versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.21 no.7 Rio de Janeiro jul. 2016
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015217.08182016
Confinar pessoas privadas de liberdade (PPL) de um país de alta ou média endemicidade de tuberculose (TB) como o Brasil, em ambientes superlotados e mal ventilados, tem como consequência imediata a amplificação da transmissão e uma hiperendemicidade neste contexto1, com risco não só para elas, como para suas famílias, para os profissionais que exercem suas atividades nas prisões e para as comunidades onde as PPL irão se inserir após o livramento2. Este é o caso das prisões do Rio de Janeiro (RJ), estado onde as taxas de detecção de casos de TB estão entre as mais elevadas do país, tanto na população geral quanto na prisional.
Essa situação afeta as cerca de 39.000 PPL distribuídas nas 50 unidades prisionais do estado. A taxa de encarceramento (239/100.000) não está entre as mais elevadas do país, mas a taxa média de ocupação, que é de 140%, varia segundo as prisões, podendo chegar a 200%. A superpopulação é resultado de um crescimento progressivo, acentuado a partir de 2010, do número de pessoas presas que aumentou 85% ao longo dos últimos dez anos, com um aumento do número de vagas limitado a cerca de 20%3. A maioria das prisões do estado são vetustas e insalubres com celas coletivas que abrigam até mais de 100 PPL em ambiente mal ventilado e com iluminação solar reduzida. Uma das particularidades do sistema penitenciário do estado do RJ é o agrupamento de 47% das unidades prisionais, no Complexo de Gericinó, localizado na periferia da capital, que abriga 57,3% das PPL do estado.
Para responder às necessidades de saúde das PPL, cada unidade prisional conta com uma unidade de saúde e, em 2010, uma Unidade de Pronto Atendimento foi criada neste complexo em substituição ao Hospital Geral Penitenciário. As atividades de controle da TB, inclusive o tratamento dos casos, são asseguradas pelo Sanatório Penal (SP), localizado também neste complexo. O SP dispõe de serviço ambulatorial para diagnóstico e tratamento dos casos de TB, além de 104 leitos de hospitalização, (incluindo 7 de isolamento para casos de resistência às drogas antiTB), serviço de radiologia, laboratório de micobacteriologia com estrutura para realização de baciloscopia, cultura para BK e teste de sensibilidade às drogas (TSA).
No estado de RJ as PPL, das quais cerca de 50% aguardam julgamento, têm perfil semelhante ao das pessoas presas no conjunto do país3. Trata-se de população jovem, predominantemente masculina, com pouca escolaridade, vivendo, em sua maioria, em comunidades pobres ou favelas das grandes cidades do estado, particularmente na do Rio de Janeiro e sua região metropolitana4. Além disso, 40,7% das PPL referem antecedentes de encarceramento e 9,6% história passada de TB4,5. Dentre as PPL, a taxa de detecção de TB é particularmente elevada, cerca de 30 vezes superior à da população geral do estado6.
De 1962 a 2001, as ações voltadas para o controle da TB, centradas no SP, limitavam-se à detecção de casos em resposta à demanda espontânea e à internação, com tratamento supervisionado no SP por período de 2 a 3 meses. Após este período, os pacientes retornavam à prisão de origem, onde a interrupção do tratamento era frequente. Como mostram os Gráficos 1 e 2, as altas taxas de detecção anuais se mantinham estáveis, em torno de 1.600 por 100.000 e as de cura não ultrapassavam 55%6. A partir de 2001, o Programa de Controle da Tuberculose da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (PCT/SEAP) foi progressivamente implantado, baseado em estratégia de detecção de casos e tratamento supervisionado nas próprias unidades prisionais. A internação no SP foi limitada aos casos de resistência bacteriana, aos de retratamento, às doenças associadas como HIV/Aids ou diabetes, ou às complicações clínicas decorrentes da doença (p.ex. hemoptise) ou do próprio tratamento.
