas e rurais, inclusive para a saúde bucal. Ademais, trouxe um efeito estruturante perante os vazios assistenciais em pequenos municípios, com resultados melhores quanto à integralidade da atenção e ao contato por ações programáticas quando comparado com a APS tradicional.
Os desafios identificados, nessa dimensão, estiveram ligados ao acesso, à referência da Unidade de Saúde da Família (USF) como porta de entrada no sistema de saúde, à integração da ESF à rede assistencial, ao planejamento e à participação social.
Na dimensão técnico-assistencial, a ESF foi melhor do que o modelo de APS em UBS tradicional quanto ao desempenho, ao trabalho multidisciplinar, ao enfoque familiar, ao acolhimento, ao vínculo, à humanização e à orientação comunitária.
Também há que se destacar os benefícios da ESF para a promoção da saúde, a prevenção de doenças, a busca ativa de casos, a educação em saúde, a assistência domiciliar, o aumento do número de consultas pré-natais, puericultura, de orientações sobre o aleitamento materno exclusivo, da coleta de colpocitologia oncótica; a redução de nascidos com baixo peso, da mortalidade infantil e das internações hospitalares. Além disso, proporcionou adesão às ações para tratamento da hipertensão, diabetes, hanseníase, tuberculose, e de doenças sexualmente transmissíveis. Avanços importantes foram percebidos também nas áreas de saúde bucal e na assistência farmacêutica.
Os desafios observados nessa dimensão estiveram relacionados ao desenvolvimento de práticas integrativas complementares, de ações para a saúde do adolescente, na área de saúde mental, ao portador do Vírus da Imunodeficiência Humana/Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (HIV/AIDS), aos usuários de drogas ilícitas, e da obesidade. O risco de reproduzir a racionalidade biomédica no processo de trabalho, foi outra dificuldade detectada a ser enfrentada pela ESF no processo de cuidado.
Os dados desta revisão revelam que, cada vez mais, a ESF tem sido estudada com a utilização de diversos métodos, e evidencia a importância estratégica do desenvolvimento desse modelo de atenção à saúde no Brasil. Destaca-se, também, o alcance das pesquisas em quase todos os Estados da federação e a grande quantidade de publicações envolvendo a região Sudeste, com destaque para os Estados de São Paulo e Minas Gerais, denotando, assim, a primazia de seus centros de pesquisa na análise da ESF no período avaliado.
Com relação à dimensão político-institucional, é interessante salientar que a decisão política de manter a ESF tem sido sustentada há mais de 20 anos, fato este que justifica a continuidade da expansão dos cuidados primários, bem como a busca de sua universalização. Ressalta-se ainda que, diferentemente da APS de outros países, no Brasil, foram incluídos os serviços de saúde bucal11.
O esforço para a equidade na prestação de serviços, ou seja, prioritariamente àquelas pessoas mais necessitadas, representa uma das ações de saúde com maior dificuldade de operacionalização na América Latina12. Contudo, a forma como ocorreu a implantação da ESF no Brasil, expandindo-se principalmente em cidades de pequeno porte e nas áreas periféricas de metrópoles, colaborou para a promoção do acesso às populações historicamente excluídas devido à pouca disponibilidade de equipamentos públicos nesses locais13. Sua implantação em áreas rurais, para a população indígena, ribeirinha, e a incorporação de particularidades individuais, como das pessoas em situação de rua, de travestis, e de cuidadores familiares que vivem em isolamento social devido à sobrecarga de atividades, são exemplos que reforçam essa perspectiva14-17.
Todavia, apesar de ser relevante a expansão da cobertura da ESF às populações desassistidas, ela não tem sido suficiente para a reorientação do modelo de atenção à saúde, sendo o financiamento apontado como um dos elementos indispensáveis ao seu desenvolvimento18.
É preciso insistir que a definição da quantidade de recursos financeiros suficientes para a APS como estratégia de reorganização do sistema de saúde visando à universalidade e à integralidade da atenção não é uma tarefa fácil, pois depende das peculiaridades sociais, ambientais, geográficas, epidemiológicas e étnicas de cada município e microrregião19. Por isso, as necessidades de financiamento precisam ser analisadas com maior profundidade e elaboradas com base nas reais necessidades de saúde das populações, a fim de contribuir para a expansão e a manutenção qualificada da ESF/APS a médio e longo prazo. Embora se verifique preocupação do Ministério da Saúde em ampliá-lo, com intuito de promover maior equidade na distribuição dos recursos, ressalta-se a premência de corrigir as desigualdades entre os níveis de atenção para assegurar uma fonte estável de financiamento para a APS20.
No que tange à avaliação, como componente essencial para a orientação dos processos de implantação, consolidação e reformulação das práticas de saúde, destaca-se que a ESF tem sido indutora de sua institucionalização na APS, favorecendo sua incorporação na rotina dos serviços21. Essa decisão tem possibilitado o acompanhamento das mudanças na comunidade de atuação, sendo possível reajustar as atividades conforme as carências locais, trazendo assim maior qualificação da APS.
Mister se faz ressaltar que o modo de formação dos profissionais de saúde tem sido um fator dificultador, sobretudo, por estar voltado aos aspectos técnicos, decorrentes de processos pedagógicos disciplinares22. Além disso, ainda é notada excessiva valorização da doença e da formação especializada, como decorrência da insuficiência dos conteúdos curriculares que abordem as dimensões subjetivas, preventivas e sociais para a prestação do cuidado23.
Apesar de vários investimentos para capacitar profissionais, como a residência em saúde da família e as atividades de educação permanente, os esforços precisam ser intensificados a fim de que essas estratégias tragam benefícios em larga escala para a consolidação da ESF e de um sistema de saúde centrado na APS.
Entre os desafios, ressalta-se a necessidade de uma formação fundamentalmente voltada para a realidade de saúde da população, considerando sua complexidade social, econômica e cultural24. De igual maneira, a formação deve focar o desenvolvimento de profissionais capazes de se articular com outras profissões e realizar um trabalho efetivo entre diferentes setores que influenciam na determinação social da saúde22.
As questões ligadas à formação exigem atenção não apenas para as atuais profissões inseridas na ESF (médico, enfermeiro, dentista, agentes de saúde, profissionais de nível técnico e auxiliar), mas também para aquelas com possibilidade de serem incluídas no futuro devido à transição epidemiológica e demográfica.
O avanço da ESF perpassa também pela gestão de pessoal, especialmente no que se refere aos mecanismos de contratação dos profissionais das equipes, muitas vezes, com base em contratos temporários e relações trabalhistas precárias25,26. Isso tem gerado, por consequência, dificuldade de fixação da mão de obra, deixando equipes incompletas e prejudicando o processo de cuidado à população26.
Tem-se percebido maior ocorrência dessa condição para os profissionais da ESF do que para aqueles que trabalham em UBS tradicionais, trazendo grave prejuízo para a sustentabilidade daquele modelo13. Na maioria das vezes, essa questão tem sido assumida pela gestão municipal com dificuldades, contudo, deve ser enfrentada com urgência para não afetar os potenciais da ESF na construção de uma APS que valorize a prestação contínua do cuidado. A publicação de documentos normativos pelas esferas federal ou estadual, com estabelecimento de parâmetros e prazos pode ser uma estratégia que funcione como indutora de mudanças na gestão local, aliada, é claro, a um adequado monitoramento pelas esferas superiores de gestão.
É imprescindível ainda a criação de uma política específica para melhorar a saúde do trabalhador da APS. Faz-se necessário, por exemplo, a implantação de atividades de educação e controle da imunização dos profissionais atuantes nas USF, inclusive para aqueles que não estão incluídos formalmente na composição da equipe, como o profissional administrativo, de serviços gerais, entre outros27.
Outro ponto que carece de aperfeiçoamento na dimensão político-institucional é a intersetorialidade, definida como a interação entre os diversos setores das políticas públicas no enfrentamento de questões ligadas aos determinantes sociais do processo saúde-doença6.
Reconhece-se que a ESF atua como uma nova base para as articulações intersetoriais, devido à maior proximidade dos profissionais com a população e às interações no território de abrangência, o que possibilita a constatação de problemas que incidem sobre o processo saúde-doença. Fundamentado nesse diagnóstico, os profissionais da ESF podem então contribuir para a elaboração de políticas de intervenção sobre essas situações.
Contudo, tem-se identificado dificuldade de integração dos setores, trazendo, por consequência, ausência ou insuficiência de resposta para os determinantes sociais da saúde26. Para superar essa questão, requer-se, portanto, decisão político-administrativa para romper com a tradição setorial (fragmentada), competitiva e hierarquicamente verticalizada e, assim, responder às demandas sociais, pois tais ações podem contribuir potencialmente para a redução de problemas enfrentados pelo setor de saúde6.
