Compartilhar

Copa do Mundo de 2018: gol das empresas privadas de saneamento no Brasil

Copa do Mundo de 2018: gol das empresas privadas de saneamento no Brasil

Autores:

Ana Cristina Augusto de Sousa

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos de Saúde Pública

versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464

Cad. Saúde Pública vol.34 no.11 Rio de Janeiro 2018 Epub 08-Nov-2018

http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00144418

Durante os jogos da Copa do Mundo de 2018 , o Governo Federal encaminhou uma Medida Provisória (MP) que alterou substancialmente o marco regulatório do saneamento básico no Brasil (MP nº 844/2018). Segundo o texto, o objetivo da medida “é aprimorar as condições estruturais do saneamento básico no país” 1. Ela foi assinada poucas horas antes do jogo do Brasil, no limite do prazo imposto pela legislação eleitoral e deverá ser votada em até 45 dias.

A reação uniu na oposição os mais diversos grupos de interesse do setor. Estados e municípios prometeram contestar judicialmente a iniciativa, por acreditar que ela fere a Constituição e também por não terem sido devidamente consultados. De todas as entidades representativas do setor, apenas as dos grupos privados pareceram felizes com ela. A Associação Brasileira de Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (ABCON) 2 e a Confederação Nacional da Indústria (CNI) 3 saíram em defesa da MP por avaliarem que ela promove a expansão da participação privada no setor. Elas afirmaram que pretendem contribuir para que o Legislativo “aprove o melhor texto possível para a sociedade e o setor produtivo3. Por essa razão, a MP tem sido chamada de MP da Privatização do Saneamento.

As principais mudanças propostas pela MP dizem respeito à regulação do setor e aos contratos de concessão dos serviços. Em síntese, ela define a Agência Nacional de Águas (ANA) como o órgão responsável pela normatização da regulação dos serviços de saneamento básico de todo o país, elimina a obrigatoriedade do plano municipal de saneamento como condição para a contratação de empresas de prestação de serviços, e a mais polêmica delas: ela passa a aplicar aos contratos de programa (instrumento de colaboração federativa assinado entre dois entes ou entre entes e consórcio público para a execução de serviço público comum) as cláusulas essenciais dos contratos de concessão previstos na Lei nº 8.987/1995. Vejamos o que isso representa.

Agência Nacional de Águas

Atualmente, a regulação dos serviços públicos de saneamento cabe aos titulares dos serviços, os municípios, podendo ser delegada a agências que se destinem a esta finalidade. Com a MP, a ANA passa a instituir normas de referência nacionais para a regulação da prestação dos serviços públicos de saneamento básico por seus titulares e suas entidades reguladoras e fiscalizadoras responsáveis, vinculando o acesso dos recursos federais ao cumprimento das diretrizes e normas editadas pela ANA (MP, Art. 4-B). Críticos dessa proposta questionam que a centralização das normas de regulação de um setor operado em escalas e modelos tão diversificados constitui um desafio para uma agência federal que não tem perfil institucional para exercer tal tarefa, e que teria possíveis conflitos de interesse na missão de operar outros usos da água. A ANA não se manifestou ainda a respeito do tema, especialmente no que tange ao desafio colocado. Mas a existência de um ente federal com a atribuição de harmonizar as atividades regulatórias do setor parece positiva no sentido de conferir um parâmetro nacional às práticas regulatórias existentes. De todo modo, uma pesquisa inédita sobre o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) saneamento mostrou que os problemas de execução financeira dos empreendimentos durante o programa deveram-se não propriamente à regulação setorial por parte da União, mas sim à insuficiência das condições técnicas e administrativas dos proponentes (municípios e estados) para lidar com os requisitos básicos que a legislação pertinente aos empreendimentos impôs 4. A pesquisa mostrou que, no atual arranjo federativo brasileiro disposto, é preciso investir mais na capacitação e treinamento das burocracias locais para a gestão dos recursos disponíveis do que na supervisão federal dos agentes reguladores dos serviços, o que a MP em questão não toca.

