versão On-line ISSN 2317-6431
Audiol., Commun. Res. vol.20 no.1 São Paulo jan./mar. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/S2317-64312015000100001465
A autoavaliação vocal tem se tornado uma ferramenta muito utilizada na clínica fonoaudiológica, tanto na avaliação, quanto durante o acompanhamento do paciente disfônico(1-5). Em geral, a autoavaliação é feita por meio de protocolos internacionais, traduzidos e validados para a língua portuguesa, que passam por um rigoroso processo durante seu desenvolvimento e que, portanto, são sensíveis e confiáveis em seu propósito(2).
A Escala de Sintomas Vocais (ESV) é o primeiro protocolo validado para a língua portuguesa que avalia, além do impacto de uma disfonia na vida do indivíduo, a sintomatologia vocal referida por ele(6). Foi validada no Brasil em 2011 e, por este motivo, pesquisas utilizando o instrumento têm publicação recente(7,8). Trata-se de um protocolo que permite que o clínico conheça exatamente as queixas do paciente, de forma objetiva e padronizada. A ESV é composta por 30 questões sobre os sintomas referentes à limitação vocal (Domínio Limitação), aos aspectos físicos relacionados à disfonia (Domínio Físico) e ao impacto psicológico e emocional ocasionado por um possível problema de voz (Domínio Emocional). O instrumento permite, ainda, que seja calculado um escore geral, que corresponde à junção dos três domínios supracitados.
Tão importante quanto a autoavaliação do paciente, é a avaliação clínica da voz. