versão impressa ISSN 1677-5449versão On-line ISSN 1677-7301
J. vasc. bras. vol.14 no.4 Porto Alegre out./dez. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/1677-5449.01115
A Doença ou Síndrome de Behçet (DB) é uma doença inflamatória sistêmica caracterizada por úlceras urogenitais e orais recorrentes, uveítes e lesões cutâneas1. O envolvimento arterial ocorre em torno de 8% dos casos, sendo mais comuns as degenerações aneurismáticas do que as doenças oclusivas2,3. Foram relatados aneurismas em várias localizações arteriais, como: arco aórtico e artéria pulmonar4, tronco celíaco5,6, artéria mesentérica superior7, carótidas8, tronco braquiocefálico9, aorta abdominal10-12, artéria ilíaca13, artéria femoral profunda14 e artéria poplítea15. O acometimento aneurismático do segmento aórtico toracoabdominal foi pouco descrito11,13,16, assim como os pseudoaneurismas aórticos2,16. Assim, descrevemos o presente caso que foi tratado por meio da técnica endovascular com sucesso.
Paciente do sexo feminino, 36 anos de idade, negra, em tratamento de DB com reumatologista havia 20 anos e em uso contínuo de prednisona 20 mg/dia. Apresentava ainda hipertensão arterial sistêmica controlada, negava tabagismo, diabetes mellitus, infecções e traumas. Os sinais e sintomas apresentados pela paciente, característicos da DB, eram o histórico de úlceras orais dolorosas e úlceras e pústulas genitais recorrentes. Negava uveíte ou lesões cutâneas. Chegou ao Hospital referindo dor abdominal em região entre o mesogástrio e o epigástrio, iniciada havia cerca de dois meses, com piora progressiva ao longo do tempo. Quatro dias antes da internação, passou por atendimento médico em sua cidade, sendo submetida à Tomografia Computadorizada (TC) sem contraste, que mostrou a presença de um aneurisma toracoabdominal. Foi, então, encaminhada ao nosso Serviço.
No exame físico de admissão, apresentava-se hemodinamicamente estável, mucosa corada, com pressão arterial de 180/100 mmHg em ambos os membros superiores, com todos os pulsos periféricos simétricos. Ausculta cardíaca com bulhas normofonéticas e ausculta pulmonar sem ruídos adventícios. Não apresentava nenhum déficit neurológico. Exames laboratoriais de rotina, sem alterações. Foi realizada a angioTC contrastada, que evidenciou três dilatações saculares com 0,9 cm de diâmetro na porção proximal da aorta torácica (2,0 cm), aorta torácica descendente (1,0 cm) e aorta abdominal (1,0 cm). Apresentava também um pseudoaneurisma iniciando-se na transição toracoabdominal e chegando até 1,0 cm acima do tronco celíaco, com 7,0 × 7,8 cm de diâmetro, trombo mural e luz arterial comprimida (0,9 cm de diâmetro) (Figuras 1, 2 e 3).
Figura 2 Corte de angiotomografia computadorizada mostrando pseudoaneurisma aórtico toracoabdominal.
Figura 3 Corte angiotomográfico mostrando imagens de aneurismas saculares pequenos em porção inicial da aorta torácica.
Diante da dor abdominal importante com irradiação lombar e de um quadro de pseudoaneurisma aórtico espontâneo sintomático, foi indicado tratamento em regime de urgência. Havia opção de tratamento cirúrgico aberto ou endovascular, com uma endoprótese de aorta disponível no Serviço.
Com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido devidamente preenchido, a paciente foi submetida à correção endovascular do pseudoaneurisma de aorta. Por meio de acesso cirúrgico da artéria femoral comum direita e da artéria braquial esquerda, foi realizada aortografia com cateter de pigtail centimetrado (acesso femoral). Outro cateter pigtail foi introduzido na aorta torácica descendente pelo acesso braquial. Foi implantada a endoprótese disponível no Serviço ‒ extensão proximal tubular abdominal AFX 95X25MM – ENDOLOGIX®. A arteriografia de controle mostrou sucesso no implante da endoprótese, sem vazamentos. A paciente foi encaminhada à UTI, permanecendo sob cuidados intensivos por dois dias. Ao longo deste período, foi extubada precocemente, não necessitou de drogas vasoativas e não apresentou déficit neurológico. Recebeu alta hospitalar seis dias após o procedimento cirúrgico, com imagem de angioTC evidenciando sucesso na correção endovascular do pseudoaneurisma (Figuras 4 e 5). Em seguimento de 24 meses, a paciente foi acompanhada por meio de consultas ambulatoriais de rotina e TC de tórax, sem intercorrências.