Gráfico 1 Taxa de Detecção de Casos de Tuberculose no Sistema Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro. 1998-2013.
Gráfico 2 Taxa de Cura de Tuberculose no Sistema Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro. 1998-2013.
Este artigo tem por finalidade apresentar o conjunto de pesquisas pluridisciplinares com objetivos operacionais desenvolvidas desde 2012 no Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro, em parceria com várias instituições científicas, as estratégias de controle delas derivadas, assim como discutir as dificuldades encontradas na realidade quotidiana das prisões para a implementação de medidas cuja efetividade e exequibilidade foram demonstradas.
O objetivo inicial das pesquisas foi dar uma visibilidade quantitativa ao problema da TB e da coinfecção TB/HIV entre as PPL como argumento para convencer os gestores da gravidade do problema. Foram realizados, entre 2002 e 2013, vários estudos de avaliação de prevalência baseados em rastreamento de casos através de radiografia de tórax de todas as PPL de uma determinada unidade prisional, independentemente da existência de sintomas. Conforme as recomendações de den Boon et al.7, todos que apresentassem qualquer anormalidade radiológica pulmonar, mediastínica ou pleural, sugestiva ou não de TB, eram submetidos a duas baciloscopias de escarro, além de cultura para Mycobacterium tuberculosis (MTB) e TSA. O estudo de 1696 indivíduos no momento de seu ingresso no sistema penitenciário mostrou uma prevalência de TB ativa de 2,7%8, taxa que pode ser considerada alta e que pode ser atribuída à permanência prolongada das PPL, em péssimas condições de encarceramento nas delegacias de polícia, situação essa posteriormente modificada com o fim dessas carceragens. Estudos sobre a TB ativa na população já encarcerada revelaram taxas de prevalência de 4,6%, 6,3% e 8,6% (3014 PPL investigadas), respectivamente em três prisões de regime fechado5, com taxas de soroprevalência para HIV de 14% entre os casos de TB e de 2,0% nas PPL sem TB. O teste tuberculínico realizado sistematicamente em uma das prisões mostrou taxa de prevalência de infecção latente tuberculosa (ILTB) de 63,7%4.
Essa situação de alta endemicidade da TB nas prisões não é especifica do estado de Rio de Janeiro. Em Porto Alegre, rastreamento radiológico utilizando a mesma metodologia que a utilizada no RJ, mostrou prevalência mais elevada de TB ativa (9,1%), de infecção pelo HIV (5,8%) e de coinfecção TB/HIV (18,2%)9,10. A alta taxa de infecção pelo HIV encontrada está em coerência com a frequência particularmente elevada de infecção pelo HIV na população geral de Porto Alegre em relação à taxa nacional11,12.
Inquéritos de prevalência de TB ativa realizados em prisões de outros estados mostram taxas de prevalência de TB abaixo de 1%, inferiores às encontradas no RJ e em Porto Alegre, o que pode, em parte, ser decorrente da baixa performance do método de rastreamento utilizado nesses estudos, baseado na existência de sintomas13-16. Avaliações de prevalência de ILTB em PPL na Bahia17 e em São Paulo14 mostraram altas taxas (64% e 73% respectivamente). Estudo recentemente realizado em Mato Grosso do Sul encontrou taxas de prevalência de ILTB mais baixas, entre 3 e 32% segundo a prisão estudada, porém com um incremento de 5% por ano de encarceramento, o que sugere uma circulação importante de MTB na população estudada16. Essas variações de prevalência de ILTB entre as PPL podem ser, em parte, decorrentes dos diferentes níveis de endemicidade da TB segundo os estados do país.
Embora numerosos estudos na literatura internacional relatem taxas de resistência aos medicamentos antituberculose elevadas nas prisões18, a avaliação da prevalência de resistência na população prisional nunca foi realizada de forma sistemática ao nível nacional, mesmo que a realização do TSA seja recomendada pelo PNCT para todo caso de TB diagnosticado em prisões19. Inquérito recentemente realizado no Sistema Penitenciário do Estado do RJ mostrou taxa de multidrogas resistência de 1,5%, em coerência com achados publicados anteriormente5 e semelhante à taxa encontrada na população geral do estado. Estudos realizados em diferentes prisões do sul do país mostraram taxas de resistência a uma droga de 8% e 15%9,10.
Os estudos de prevalência realizados nas prisões de RJ permitiram a obtenção de informações importantes que contribuíram para definição das estratégias mais eficazes para a detecção ativa sistemática de casos. Por exemplo, somente um terço dos casos de TB identificados por rastreamento radiológico declarou, em entrevista individual, tosse ≥ 3 semanas, e a grande maioria (74%) afirmou que não se sentia doente. Assim, na população estudada, rastreamento baseado na existência de sintomas teria identificado apenas uma pequena proporção (14%) dos doentes4,5.
Nesta mesma linha, outro objetivo de nosso programa de pesquisa visou identificar os fatores de risco associados à TB que pudessem direcionar as estratégias de detecção de casos. Considerando como método de referência o rastreamento radiológico, avaliamos a performance do escore proposto pela OMS20, que permitiria identificar, dentre as PPL, aquelas presumidamente com TB ativa. Em nossa população de estudo, o desempenho deste escore foi medíocre, assim como a de outro derivado de análise multivariada por nós construído, a partir das variáveis obtidas durante os inquéritos de prevalência acima mencionados21.
A avaliação comparativa do desempenho das diferentes estratégias de detecção ativa de casos de TB no contexto carcerário é particularmente difícil por questões operacionais e éticas. Entretanto, desenvolvemos um modelo matemático que permitiu comparar 5 estratégias e estimar o impacto de cada uma delas sobre a prevalência da TB num período de 10 anos22. A estratégia que se mostrou mais eficaz associava às medidas de base (detecção passiva e tratamento de casos), o exame radiológico sistemático de ingressantes e, anualmente, na população já encarcerada.
Tornava-se, portanto, fundamental avaliar “na vida real” o impacto da estratégia que a modelagem matemática mostrou ser a mais eficaz. Para tanto, aplicamos, durante dois anos, numa prisão que abrigava 1374 PPL no início do estudo, intervenção com realização sistemática de Rx de tórax de todos os ingressantes e de toda a população da prisão em dois momentos: no início do estudo e no final do primeiro ano, além de detecção de casos a partir da demanda espontânea. Demonstrando o impacto desta estratégia, a prevalência de TB passou de 6% por ocasião do rastreamento inicial para 2,8% ao final do primeiro ano, enquanto a prevalência entre ingressantes se manteve estável em 3% durante os dois anos de estudo. O número de casos identificados a partir da demanda espontânea diminuiu significativamente entre o primeiro (4045 pessoas/ano) e o segundo (2181 pessoas/ano) ano23. A limitação deste estudo é a ausência de população controle na qual a intervenção não fosse aplicada decorrente das dificuldades mencionadas acima.
Estudo complementar realizado nesta mesma prisão com técnicas de RFLP e de spolygotyping mostraram que 83% das cepas de MTB pertenciam a um dos 13 clusters identificados, o que sugere que a transmissão intrainstitutional contribui de maneira substancial para a alta endemicidade da TB24. Observação similar foi relatada em estudo realizado em prisão no Rio Grande do Sul10. Pesquisa adicional permitiu aprofundar o estudo de cepas circulantes na prisão estudada para melhor avaliar a dinâmica epidemiológica das cepas de MTB de acordo com o genótipo25.
A performance do teste molecular Xpert MTB/RIF, cujo desempenho está bem estabelecido para a população geral26, foi avaliada na rotina de serviço de saúde prisional num contexto de alta endemicidade. O Xpert MTB/RIF permitiu a identificação adicional de 40% de casos de TB em comparação à baciloscopia do escarro27.