Planos de saneamento

A adoção de estudos técnicos pela MP em substituição aos planos municipais de saneamento (Art. 11, §5º), sob a alegação de que simplificaria a burocracia envolvida na contratação de prestadores de serviços, desconsidera os motivos pelos quais esta exigência foi contemplada na Lei original. O plano de saneamento é um importante instrumento de planejamento das cidades, que deve integrar os serviços de saneamento aos demais vetores da expansão urbana. O argumento de que o investimento nos serviços não ocorre porque, via de regra, os municípios não dispõem do plano e mascaram a realidade e invertem a lógica dos fatos. Na verdade, a inexistência dos planos decorre da ausência de planejamento por parte das autoridades municipais, que deveriam fazê-lo, mas não fazem 5. É também um reflexo da fragilidade da governança dos entes locais para com os serviços em questão, que a obrigatoriedade contida na Lei visava a sanar. O desenvolvimento mínimo de governança setorial dos municípios é essencial para fortalecê-lo na sua relação com os prestadores e concessionários dos serviços públicos em prol da população, e este foi o objetivo da Lei ao estipular a sua obrigatoriedade. Essa substituição parece ter vindo apenas para facilitar a mera assinatura de contratos, sem a preocupação de estimular o engajamento do titular com o planejamento local, que é essencial.

Obrigatoriedade das licitações para concessões instituídas por contratos de programa

A principal polêmica da MP diz respeito à alteração no processo de assinatura dos chamados contratos de programa entre municípios e empresas de água e esgoto. Atualmente, as prefeituras podem firmar contratos diretamente com as concessionárias estaduais e renovar automaticamente sem a necessidade de abrir concorrência pública, quando a concessão dos serviços pressupuser colaboração federativa, como é o caso do saneamento 6. A nova MP exigirá agora que todos os municípios passem a realizar uma manifestação prévia de interesse antes de fechar ou renovar qualquer procedimento ligado à concessão dos serviços (Art. 10A). Caso outra prestadora manifeste o interesse pela exploração dos mesmos, a prefeitura será obrigada a abrir uma licitação, conforme exige a Lei nº 8.987/1995.

A mudança atende à reivindicação das empresas privadas do setor, que criticam o atual modelo, alegando que as prefeituras tendem a optar pelos contratos de programas com as empresas públicas por comodidade e falta de estrutura para realizar as licitações. O problema disso é que com a mudança o chamamento público certamente atrairá interessados nos municípios superavitários, mas não nos deficitários. Operadoras públicas e privadas concorrerão pelos primeiros e os últimos provavelmente recairão sobre municípios e estados, que recorrerão às companhias estaduais ou deverão custear os serviços com os já escassos recursos fiscais. No caso das companhias estaduais, a saída dos municípios mais ricos acarretará o fracionamento dos seus contratos, que poderá inviabilizar o mecanismo dos subsídios cruzados, utilizado para estender a cobertura aos mais pobres na prestação regionalizada. A MP não prevê uma alternativa para esses municípios, que respondem pela imensa maioria no país. Além disso, o estímulo à individualização das concessões dificulta a cooperação de uma administração com a outra, que leva ao ganho para o conjunto da população.

Os estados e as entidades ligadas às empresas estaduais têm mesmo motivos para se preocupar. Assim como os municípios. A MP prevê que, em caso de privatização das empresas estaduais, os contratos com os municípios sejam mantidos normalmente, mesmo com a mudança de controle da empresa, o que antes não era permitido pela legislação. Antes da MP, os contratos automaticamente eram extintos, pois os municípios precisam anuir quanto ao novo prestador e regras do contrato. Essa norma representava um risco alto para os investidores privados, que viam nela o perigo de um esvaziamento da operação da companhia a ser adquirida. Com a nova regra, se o município não concordar em permanecer, o preço de sair é herdar a dívida dos investimentos não amortizados realizados pela antiga empresa. Curiosamente, em caso de anuência com o novo prestador, não há menção sobre a indenização das companhias estaduais. É uma transação que garante todas as vantagens para a concessionária seguinte, que herda estrutura e clientela, sem os riscos do negócio. Essa foi a alteração mais importante que a MP providenciou para destravar o programa de privatizações em saneamento, lançado pelo Governo Federal em 2016, sem o sucesso esperado.

As vozes que se levantam contra a MP têm razão ao exigir que alterações desse porte não sejam efetuadas por MP, o que parece ter justamente o objetivo de escapar à discussão pública e ao veto dos principais interessados. Nos regimes democráticos, mudanças dessa ordem devem ser feitas por meio de Projeto de Lei, no qual os parlamentares, as entidades e os trabalhadores ligados ao saneamento possam contribuir para a construção coletiva da proposta.

