versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.30 no.1 São Paulo 2018 Epub 05-Mar-2018
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20182017056
Doença do Neurônio Motor (DNM) é a denominação utilizada para caracterizar síndromes clínicas nas quais ocorre o acometimento dos neurônios motores inferiores e/ou superiores, como a Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), Atrofia Muscular Progressiva (AMP), Esclerose Lateral Primária (ELP) e Paralisia Bulbar Progressiva (PBP)(1,2).
Estas síndromes podem causar disfagia acometendo até 85% dos indivíduos com ELA(3). A disfagia orofaríngea nessa população está relacionada à degeneração progressiva da passagem corticonuclear e/ou dos núcleos motores dos pares cranianos IX, X, XI e XII, causando alterações secundárias na contração faringolaríngea e atrofia dos nervos vago e glossofaríngeo, levando à dificuldade na movimentação do véu palatino e diminuição da elevação laríngea, por serem responsáveis pela inervação motora e sensitiva da laringe e da faringe(4). Além disso, a disfagia orofaríngea é marcada nesta população por alteração na fase oral da deglutição, que se justifica pela fraqueza, fasciculação e atrofia de língua, determinando assim incoordenação oral com prejuízo na alimentação(4).
A disfagia orofaríngea pode ocorrer independentemente do tipo de início da doença, seja ela bulbar ou espinal, sendo descrita a presença de penetração laríngea e aspiração laringotraqueal em portadores de DNM(3-6).
A busca por indicadores de progressão da DNM é frequente(7). Atualmente existem escalas que auxiliam no monitoramento dos sintomas destes pacientes e fornecem parâmetros específicos para cada função motora.
Considerando que, ao longo da evolução da DNM, as funções bulbares, como fala, salivação e deglutição, bem como a função motora em geral, são prejudicadas devido ao acometimento dos nervos cranianos, é possível que indivíduos com a função bulbar comprometida apresentem disfagia mais grave com presença de penetração e aspiração laringotraqueal à medida que a doença progride.
Identificar o momento da doença no qual os indivíduos com DNM apresentam maior risco para penetração e aspiração laringotraqueal pode auxiliar na definição de condutas terapêuticas, bem como auxiliar no manejo dos sintomas, evitando complicações nutricionais e pulmonares, e melhorando a qualidade de vida.
Ante o exposto, este trabalho teve por objetivo descrever e correlacionar a funcionalidade bulbar com penetração e aspiração laringotraqueal na DNM.
Este estudo é parte do projeto “Relação entre Desempenho Motor Global e Disfagia Orofaríngea na Esclerose Lateral Amiotrófica”, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (CAAE 53663516.0.3001.5415).
Todos os participantes e/ou seus representantes assinaram o Termo de Consentimento Livre Esclarecido, após receberem as devidas orientações e esclarecimentos sobre os procedimentos a serem realizados, fornecendo concordância expressa.
Participaram do estudo 18 indivíduos, sendo 14 homens e 4 mulheres, com faixa etária variando de 31 a 87 anos e média de 55,66 anos de idade, independentemente do tipo e tempo da doença. Todos foram diagnosticados com DNM por meio de exames clínicos. Dos indivíduos incluídos no estudo, 83,33% (N=15) apresentaram o diagnóstico de ELA; 11,11% (N=2), ELP; e 5,55%, AMP (N=1). O tempo de diagnóstico da doença variou de seis meses a 10 anos.
Todos os participantes ou seus familiares responderam a escala Amyotrophic Lateral Sclerosis Functional Rating Scale – Revised (ALSFRS-R/BR) traduzida e validada para o português do Brasil(8), em sala reservada, a uma fonoaudióloga que leu as opções para o paciente e/ou cuidador, anotou as respostas e, posteriormente, realizou a análise dos resultados da escala, assegurando a padronização da avaliação.
A ALSFRS-R/BR avalia a função bulbar (fala, salivação e deglutição), a função motora fina (escrita, corte de alimentos/manipulação de utensílios, vestir-se e higiene), a função motora grossa (virar-se na cama/ajustar a roupa de cama e subir escadas) e a função respiratória (ortopneia e insuficiência respiratória) com escore de zero a quatro para cada item e um escore total de zero (incapacidade) até a pontuação máxima de 48 pontos (funcionalidade normal). No entanto, neste estudo, foram utilizados apenas os itens referentes à função bulbar (fala, salivação e deglutição) com escores que variaram de zero (incapacidade) a 12 (funcionalidade normal).
Foi realizada avaliação objetiva da deglutição por meio de Videofluoroscopia de deglutição no setor de Radiologia do Hospital. Os exames foram realizados por um médico radiologista, uma técnica em radiologia e uma fonoaudióloga, todos com experiência na realização do procedimento. Os indivíduos permaneceram sentados e as imagens foram feitas na posição lateral, com limite superior e inferior abrangendo desde a cavidade oral até o esôfago, sendo o limite anterior marcado pelos lábios, a parede da faringe posteriormente, nasofaringe superiormente e esôfago cervical inferiormente(9). Foi utilizado o aparelho de raios x telecomandado Flexavision, modelo HB da Shimadzu Corporation, acoplado a conversor de vídeo.
O protocolo de execução do exame iniciou-se com a padronização do preparo das consistências. Para a consistência pastosa fina: 40 ml de água + 15 ml de Sulfato de Bário (BaSO4) + 1 medida de espessante alimentar; para consistência líquida espessada: 20 ml de água + 20 ml de Sulfato de Bário (BaSO4). Todas as consistências foram oferecidas em volume de cinco mililitros cada, em colher de plástico, seguindo três ofertas de cinco mililitros primeiramente na consistência pastosa, seguida de líquida espessada e líquida rala, sendo a oferta interrompida na presença de aspiração laringotraqueal. Para este estudo, o protocolo de análise dos sinais videofluoroscópicos utilizou apenas a Penetration-Aspiration Scale(10), que possui oito níveis que variam de ausência de penetração laríngea (nível 1) à presença de aspiração sem resposta do paciente, ou seja, aspiração silente (nível 8).
O estudo de correlação entre os parâmetros bulbares da ALSFRS-R/BR e os níveis da escala de penetração e aspiração foi realizado por indivíduo em cada consistência de alimento, sendo os resultados submetidos à análise estatística por meio do teste de Correlação de Pearson, adotando-se o nível de significância de 95% (p≤0,05).
A Tabela 1 apresenta a classificação dos indivíduos com DNM segundo os níveis de Penetration-Aspiration Scale para cada consistência de alimento. Não foi observada aspiração laringotraqueal em nenhum dos indivíduos dessa amostra.
Tabela 1 Nível de classificação da Penetration Aspiration Scale (PAS) dos indivíduos com DNM por consistência de alimento
Indivíduo | Pastosa |
Líquida Espessada |
Líquida Rala |
---|---|---|---|
1 | 5 | 2 | 2 |
2 | 1 | 4 | _ |
3 | 1 | 1 | 1 |
4 | 1 | 1 | 1 |
5 | 1 | 2 | 2 |
6 | 3 | 3 | 2 |
7 | 1 | 1 | 1 |
8 | 1 | 1 | 1 |
9 | 1 | 1 | 1 |
10 | 1 | 1 | 1 |
11 | 1 | _ | 1 |
12 | 2 | 2 | - |
13 | 1 | 1 | 1 |
14 | 1 | 1 | 1 |
15 | 1 | 1 | 1 |
16 | 2 | 2 | 3 |
17 | 1 | 1 | 3 |
18 | 1 | 3 | 3 |
Os escores da ALSFRS-R/BR bulbar estão representados na Figura 1 e variaram de um a 12, com menos indivíduos próximos à baixa funcionalidade ou incapacidade e mais indivíduos próximos à melhor funcionalidade.
A Tabela 2 apresenta a correlação entre a funcionalidade bulbar e a penetração laríngea para todas as consistências de alimento, sendo que houve correlação negativa em todas as consistências de alimento, porém significante somente para a consistência pastosa (p=0,041).
Tabela 2 Correlação entre funcionalidade bulbar e penetração laríngea por consistência de alimento
Funcionalidade Bulbar | Penetração Laríngea Pastoso | Penetração Laríngea Líquido Espessado | Penetração Laríngea Líquido Ralo | |||
---|---|---|---|---|---|---|
Ausente | Presente | Ausente | Presente | Ausente | Presente | |
1 | 1 | 1 | 1 | |||
2 | 1 | 1 | ||||
5 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 |
6 | 1 | 1 | 1 | |||
7 | 1 | 1 | 1 | |||
8 | 2 | 2 | 2 | |||
9 | 2 | 1 | 2 | 1 | 2 | 1 |
10 | 2 | 1 | 1 | 1 | ||
11 | 4 | 3 | 1 | 3 | 1 | |
12 | 1 | 1 | 1 | |||
Teste de Correlação de Pearson |
-0,487 | -0,442 | -0,460 | |||
p-valor | 0,041* | 0,076 | 0,073 |
*Valor significante
A Figura 2 apresenta a distribuição, por indivíduo, para funcionalidade bulbar e presença de penetração laríngea.
A DNM é fortemente marcada por comprometer, de forma significativa, o quadro motor global e orofaríngeo, acarretando múltiplos prejuízos à condição de funcionalidade geral bem como para a segurança e eficiência da alimentação dessa população. Além disso, há vários fatores de risco que potencializam o comprometimento da qualidade de vida dos portadores de DNM, sendo a presença de disfagia orofaríngea um desses marcadores de risco.
De acordo com a literatura, além de ser uma comorbidade frequente na DNM, a disfagia acomete as fases oral e faríngea, independentemente da consistência do alimento(11), porém os pacientes com início bulbar apresentam comprometimento da deglutição na fase inicial da doença(12).
A presença de disfagia orofaríngea nas distintas doenças de base, incluindo-se as DNM, pode contribuir para o desenvolvimento de complicações pulmonares e, portanto, a presença de penetração laríngea e aspiração laringotraqueal tornou-se um dos mais relevantes parâmetros a serem investigados no contexto da avaliação clínica e objetiva da disfagia orofaríngea. No entanto, embora a literatura relate com frequência a presença desse sinal na DNM(4,6), neste estudo e amostra, não foram encontrados indivíduos com aspiração laringotraqueal. Porém, a presença de aspiração laringotraqueal na DNM está intimamente relacionada com o prejuízo que a doença acarreta às funções orofaríngeas e em determinado momento de sua progressão. Algumas vezes, dependendo do tipo da DNM, o quadro orofaríngeo está gravemente comprometido desde o início da doença, ou se agrava com sua progressão. Além disso, estudo com a DNM mostrou que a presença de aspiração laringotraqueal nessa população está relacionada com o início dos sintomas bulbares há mais de 24 meses(12) e a amostra aqui estudada era heterogênea do ponto de vista bulbar.
Por outro lado, foram encontrados distintos níveis de penetração laríngea nos indivíduos com DNM em todas as consistências de alimento, o que evidencia o comprometimento presente na fase oral e faríngea da deglutição. Os distintos mecanismos fisiopatológicos orofaríngeos acometidos pela DNM têm seu início com a presente fraqueza na musculatura da língua, que ocasiona dificuldades na contenção, formação e propulsão do bolo alimentar, impactando a resposta faríngea e desencadeando escape oral posterior em todas as consistências de alimento, porém principalmente em líquidos(12,13-15). Outro aspecto fisiopatológico comum na DNM e que contribui para a presença de penetração laríngea e risco de aspiração laringotraqueal são os resíduos faríngeos, determinados por fraca propulsão oral e fraqueza na contração faríngea(16).
Quanto à presença de correlação negativa entre a funcionalidade bulbar e a presença de penetração laríngea na consistência pastosa, ou seja, quanto menor a funcionalidade bulbar maior foi o nível de penetração laríngea. Outros estudos também evidenciaram esse achado, avaliando a funcionalidade por meio da ALSFRS-R-BR ou outras escalas funcionais(4,17).Esse resultado sugere que o parâmetro bulbar da ALSFRS-R/BR pode ser utilizado como um instrumento para sugerir risco de penetração laríngea na DNM corroborando a literatura(12).
Os parâmetros bulbares da escala ALSFRS-R encontrados nos pacientes com DNM podem auxiliar a predizer risco de penetração laringotraqueal, auxiliando no diagnóstico precoce da disfagia orofaríngea.
Os níveis de penetração laríngea na DNM variaram em todas as consistências de alimento, bem como a funcionalidade bulbar variou na população estudada. Além disso, houve correlação negativa na consistência pastosa de alimento, quanto menor foi a funcionalidade bulbar na DNM maior foi o nível de penetração laríngea.