O diagnóstico de DB é feito pelos sintomas clínicos1, segundo os critérios estabelecidos pelo Grupo Internacional de Estudos da DB (Tabela 1). Esta paciente tinha diagnóstico e tratamento estabelecidos por reumatologista, e apresentava, como critérios diagnósticos, apenas as ulcerações orais e genitais recorrentes (um critério maior + um critério menor). As imagens dos aneurismas saculares múltiplos, em angioTC de nosso Serviço, reforçaram esse diagnóstico.
Tabela 1 Critérios internacionais para a classificação da Doença de Behçet.
Critério | Características |
---|---|
Critério maior (obrigatório) | |
Ulceração oral recorrente | Grande, pequena ou herpetiforme* †, 3 vezes em um período de 12 meses |
Critérios menores | |
Ulceração genital recorrente | Escarificação aftosa |
Lesão no olho | Uveítes anteriores/posteriores no vítreo (lâmpada de fenda), vasculite retinal |
Lesões cutâneas | Eritema nodoso* †, Pseudofoliculite, Lesões papulopustulares, Nódulos acneiformes* (após a adolescência, sem uso de corticosteroide) |
Teste positivo de patergia | 24-48 horas*, inserção oblíqua de agulha calibre 20 |
*Observado pelo médico.
†Relato confiável feito pelo paciente.
O envolvimento vascular na DB é estimado entre 7 e 29% dos casos, podendo acometer tanto o território arterial quanto venoso17,18. A artéria mais comumente acometida na DB é a aorta, seguida pelas artérias femorais e pulmonares4, sendo 65% por degenerações aneurismáticas e 35% por doenças oclusivas19. A aorta abdominal é o segmento aórtico mais acometido, sendo os aneurismas do tipo sacular os mais frequentes nos pacientes com DB20. A fisiopatologia do envolvimento vascular está relacionada com uma vasculite que determina oclusão da vasa vasorum e necrose da parede vascular, provocando seu enfraquecimento, que podem levar a sua dilatação ou oclusão21. Estudos imuno-histoquímicos confirmam presença de complemento e de imunoglobulinas nas camadas média e íntima das artérias10. A oclusão da vasa vasorum e/ou o hematoma intramural seriam os principais fatores apontados neste tipo de alteração aórtica22. O pseudoaneurisma do presente caso foi, possivelmente, formado por rotura de pequeno aneurisma sacular local, com o extravasamento sanguíneo contido. Na literatura, são raros os relatos de pseudoaneurismas espontâneos de aorta2, sendo mais comuns os anastomóticos após reconstruções aórticas abertas23. O tratamento clínico da DB consiste na terapia com corticoides e/ou imunossupressores, que podem proteger o paciente da agressão arterial inflamatória. No entanto, a paciente desenvolveu complicações vasculares a despeito de tratamento prolongado com corticoides. Com o desenvolvimento da cirurgia endovascular, esta passou a ser preferencial no tratamento cirúrgico nos casos de aneurismas arteriais, incluindo-se os relacionados com a DB2,10,24. Entretanto, não há consenso na literatura sobre esta indicação. A presença de sintomas importantes, que não tiveram remissão com tratamento clínico, e o risco de ruptura foram determinantes para indicação de tratamento em regime de urgência. Neste caso, foi utilizada extensão longa tubular proximal de endoprótese abdominal devido à falta de dimensões adequadas de endopróteses torácicas disponíveis no momento do tratamento. O principal inconveniente deste seria o comprimento mais curto do sistema de entrega destas extensões proximais abdominais, o qual não foi determinante, neste caso, devido ao fato de a paciente ser brevilínea. O comprimento deste sistema de entrega foi adequado e a endoprótese adaptou-se bem à aorta toracoabdominal, uma vez que o seu comprimento e o diâmetro estavam de acordo com a necessidade.
Rotineiramente, antiplaquetários devem ser prescritos após o tratamento endovascular dos aneurismas aórticos25. Por outro lado, o controle clínico da DB dependerá do grau de atividade da doença de base e da adequação nas doses dos corticoides e imunossupressores. Alguns autores sugerem manutenção rotineira de imunossupressão para se evitar a recorrência de pseudoaneurismas nas extremidades das endopróteses2,23.
As alterações aneurismáticas e pseudoaneurismáticas arteriais, como parte da DB, não são frequentes, mas, com base nos relatos da literatura, o tratamento endovascular tende a ser uma opção cada vez mais utilizada. O tratamento endovascular foi, neste caso, uma opção adequada e eficaz.