Na maioria das publicações sobre o controle da TB nas prisões é mencionada a necessidade de melhorar as condições ambientais de encarceramento, mas raramente são feitas propostas concretas. No âmbito do Projeto Fundo Global TB Brasil/prisões, foi desenvolvido, com o Departamento Penitenciário Nacional/Ministério da Justiça, um programa de âmbito nacional cujo objetivo era propor estratégias realistas para a melhoria das condições de ventilação e iluminação natural das prisões. Com a participação de arquitetos, profissionais de saúde e da segurança, organizações da sociedade civil, do Ministério Público e da Vara de Execuções Penais, foram realizadas oficinas regionais que resultaram na elaboração do “Manual de intervenções ambientais para o controle da tuberculose nas prisões”28. Este Manual foi distribuído a esses atores, em particular aos diretores das 1302 unidades prisionais do país. Os resultados obtidos serviram como subsídio para a elaboração de normas federais para construção e reforma de prisões29.
Melhorar as condições ambientais é de grande importância, porém estudos de modelagem realizados por autores da África do Sul30 sugerem que a superpopulação poderia desempenhar um papel ainda mais determinante do que a má ventilação na disseminação da TB. A crescente superpopulação nas prisões coloca em xeque a política penal brasileira, na medida em que equipara o tráfico de droga aos crimes hediondos e prioriza o encarceramento em detrimento de penas alternativas31,32, contribuindo para o aumento impressionante do número de PPL nos últimos anos.
Consideramos como de especial importância pesquisas na área de psicossociologia33,34 para o desenvolvimento de intervenções adaptadas à complexidade da instituição carcerária35. As pessoas presas estão subjugadas à administração penitenciária, que se contenta essencialmente em confiná-las, negligenciando seu papel de reinserção social. Alocadas nas prisões em função dos grupos criminosos que dominam suas comunidades de origem, as PPL estão igualmente submetidas ao poder paralelo das facções5. Este duplo controle num ambiente altamente hierarquizado aumenta a vulnerabilidade das PPL, levando-as a priorizar as condições de sobrevivência em detrimento da saúde, enquanto a administração penitenciária prioriza a segurança.
Nossos estudos mostram ainda que os agentes penitenciários e as organizações paralelas dos PPL que asseguram a governança das prisões36 controlam o acesso ao serviço de saúde, utilizando, muitas vezes, critérios alheios à saúde e transformando o acesso ao serviço em moeda de troca. Num universo onde a virilidade e a força são muito valorizadas, a imagem de fragilidade decorrente da TB, associada ao medo da discriminação em função de práticas ligadas ao risco de contágio que ignoram o contexto, como o isolamento e o uso de máscaras, leva o paciente, não raro, a retardar a busca pelo diagnóstico, o que contribui para a manutenção da transmissão intrainstitucional.
As ações de saúde são desacreditadas diante das deficiências dos serviços oferecidos. Os profissionais de saúde em número insuficiente e dependentes de uma administração penitenciária que os desconsidera, são desmotivados pelas más condições de trabalho que não lhes permite responder às exigências éticas e técnicas da sua profissão33.
O serviço de saúde padece de ser essencialmente curativo, com um sistema de referência e contrarreferência ineficiente, limitado pela inexistência de transporte de saúde independente e pelas condições desumanas em que ocorre. Para as pessoas presas, que tendem a rejeitar todo tipo de imposição além daquelas impostas pelo contexto, as estratégias coercitivas frequentemente preconizadas pela saúde, particularmente para assegurar a tomada da medicação para TB, têm, em nossa experiência, efetividade limitada.
A coerência desse conjunto de projetos de pesquisa está ligado ao fato de que foram desenvolvidos para responder a questões que se colocavam no dia a dia dos profissionais de saúde do sistema penitenciário, eles mesmos implicados diretamente na realização dos estudos37. Os resultados dessas pesquisas contribuíram para a elaboração de alguns documentos normativos dos Ministérios da Justiça29,38, do Ministério da Saúde do Brasil, em particular o capítulo PPL do Manual Nacional de Controle da TB19, e também a elaboração do Programa Nacional de Controle da TB da Costa do Marfim, por ocasião de consultoria.
