versão impressa ISSN 1808-8694
Braz. j. otorhinolaryngol. vol.80 no.3 São Paulo maio/jun. 2014
http://dx.doi.org/10.1016/j.bjorl.2013.11.001
A síndrome da apneia obstrutiva do sono (SAOS) é caracterizada por pausas respiratórias durante o sono, microdespertares e sonolência diurna. Esses sintomas são provocados por episódios repetidos de obstrução em um ou mais níveis da via aérea superior durante o sono.1
Esta síndrome apresenta grande prevalência na população adulta, afetando 4% dos homens e 2% das mulheres.1 Os pacientes afetados têm maior risco de doenças cardiovasculares, de acidentes com veículos automotores devido à sonolência diurna e podem apresentar uma diminuição significativa da função neurocognitiva.2
A patogênese da SAOS tem sido investigada com diversos métodos estruturais e fisiológicos.3 O aumento do colapso faríngeo tem sido postulado como fator para a fisiopatologia da SAOS. Além disso, sabe-se que anormalidades no esqueleto craniofacial e características do tecido mole estão envolvidas com a patência das vias aéreas superiores. No entanto, não está claro o quanto a morfologia do esqueleto craniofacial e as características do tecido mole podem afetar no colapso da faringe e contribuir com os episódios de apneia. Portanto, o significado etiológico da relação do esqueleto craniofacial e tecidos moles da orofaringe na SAOS ainda é controverso.3 - 8
Nesse contexto, a cefalometria e a tomografia computadorizada 3D podem avaliar as anormalidades do esqueleto craniofacial e as características dos tecidos moles da orofaringe. Embora a cefalometria apresente uma visão limitada a duas dimensões, é considerado um método mais simples, acessível e com menor exposição à radiação quando comparada com a tomografia computadorizada.3 - 6
Uma meta-análise de estudos cefalométricos, descrita por Miles et al.,9 demonstrou as variáveis mais relevantes que podem estar associadas ao desenvolvimento e gravidade da SAOS: o ângulo formado entre a base anterior do crânio e a maxila (SNA), o ângulo formado entre a base anterior do crânio e a mandíbula (SNB), o espaço faríngeo posterior (PAS), o comprimento do palato mole (PNS-P) e a distância do hioide perpendicularmente ao plano mandibular (MP-H). Outros estudos também têm ressaltado a importância destas variáveis cefalométricas na apneia do sono.10 - 12
Muitos estudos têm usado as variáveis cefalométricas, usualmente associadas com dados da avaliação endoscópica, para avaliar o desenvolvimento da SAOS. Embora desordens no esqueleto facial e alterações no tecido mole da orofaringe sejam descritas em pacientes com SAOS, a relação direta não está clara e ainda é questionado se a análise dessas variáveis morfológicas da cefalometria pode ser uma ferramenta na avaliação de pacientes com SAOS.13
A melhor elucidação da fisiopatologia e etiologia da SAOS é de extrema importância para a indicação do tratamento adequado. Diversas terapias têm sido propostas e estudadas, como aparelho intraoral, cirurgia esquelética e cirurgia de tecidos moles, além do aparelho com pressão positiva contínua.14 , 15 Nesse contexto, a cefalometria pode ser uma ferramenta interessante na escolha da terapia, pois pode contribuir para a escolha entre as cirurgias esqueléticas.16 - 18
Este estudo teve como objetivo avaliar possíveis correlações entre dados cefalométricos e a gravidade do índice de apneia-hipopneia do sono (IAH).
Foi realiado um estudo retrospectivo transversal, no qual foram avaliados prontuários de 381 pacientes atendidos no Ambulatório de Distúrbio do Sono da Disciplina de Otorrinolaringologia, Cabeça e Pescoço de um hospital universitário terciário, no período de junho de 2007 a maio de 2012. Foram analisados os seguintes parâmetros: sexo, idade, IAH, índice de massa corpórea (IMC) e dados cefalométricos. Do total de selecionados, foram excluídos aqueles com dados incompletos, sem cefalometria e menores de 18 anos, permanecendo no estudo um total de 96 pacientes.
Os pacientes foram divididos em quatro grupos, de acordo com o IAH evidenciado pelo exame de polissonografia: roncopatia (grupo 1), SAOS leve (grupo 2), SAOS moderada (grupo 3) e SAOS severa (grupo 4).
A telerradiografia (fig. 1) foi considerada adequada se realizada na norma lateral, com a cabeça em posição natural e com contraste de bário na base da língua. Na análise cefalométrica, foram analisadas as seguintes medidas:
Figura 1 Telerradiografia. Análise cefalométrica, norma lateral, com contraste de bário na base da língua.
SNA: ângulo formado pela união dos pontos sela, násio e ponto A. Este ângulo mostra a posição da maxila em relação à base anterior do crânio. Define, pois, o grau de protusão ou retrusão da maxila no sentido anteroposterior. Valor de referência (VR): 82º.19
SNB: ângulo formado pela união dos pontos sela, násio e ponto B. A amplitude deste ângulo indica a posição da mandíbula em relação à base anterior do crânio. Demonstra, assim, o grau de protusão ou retrusão da mandíbula no sentido anteroposterior. Valor de referência (VR): 80º.19
PAS: espaço faríngeo inferior relacionado ao espaço aéreo retrolingual. Distância linear entre um ponto sobre a base da língua e outro ponto sobre a parede posterior da faringe, ambos determinados pela extensão da linha B-Go. Valor de referência (VR): Homem - 19 mm/ Mulher - 15 mm.19
Os dados foram submetidos à análise estatística pelo SAS System 9.2, sendo utilizado o teste estatístico de Tukey para a comparação das médias das variáveis entre os grupos, sendo considerado significante o p < 0,05.
Esta pesquisa foi previamente aceita pelo Comitê de Ética da instituição sob o número de 83946.
Foram avaliados 96 pacientes, sendo 45 homens e 51 mulheres, com média de idade de 50,3 anos (entre 18 e 72 anos). Ao todo, 11 pacientes eram portadores de roncopatia, 20 SAOS leve, 26 SAOS moderada e 39 SAOS grave. A proporção homem/mulher permaneceu homogênea nos subgrupos.
O IMC médio de todos os grupos foi 28,8 Kg/m2, sendo que a distribuição entre os grupos apresentou-se da seguinte forma: roncopatia IMC médio: 25,04 Kg/m2; SAOS leve IMC médio: 28,9 Kg/m2; SAOS moderada IMC médio: 28,36 Kg/m2; SAOS grave IMC médio: 30,2 Kg/m2.
Os valores do SNA, do SNB e do PAS não apresentaram correlação estatisticamente significante com o IAH. Os valores do PNS-P, apesar de maiores nos portadores de apneia moderada e severa do que nos de roncopatia e SAOS leve, não apresentaram significância estatística. A análise referente ao MP-H, por outro lado, apresentou valores de comprimento maiores nos grupos 3 e 4 que nos grupos 1 e 2, sendo estes dados estatisticamente significantes (p < 0,01) (tabela 1).
Tabela 1 Média dos valores cefalométricos por grupo
Grupo | 1 | 2 | 3 | 4 | Valor de p |
---|---|---|---|---|---|
SNA | 82,5 | 84,5 | 84,8 | 82,7 | 0,185 |
SNB | 79,1 | 80,3 | 81,8 | 79,4 | 0,211 |
PAS | 8,63 | 10,0 | 9,9 | 9,9 | 0,731 |
PNS-P | 39,3 | 38,9 | 39,4 | 40,7 | 0,472 |
MP-H | 21,3 | 19,3 | 23,2 | 25,5 | 0,0041 |
SNA e SNB, valores em graus
PAS, PNS-P e MP-H, valores em milímetros.
Na literatura, diversos fatores preditores da SAOS têm sido encontrados e estudados, entre eles: obesidade (aumento do índice de massa corpórea), idade avançada, aumento da circunferência cervical e abdominal, além da disposição craniofacial e dos tecidos moles da faringe.3 , 19 , 20
Esses fatores predisponentes e/ou etiológicos da SAOS têm sido extensivamente investigados através da polissonografia, nasofibroscopia flexível, sonoendoscopia e cefalometria. Entretanto, mesmo com a utilização de todos os métodos disponíveis, a identificação com precisão do local da obstrução da via aérea é limitada devido à dificuldade de reproduzir o estado de sono em pacientes acordados.21
Sabe-se que a patência da via aérea é influenciada pela disposição craniofacial, características do tecido mole da faringe e pela contração muscular faríngea. Há duas hipóteses que tentam explicar o colapso da via aérea superior: hipótese neural, que implica na redução da atividade do músculo dilatador da orofaringe, e a teoria anatômica, que explica o colapso pela disposição da anatomia óssea e do tecido mole quando relaxado durante o sono. Além disso, sabe-se que o depósito de gordura cervical pode, também, contribuir para a redução da patência da via aérea.22
Dessa forma, as disposições do esqueleto craniofacial e do tecido mole da faringe podem contribuir para a colapsibilidade da via aérea.