A dimensão organizativa é aquela que ainda prescinde de muitos investimentos. Apesar de melhorias devido à expansão da oferta dos serviços de APS, pontua-se que o acesso, entendido como um fator relacionado à procura e à entrada das pessoas no serviço de saúde, precisa ser aperfeiçoado. Destacam-se também os problemas ligados à disponibilidade e localização dos serviços, e ao modo de organização da oferta, como o horário de funcionamento das unidades, o sistema de agendamento de consultas e exames e a limitação das ações para grupos programáticos28,29.
As decisões concernentes a essas questões restringem diretamente o acesso ao serviço, contribuindo para a formação de uma demanda reprimida29. Por isso, precisam ser planejadas em conjunto com a população da área de abrangência para torná-la mais satisfatória às carências locais, colaborando assim, para maior responsabilização dos gestores e profissionais de saúde com os usuários dos serviços ofertados na APS.
A definição da ESF como serviço de primeiro contato ou porta de entrada é outro aspecto fundamental para sua implantação como modelo de APS abrangente, que deve servir para o atendimento das maiores necessidades de saúde de uma população e, além disso, para promover e regular o acesso a outros níveis de atenção30. O contato das pessoas por meio de ações programáticas na ESF é uma estratégia de organização que favorece neste ponto sua utilização como porta de entrada.
Um fator dificultador da adoção da ESF como porta de entrada é a coexistência de outras, concorrentes no sistema de saúde, fazendo com que a ESF nem sempre assuma seu papel de referência para o primeiro contato. Comumente, isso ocorre em grandes centros urbanos, e tem ocasionado, inclusive, proporções mais baixas de procura da população adscrita pela USF30, colaborando para maior lentidão na reorganização da APS a partir da ESF.
A ausência de diferença estatística quanto à porta de entrada entre a ESF e o modelo tradicional de APS também foi identificada31. No entanto, tal resultado pode ser reflexo da cultura da focalização na doença e na intervenção imediata pelos usuários, justificando a utilização de qualquer porta de entrada disponível para o atendimento de suas necessidades.
Torna-se premente, portanto, decisões político-administrativas que favoreçam a ampliação da ESF sobre os territórios não alcançados para que organizem a oferta de serviços de forma a atender os anseios da população. É preciso ressaltar que mesmo se todos os territórios forem alcançados pela ESF, um modo de organização deficiente na USF poderá voltar a favorecer o uso de outras portas de entrada. Assim, concordamos com Conill32 quando destaca a problemática do acesso como elemento determinante da direção da ESF.
A integralidade da atenção, definida como a prestação de serviços que atendam às necessidades mais comuns de saúde da população e com responsabilização por outros pontos de atenção à saúde, tem sido um grande avanço na ESF quando comparado com o modelo de APS em UBS tradicional33,34. Isso se deve à conjugação de ações de promoção, prevenção, diagnóstico, tratamento e reabilitação pela ESF, mas também pela capacidade de buscar garantir todas as demandas de saúde das pessoas.
Entretanto, para garantir a integralidade da atenção, a ESF precisa ser a porta de entrada do sistema, estar integrada à rede assistencial e assumir o papel de coordenadora da continuidade da atenção ao usuário. Nesse quesito, a ESF tem enfrentado problemas relacionados à dificuldade de comunicação entre profissionais na rede assistencial, que trazem prejuízos para a integralidade da atenção. Isso é identificado inclusive na relação entre a ESF e o Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), que pode ser considerado uma extensão da clínica das equipes da ESF35.
Outro ponto prejudicial à coordenação da atenção é a insuficiência de serviços especializados de referência para atender a demanda do usuário, formando assim longas filas de espera. Essa situação parece estar ligada ao fato de ter acontecido uma expansão da APS por meio da ESF, sem o concomitante desenvolvimento da atenção especializada, de maneira a responder às novas exigências de saúde da população20.
Além da insuficiência de políticas para os serviços especializados, detecta-se a ausência de monitoramento em algumas experiências locais, impossibilitando o conhecimento do tamanho das filas e os tempos de espera para se fazer um planejamento adequado à realidade30. Sugere-se, portanto, urgente mobilização para a ampliação da oferta de serviços especializados para suprir as necessidades atuais e acompanhar as tendências epidemiológicas na medida em que a APS continua a se expandir no país.
Sobre a questão da integração da ESF à rede de atenção, Sisson et al.36 ressaltaram também a importância de desenvolver novas formas de articulação para garantia dos serviços especializados que superem as insuficientes pactuações entre Estados e seus municípios. Nesse caso, sugere-se avanço na regionalização da assistência de modo a ir além das barreiras geográficas e normativas estaduais no sentido de contribuir para a consolidação da ESF como um modelo de APS abrangente.
Com relação ao planejamento, foi constatada incipiência para a adequada organização da ESF. Verifica-se por um lado, baixo registro de informações úteis para a análise de saúde dos territórios e a subutilização dos sistemas oficiais de informação37. Por outro, críticas aos instrumentos adotados devido à sua insuficiência para promover um planejamento mais detalhado sobre as situações de risco das famílias, por exemplo, o número de pessoas que ocupam o mesmo cômodo para dormir e os dados para o monitoramento da saúde bucal38.
Dessa forma, faz-se necessária uma revisão sobre os instrumentos utilizados, a fim de permitir melhor diagnóstico situacional. Ademais, propõe-se que seja realizado um planejamento coerente, pois comumente há um número de prioridades tão alto que acaba por inviabilizar a execução das metas programadas26.
Não se deve esquecer também de que o planejamento, além de considerar as peculiaridades locais e regionais, precisa contemplar as questões ligadas aos determinantes sociais do processo saúde-doença, à ação intersetorial, com inserção da participação social representativa, haja vista, a ESF ser sustentada conceitualmente e ideologicamente a partir da realidade local14.
Observou-se que a participação social ainda tem sido fraca na gestão local das USF e com pouca permeabilidade aos temas de interesse da estratégia nos Conselhos Municipais de Saúde18. Essa situação pode ser revertida à medida que os próprios membros das equipes estimulem a efetiva participação da população nos momentos de diagnóstico e planejamento, contribuindo dessa maneira para que a ESF seja mais responsiva às suas necessidades39. Exige-se, contudo, que essa participação seja contínua, pois as demandas em saúde são diferentes ao longo do tempo.
Com base nessa discussão, chega-se à conclusão de que o planejamento e a participação social são elementos que perpassam os problemas apresentados na dimensão organizativa, a saber, o acesso, o primeiro contato, a integralidade da atenção e a integração da APS à rede de atenção, sendo imprescindível que sejam tomados com primazia para o avanço da ESF.
Na dimensão técnico-assistencial aponta-se o trabalho multidisciplinar como um importante elemento para o aperfeiçoamento da ESF devido ao desenvolvimento de ideias que são discutidas por diferentes visões, o que traz um ganho para a qualidade da atenção recebida pelas pessoas40.
Ressaltamos a relevância do Agente Comunitário de Saúde (ACS) nessa equipe, pois, em razão de sua atuação na comunidade e à capacidade de maximizar as ações intersetoriais, é um profissional fundamental para viabilizar a mudança do modelo de atenção30.
A ESF tem apresentado um vínculo mais forte com a comunidade do que a APS estruturada em UBS tradicionais, ou seja, tem sido uma fonte regular de atenção ao longo do tempo, com laços interpessoais que geram cooperação mútua entre a comunidade e os profissionais da equipe7,31. Sua grande vantagem é que ele permite um trabalho mais focado nas necessidades da população, possibilitando gerar maior resolutividade e satisfação dos usuários41.
Alguns elementos contribuem para a potencialização do vínculo, como as visitas domiciliares, o tempo de atuação dos profissionais nas USF, o número de consultas realizadas e o desenvolvimento de ações intersetoriais42,43. Entretanto, estudos de bioética na APS mencionam a necessidade de maior atenção dos profissionais nas situações cotidianas de trabalho, pois podem colocar em risco a questão ética e, por consequência, a relação vincular44.
Juntamente com o vínculo, o acolhimento e a humanização foram melhores avaliados na ESF. Contudo, destaca-se que o foco na doença e na consulta médica, conforme é detectado em algumas realidades no processo de trabalho, fragiliza a criação de laços interpessoais e, por este motivo, podem afetar a adesão ao tratamento e à qualidade de vida do usuário45.
