Compartilhar

Contusio Cordis Associado a Bloqueio Atrioventricular e Insuficiência Tricúspide

Contusio Cordis Associado a Bloqueio Atrioventricular e Insuficiência Tricúspide

Autores:

Giulio Cesare Longo Neto,
Wolney de Andrade Martins,
Humberto Villacorta Junior,
Eduardo Nani da Silva,
Paula Maira Alves Haffner,
Davyson Gerardt de Souza

ARTIGO ORIGINAL

Arquivos Brasileiros de Cardiologia

versão impressa ISSN 0066-782X

Arq. Bras. Cardiol. vol.103 no.2 São Paulo ago. 2014

https://doi.org/10.5935/abc.20140114

Introdução

A expressão "contusio cordis" define uma lesão do miócito cardíaco, hemorrágica ou fibrótica, resultante da força cinética violenta decorrente de um traumatismo contuso na região precordial1. Quase sempre a síncope é a primeira manifestação clínica observada, e comumente precede a morte. O contusio cordis difere do commotio cordis, que é um distúrbio eletromecânico cardíaco decorrente de um traumatismo contuso na região precordial, num momento crítico do ciclo cardíaco, que ocorre entre 10 e 30 ms do pico da onda T, período suscetível ao desenvolvimento de fibrilação ventricular2 - 5. Ambas as formas são fatais na maioria das vezes2 , 3 , 6 - 9. O commotio cordis é uma forma de fibrilação ventricular, não uma lesão no cardiomiócito, nem em órgãos adjacentes2 , 3. É uma condição rara, leva à morte na maioria dos casos6, com maior prevalência em homens, devido à relação com esportes de alto impacto3 , 6. A incidência precisa das duas entidades é desconhecida, visto que não há uma forma sistemática de se registrarem todos os casos; e apesar de rara na literatura, acredita-se que seja mais comum do que é relatado3 , 6. O contusio cordis associado ao Bloqueio Atrioventricular Total (BAVT) é uma condição ainda mais rara, com poucos casos na literatura7. O objetivo do presente trabalho é relatar caso de contusio cordis associado ao BAVT e à Insuficiência Tricúspide (IT).

Relato de caso

Masculino, 37 anos, foi admitido em unidade de emergência há nove anos por síncope precedida de traumatismo contuso em região precordial, causado por pedra arremessada contra trem em movimento contrário em alta velocidade. Recebeu cuidados locais e foi liberado. À época negou sintomas cardiovasculares ou doenças clínicas prévias. Há oito anos apresentou dispneia e, posteriormente, novo episódio sincopal. Foi então diagnosticado BAVT e implantado marca-passo definitivo do tipo VVI. Evoluiu assintomático e sem acompanhamento ambulatorial ou revisões do marca-passo há até um ano, quando reiniciaram dispneia, cansaço e síncope. Apresentou-se dispneico, bradicárdico, com turgência jugular patológica e presença de onda A "em canhão". Ictuscordis desviado lateralmente e sopro compatível com IT. A telerradiografia do tórax evidenciou cardiomegalia. O eletrocardiograma (Figura 1) demonstrou BAVT. O ecocardiograma (Figura 2) confirmou IT importante secundária à ruptura de cordoalha tricúspide e disfunção ventricular direita, permitindo comunicação livre entre átrio direito e Ventrículo Direito (VD), com importante aumento do VD (5,0 cm), As demais medidas ecocardiográficas foram: átrio esquerdo (3,4 cm), volume sistólico do Ventrículo Esquerdo (VE) (113 mL) e diastólico (154 mL). Foi evidenciada importante disfunção sistólica cardíaca, com fração de ejeção de 27%.

Figura 1 ECG com bloqueio atrioventricular total 

Figura 2 Ecocardiograma evidencia insuficiência tricúspide 

Foi detectada a falência completa do gerador, que motivou a troca do marca-passo (VVI), otimizado o tratamento para Insuficiência Cardíaca (IC) e o paciente recebeu alta assintomático, em classe funcional de NYHA I, sob uso de carvedilol 12,5 mg/dia, maleato de enalapril 10 mg/dia e espironolactona 25 mg/dia.

Discussão

As lesões cardíacas resultantes de trauma torácico abrangem uma diversidade de apresentações, como contusão cardíaca, ruptura de parede livre, ruptura septal e lesão valvar. A regurgitação tricúspide traumática é rara8 , 9, muitas vezes subestimada por ser hemodinamicamente bem tolerada e pela atenção dada às lesões em outros órgãos.

O Commotio Cordis é frequentemente relatado na prática de esportes competitivos como lutas marciais e futebol; em acidente automobilístico; torturas; e outros traumatismos de alto impacto6 , 9. Trata-se de um distúrbio eletromecânico do coração decorrente de um traumatismo contuso na região precordial, num momento crítico do ciclo cardíaco. De um modo geral, quando o trauma ocorre durante o QRS existe uma tendência ao surgimento de BAVT, ao passo que se ele coincide com os 10 a 30 ms que antecedem a onda T o resultado é geralmente uma fibrilação ventricular.

Somente nesse período uma energia mecânica, a partir de 50J, tem capacidade de ocasionar a fibrilação ventricular. O Commotio Cordis com manifestação de arritmias graves é uma condição rara, pois a pequena janela de vulnerabilidade explica a sua raridade. Considerando-se um ritmo sinusal a 60 bpm, o ciclo cardíaco tem a duração de aproximadamente 1000 ms; então, a probabilidade de um traumatismo ocorrer no momento crítico da repolarização ventricular é de 1% a 3%.