Baseados no resultado deste conjunto de pesquisas, foram desenvolvidas atividades de advocacy junto a gestores e a membros da sociedade civil e do poder judiciário envolvidos no campo do tratamento penitenciário, profissionais de saúde pública e pesquisadores1,39-41.
A análise do PCT/SEAP, implantado desde 2002 no Sistema Penitenciário do RJ, revela as dificuldades encontradas para a sustentabilidade das medidas de controle sugeridas pelas pesquisas e demonstradas efetivas e exequíveis na rotina.
O exame de saúde de ingressantes, que inclui a busca ativa de TB, é realizado de maneira incompleta e intermitente. A busca ativa sistemática na população já encarcerada, que contribuiu consideravelmente para o aumento das taxas de detecção de casos nos anos em que foi realizada, entre 2004 e 2010 (Gráfico 1), deixou de ser realizada pela ausência de manutenção da Unidade Móvel de Radiologia. Por outro lado, a percentagem de pacientes com TB testados para HIV aumentou consideravelmente a partir de 2011, com taxa de realização do exame superior a 90%, graças à disponibilização do teste rápido e ao treinamento das enfermeiras para realizá-lo.
A disponibilidade irregular de insumos e, mais recentemente a retirada do equipamento, impediram a realização do teste Xpert MTB/RIF introduzido no laboratório do SP em 2011.
Para fortalecer a adesão ao tratamento, foi introduzida em 2003 uma estratégia que visa partilhar com o paciente a responsabilidade pelo seu tratamento, via de regra, realizado na própria unidade prisional. O tratamento é autoadministrado com consulta de enfermagem quinzenal e entrega semanal da medicação diretamente ao paciente, o que permite um acompanhamento personalizado, ao contrário das estratégias coercitivas proposta em alguns países42. Grupos de discussão com pacientes em tratamento, coordenados por uma enfermeira e com a participação de ex-pacientes, eram realizados mensalmente nas 15 unidades prisionais com maior número de casos visando garantir a adesão, porém esta atividade foi interrompida em 2012.
Apesar da análise técnica realizada em algumas unidades prisionais do RJ, as propostas de intervenção ambiental não foram consideradas pela administração penitenciária.
Um amplo projeto de informação, educação e comunicação foi desenvolvido, com apoio do Projeto Fundo Global TB-Brasil, com objetivo de envolver as pessoas presas, seus familiares e os profissionais que atuam nas prisões através de reuniões de discussão, produção de folders, vídeo, teatro, concurso de desenhos etc.38. Em particular, contamos com a participação de agentes religiosos e professores, cuja palavra é considerada como “mais confiável” pelas PPL por não dependerem da administração penitenciária e da segurança. O tema TB foi introduzido nos cursos de formação e atualização dos agentes de segurança e transporte da Escola de Gestão Penitenciária e em discussões de grupo com guardas das principais prisões do estado.
A formação e a atuação de PPL promotores de saúde deveria ser um eixo importante do PCT prisional. Entretanto, encontramos grandes dificuldades para implementar essa estratégia, inicialmente para selecioná-los de maneira independente da administração penitenciária e da liderança das PPL, sabendo-se que toda função deste tipo confere ao preso um certo poder e uma relativa liberdade de circulação. Dificuldades para organizar reuniões com as PPL selecionadas e as frequentes transferências entre as diversas unidades prisionais desestruturaram rapidamente a rede de promotores.