A resposta do Governo Federal é ignorar o clamor e insistir no discurso que atribui os problemas estruturais do setor de saneamento ao financiamento dos serviços. Ele alega que a crise fiscal e a falta de recursos públicos para os grandes investimentos requeridos pelo setor não permitem enfrentar o imenso déficit de acesso, que o Estado não conseguirá suprir essa demanda de investimento sem a ajuda da iniciativa privada para encaminhar uma solução, e por aí vai. Mas o fato é que o financiamento é apenas um dos obstáculos do setor, mas não o mais importante deles 7. E a iniciativa privada já dispunha de fartos dispositivos legais antes para participar do setor no Brasil (Art. 175 da Constituição Federal; Lei de Concessões; PPPs).

As alterações propostas pela MP mostram que ela não toca nas questões de fundo e estruturais que afligem o setor de saneamento no Brasil. Ela estimula a privatização nos municípios, ao promover licitações individualizadas, sem que os titulares estejam previamente fortalecidos para encarar o poder econômico dos grupos privados na exploração de serviços públicos de caráter vital para as populações. Ela penaliza também o titular que se manifestar contra a permanência em um contrato que ele não concorde, numa eventual troca de controle da concessionária (privatização). Ela tem a força de constranger um município ideologicamente contrário à privatização a contratar uma empresa privada que eventualmente saia vencedora de uma licitação obrigatória, a mesma licitação que o próprio setor privado percebe ser evitada por muitos municípios que aderem aos contratos de programa, por não se julgarem capazes de realizar. Ela impõe custos altíssimos de reversão num futuro próximo, tanto financeiros quanto humanos, pois podem vir a acarretar o aumento de tarifas e muito provavelmente a exclusão de parcelas consideráveis da população ao acesso, como em diversas cidades do mundo em que isto ocorreu. Na Bolívia, a elevação do custo da água levou a violentos levantes populares. No Chile, a uma dramática escassez para o consumo humano em favor do agronegócio 8. Por que seria diferente no Brasil, onde pobreza e desigualdade caminham de mãos dadas com um agronegócio que desmata, escraviza e polui?

A estratégia principal da MP é garantir um negócio não somente livre de riscos, mas livre de quaisquer ônus e concorrência para os grupos privados interessados na exploração do setor no Brasil. Esses, se interessados em assumir as empresas estaduais de saneamento, poderão herdar os clientes sem o ônus das dívidas ainda não amortizadas. Caso não assumam, terão concorrentes com contratos fracionados e atividade inviabilizada. A medida não aprimora as condições estruturais do setor de saneamento como se afirma, mas sim da atuação dos grupos privados de saneamento no Brasil.

REFERÊNCIAS

1. Brasil. Medida Provisória nº 844, de 6 de julho de 2018. Atualiza o marco legal do saneamento básico e altera a Lei nº 9.984, de 17 de julho de 2000, para atribuir à Agência Nacional de Águas competência para editar normas de referência nacionais sobre o serviço de saneamento, a Lei nº 10.768, de 19 de novembro de 2003, para alterar as atribuições do cargo de Especialista em Recursos Hídricos, e a Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007, para aprimorar as condições estruturais do saneamento básico no País. Diário Oficial da União 2018; 9 jul.
2. Associação Brasileira de Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto. Por que a MP que moderniza o marco regulatório do saneamento é tão importante para o Brasil? (acessado em 15/Jul/2018).
3. Confederação Nacional da Indústria. Novo marco legal do saneamento contribui para a universalização dos serviços, avalia CNI. (acessado em 13/Jul/2018).
4. Sousa ACA. Desafios estruturais dos programas de saneamento urbano no Brasil. In: Figueiredo GLA, Martins CHG, Akerman M, organizadores. Grupos em situação de vulnerabilidade: em cena na luta por visibilidade no espaço urbano. São Paulo: Editora Hucitec; no prelo.
5. Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental, Ministério das Cidades. Panorama dos planos municipais de saneamento básico no Brasil. (acessado em 02/Fev/2017).
6. Brasil. Lei nº 11.107, de 6 de abril de 2005. Dispõe sobre normas gerais de contratação de consórcios públicos e dá outras providências. Diário Oficial da União 2005; 7 abr.
7. Sousa ACA, Barrocas PRG. Privatizar ou não privatizar: eis a questão. A única questão? A reedição da agenda liberal para o saneamento básico no Brasil. Cad Saúde Pública 2017; 33:e00048917.
8. Satoko K, Olivier P. Reclaiming public services: how cities and citizens are turning back privatisation. (acessado em 23/Jul/2017).