O contusio cordis é uma condição rara, e na maioria dos casos, letal. Raramente envolve apenas o coração8. Comum em acidentes de alto impacto, como o automobilístico, corridas de Fórmula 1, onde mesmo com toda a proteção do "cockpit" este é incapaz de absorver toda a energia cinética de um choque a 300 km/h reduzido a 0 km/h em poucos segundos. A força cinética, na maioria das vezes, acomete também órgãos como os pulmões, os arcos costais, a traqueia, o esôfago, e leva a contusão pulmonar e fraturas de arcos costais. De tal modo, é fácil deduzir que o contusio cordis é mais relacionado aos casos de óbito. Não há, entretanto, estudos comparativos entre as duas entidades. A situação relatada neste caso é inusitada e não foi encontrado relato congênere nas bases consultadas. O somatório dos vetores de força do trem aproximando-se da pedra arremessada deve ter contribuído para a magnitude do traumatismo.

O VD e a valva tricúspide são os mais acometidos devido à posição anatômica anteriorizada na caixa torácica; entretanto, a IT é rara e, quando presente, bem tolerada5 , 9 , 10. Geralmente a IT é consequência da ruptura do músculo papilar ou da cúspide anterior9. O início dos sintomas pode ser imediato ou demorar alguns anos após o trauma torácico. Geralmente o diagnóstico é baseado nos sinais clínicos e achados ecocardiográficos. A turgência jugular patológica; o refluxo hepatojugular; o sopro holossistólico exacerbado com a inspiração; a dispneia paroxística noturna; a hepatomegalia, com fígado palpável e pulsátil; o edema dos membros inferiores; e a presença de veias varicosas são sinais frequentemente presentes. O desvio do eixo elétrico para a direita e o hemibloqueio anterior esquerdo complementam o quadro. No caso relatado, predominaram os sintomas e sinais do BAVT - tontura, onda a em canhão e bradicardia. O eletrocardiograma confirmou o BAVT e a rotação do eixo elétrico à esquerda. A presença de disfunção ventricular direita e IC levaram ao tratamento medicamentoso, compensando o paciente em classe funcional I da NYHA. A cirurgia do reparo ou troca valvar tricúspide é situação excepcional.

As manifestações clínicas mais comuns do contusio cordis são a dor torácica decorrente do traumatismo local e a síncope8. O quadro clínico pode ser variado com relatos de sintomas inespecíficos como lipotimia, náuseas e vômitos. A avaliação clínica à procura de IT e o estudo eletrocardiográfico e ecocardiográfico devem ser utilizados na suspeição de lesão tricúspide ou do sistema de condução. A IC, neste caso, só foi detectada após a sua descompensação, que pode ter sido agravada pela bradicardia secundária ao BAVT. O fato de o paciente não ter procurado acompanhamento, seja pelo marca-passo (no mínimo duas consultas/ano), seja pela piora do quadro clínico fez com que muitos dos sinais e sintomas clássicos da IC se manifestassem, o que é comum em pacientes carentes de informação e de acesso ao sistema de saúde.

Existem vários relatos de casos de laceração cardíaca ou de arritmias causadas por traumatismo torácico, cujo diagnóstico é despercebido no primeiro atendimento. Exames ajudam na investigação complementar nesses casos, como eletrocardiograma basal, sistema Holter, ecocardiograma, a ressonância nuclear magnética, e quando precocemente diagnosticada, podem evitar uma fatalidade.

REFERÊNCIAS

Reiter TT, Ritter OO, Beer MM, Petritsch BB. An unusual finding after resuscitation: contusio cordis. Clin Res Cardiol. 2012;101(9):760-767.
Krasna MJ, Flancbaum L. Bluntcardiac trauma: clinical manifestations and management. Semin Thorac Cardiovasc Surg. 1992;4:195-202.
Maron BJ, Estes NA. Medical Progress: commotio cordis. N Engl J Med. 2010;362(10):917-927.
Alawi AA, Madias C, Supran S, Mark SL. Marked Variability in Susceptibility to Ventricular Fibrillation in an Experimental Commotio Cordis Model. Circulation. 2010;122:2499-2504.
Barry J, Maron BJ, Doerer JJ, Haas TS, Estes NA, Hodges JS et al. Commotio Cordis and the Epidemiology of Sudden Death in Competitive Lacrosse. Pediatrics. 2009;124;966-971.
Maenza RL, Seaberg D, D'Amico F. A meta-analysis of blunt cardiac trauma: ending myocardial confusion. Am J Emerg Med. 1996;14:237- 241.
Thakar S, Chandra P, Pednekar M, Kabalkin C, Shani J. Complete heart block following a blow on the chest by a soccer ball: a rare manifestation of commotio cordis. Ann Noninvasive Electrocardiol. 2012;17(3):280-282.
Prenger KB, Ophuis TO, van Dantzig JM. Traumatic tricuspid valve rupture with luxation of the heart. Ann Thorac Surg. 1995;59:1524-1527.
Emmert MY, Pretre R, Suendermann S, Weber B, Bettex DA, Hoerstrup SP et al. Severe traumatic tricuspid insufficiency detected 10 years after blunt chest trauma. Clin Res Cardiol. 2011;100(2):177-179.
Werne C, Sagraves SG, Costa C. Mitral and tricuspid valve rupture from blunt chest trauma sustained during motor vehicle collision. J Trauma. 1989;29:113-115.