O enfoque familiar foi outro ponto positivamente avaliado nessa dimensão quando comparado com o modelo tradicional de APS31,34. Para isso, apontam-se a utilização de prontuários organizados por residência e de outras ferramentas para trabalho que colaboram para estreitar a relação entre os profissionais e as famílias. Por meio dessas tecnologias relacionais, tem-se a oportunidade de identificar melhor os fatores de risco socioeconômicos das famílias e contribuir para melhor manejo das ações de saúde7,46.
Quanto à orientação comunitária, a qual requer o reconhecimento de que todas as necessidades de saúde ocorrem em um contexto social e de que devem ser consideradas pelos profissionais no desenvolvimento das ações, a ESF também apresentou resultados favoráveis quando comparada com as UBS tradicionais31,34. Ressalta-se novamente a visita domiciliar, que é um veículo favorecedor da orientação comunitária na ESF. No entanto, apesar dessa constatação, os esforços precisam ser contínuos devido à possibilidade de grande variabilidade de conduta entre as USF7.
No que tange ao processo de trabalho, pode-se dizer ainda que a ESF possui grande potencial para combater a racionalidade do modelo biomédico, centrado no indivíduo, na doença, em procedimentos, na cura e na especialidade45, devido à assunção de elementos que dão uma nova dinâmica ao processo de trabalho, como o foco na saúde, a centralidade na família, a integralidade da atenção, a participação social, o trabalho multidisciplinar, o acolhimento, o vínculo, a humanização e a orientação comunitária.
É notável a amplitude das ações que podem ser oferecidas pela ESF buscando abranger todos os ciclos de vida, vários tipos de situações endêmicas, epidêmicas, e manejo das crônicas que têm logrado sucesso, levando em conta os determinantes sociais ligados ao processo saúde-doença. Constitui-se, portanto, uma plataforma abrangente e sempre atual para qualquer situação que envolva a atenção à saúde da população. Não obstante, o processo de cuidado demanda a elaboração de novas estratégias relacionadas ao preparo técnico dos profissionais para o desenvolvimento de práticas integrativas complementares, na área de saúde mental, ao portador de HIV/AIDS, aos usuários de drogas ilícitas e à obesidade.
Considerando a longitudinalidade da atenção, ou seja, abrangendo todos os ciclos de vida, detectou-se maior objeção ao desenvolvimento de ações para a saúde do adolescente, fato este justificado pela dificuldade na realização de ações específicas a esse grupo, refletindo assim, na criação de vínculo precário com os mesmos39.
A ESF tem favorecido a universalização dos cuidados primários agregando princípios fundamentais para uma APS abrangente, como a valorização da equidade e da integralidade da atenção. Além disso, tem contribuído para a implantação de processos avaliativos que são úteis no seu aperfeiçoamento. E, no aspecto técnico-assistencial tem se destacado ao obter melhor desempenho do que o modelo de APS tradicional devido ao trabalho multidisciplinar e com enfoque familiar, que valoriza o acolhimento, o vínculo, a humanização e a orientação comunitária.
Por outro lado, os desafios para o aprimoramento da ESF estão condicionados a fatores complexos e que, por isso, exigem um maior esforço político-institucional, como as questões ligadas ao financiamento, à formação de profissionais, à gestão/educação de pessoal e ao desenvolvimento de ações intersetoriais. Ações mais consistentes também precisam ser implantadas para fortalecer a ESF como porta de entrada preferencial e melhorar a organização do acesso aos demais níveis de atenção. Requerem-se paralelamente ações de planejamento com participação social nas questões organizativas de modo a atender às reais necessidades da população, buscando superar processos de trabalho ainda baseados no modelo biomédico. Nessa perspectiva, outro desafio para a garantia dos cuidados integrais está no alcance do equilíbrio adequado entre a abordagem individual em tempo oportuno e a comunitária para enfrentar os determinantes sociais.
Diante dessas considerações, evidencia-se que a ESF tem apresentado diversos avanços, contudo, enfrenta problemas, sobretudo impostos pela estrutura federativa do país e pelas grandes iniquidades regionais, além de um importante crescimento do setor privado nos últimos tempos, o que dificulta a organização da APS como eixo principal do sistema de saúde. Desta feita, a sua sustentabilidade e o seu desenvolvimento dependem do grau de investimento do Estado.