Mesmo tendo vivido muitas limitações, o PCT nas prisões do RJ permitiu obter resultados que nos parecem significativos. Como mostram as Gráficos 1 e 2, as taxas de detecção anuais, que eram em torno de 1500/100.000 até 2001, passaram a patamares próximos a 2500 a partir de 2004, atingindo mesmo 3500/100.000 em 2005. No mesmo sentido, as taxas de cura aumentaram rapidamente a partir de 2002 tornando-se superiores às do estado do RJ, com tendência de crescimento por um período de 9 anos, tendo chegado a 89% em 2010. A manutenção de altas taxas de cura por um período prolongado confirma a adequação da estratégia de tratamento praticada e contribui para explicar a baixa taxa de resistência às drogas observada nas prisões do RJ (taxa de TB/MDR: 1,5%). A taxa de mortalidade por TB entre as PPL, que seria um importante indicador do desempenho do programa de controle da TB, não está disponível.
Embora tenha obtido resultados positivos por um período de 10 anos, o programa permaneceu frágil, como demonstra a queda importante e rápida das taxas de detecção e cura a partir de 2011, com seu retorno ao nível anterior ao da implementação do programa em 2001. Tal evolução está relacionada a uma reorganização da estrutura de saúde e do fluxo de pacientes e à precarização dos serviços de saúde no que se refere a insumos, recursos humanos e transporte das equipes de supervisão do tratamento, dos medicamentos e do escarro entre o SP e as unidades prisionais.
Esta situação reflete a motivação limitada dos gestores da administração penitenciária e das secretarias de saúde ao nível estadual e municipal para assumir a responsabilidade e assegurar o financiamento das ações de saúde destinadas às PPL. Mostra o desrespeito do direito das PPL à saúde que, constitucionalmente, deveriam se beneficiar de atenção da mesma qualidade que a oferecida à população geral, sob a responsabilidade estatal como mostramos na análise que desenvolvemos com juristas43. A privação de liberdade a que estão condenados não inclui privá-los do direito à saúde, mas o respeito aos direitos humanos continua no nível do discurso, como demonstrado igualmente pela decisão judicial de considerar improcedentes as ações movidas pelo Ministério Público do Estado do RJ após a Audiência Pública, realizada em 2012, na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, durante a qual mostramos publicamente a gravidade da situação da TB e a degradação do seu controle nas prisões do Estado do RJ44.
Neste contexto, torna-se imperativo a atuação mais efetiva dos organismos encarregados do acompanhamento do cumprimento da pena como a Vara de Execuções Penais, o Ministério Público, a Defensoria Pública, o Conselho da Comunidade entre outros, de modo a garantir às pessoas presas, especialmente no que se refere à TB, acesso às medidas de prevenção e cuidados adequados, conforme seu direito constitucional à saúde. No julgamento do Recurso Extraordinário RE 841526 no Supremo Tribunal Federal, o relator, Luiz Fux conclui “Se o Estado tem o dever de custodia, tem também o dever de zelar pela integridade física do preso”45.
A abordagem utilizada ilustra a necessidade, num contexto tão singular como o das prisões, de pesquisas pluridisciplinares que impliquem diretamente todos os atores da vida carcerária. Evidentemente, o conjunto de pesquisas realizadas nas prisões do RJ está longe de responder a todas as questões para a otimização do controle da TB neste ambiente46. Alguns temas importantes ainda precisam ser mais bem estudados, como o papel de Xpert dentre outras abordagens para detecção ativa de casos, a efetividade e a exequibilidade do tratamento da ILTB, a “governança” da saúde no sistema carcerário, as ações de controle da TB no âmbito da municipalização da saúde prisional, conforme preconizado pela Política Nacional de Atenção à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional no âmbito do Sistema Único de Saúde47, tema este que deve ser desenvolvido em termos de análise de políticas públicas48.
Finalmente, as evidências científicas sobre a gravidade do problema e sobre as medidas que devem ser implementadas para mitigá-lo não parecem ser suficientes para convencer os gestores a assumirem suas responsabilidades sobre a saúde das PPL. Esta situação se perpetua pela inércia dos gestores frente às determinações dos órgãos responsáveis pelo acompanhamento do cumprimento da pena e pelo descompromisso da sociedade em assegurar aos presos, considerados como indesejáveis, condições dignas de encarceramento e acesso à saúde como previsto nas leis internacionais e nacionais49,50.