Em uma análise exaustiva da literatura, Miles et al. 9 descreveram que esta é severamente deficiente em encontrar uma associação direta e causal entre a disposição das estruturas craniofaciais e a presença e gravidade da SAOS. Nesse contexto, numerosos estudos têm tentado estabelecer uma relação direta entre medidas cefalométricas e presença e gravidade da SAOS.3 - 8 Sforza et al. 22 demonstraram que as variáveis cefalométricas que mediam o comprimento do palato mole (PNS-P) e a distância do hioide perpendicularmente ao plano mandibular (MP-H) associavam-se com a presença de SAOS. Riha et al.23 descreveram que a posição do hioide quando inferiorizada, com o aumento do MP-H, se relacionou com a presença da SAOS. Partinen et al.24 também encontraram relação doa espaço faríngeo posterior (PAS) e a distância do hioide perpendicularmente ao plano mandibular (MP-H) com a SAOS.
Embora todos esses estudos tenham demonstrado associação entre a variação das medidas cefalométricas e a presença da SAOS, poucos estudos correlacionaram tais variáveis com a gravidade desta doença, como fizemos nesse estudo. Além disso, ressaltamos que este tema ainda é pouco abordado na literatura nacional.
Em nossa série, as variáveis da cefalometria analisadas foram SNA, SNB, PAS, PNS-P e MP-H. Os valores do SNA, do SNB, do PAS e do PNS-P não apresentaram correlação estatisticamente significante com o IAH. Em concordância com os estudos supracitados, a variável MP-H, em nosso estudo, foi a única que apresentou correlação com a gravidade da SAOS. Portanto, uma atenção deve ser dada ao aumento da distância do osso hioide (MP-H), pois a musculatura da língua é parcialmente ancorada a ele e sua altura pode determinar a disposição dos tecidos mole da orofaringe.25 Pode-se pensar que esse achado seria mais consistente se fosse associado com a diminuição do espaço faríngeo posterior (PAS), o que não ocorreu em nossa amostra. Porém, nossos dados foram colhidos de telerradiografias realizadas durante a vigília e, uma vez que a localização do osso hioide mais rebaixada que o normal leva à base da língua para uma posição mais verticalizada, este fato poderia facilitar o colapso faringeano, que ocorre somente durante o sono.
Por outro lado, sabe-se que essa variável (MP-H) ainda é questionada na literatura, devido à sua variabilidade de medição, pois o desequilíbrio entre a ação do músculo supra-hioide e infra-hioide e a deposição de gordura cervical podem influenciar na medição da altura do osso hioide.22
Nesse paradigma, há muitas possíveis explicações para a dificuldade de se associar diretamente as variáveis cefalométricas com a gravidade da SAOS. Primeiramente, a cefalometria é obtida com o indivíduo acordado e em pé, o que não reflete as mudanças que ocorrem durante o sono com o indivíduo deitado e com a musculatura faríngea relaxada. Segundo, a cefalometria oferece informações da disposição anteroposterior da faringe, mas não da disposição laterolateral, e estudos recentes com ressonância magnética demonstraram a redução do espaço faríngeo lateral em pacientes com SAOS, em comparação com pacientes apenas roncadores. Por fim, é possível que a configuração da via aérea superior e sua disposição elíptica possa predispor ao colapso faríngeo durante o sono, mais que o tamanho da via aérea.22 - 24
Desta forma, nosso estudo sugere que, embora possa haver uma predisposição cefalométrica reconhecível para a doença respiratória do sono, esta é apenas uma faceta das muitas outras envolvidas na fisiopatologia da SAOS. Estudos futuros devem ser realizados para obtenção de mais informações sobre a influência das variáveis anatômicas na colapsibilidade da via aérea superior.
As variáveis cefalométricas são ferramentas úteis para o entendimento da SAOS. A MP-H, distância do hioide perpendicularmente ao plano mandibular, apresentou correlação estatisticamente significativa com o IAH.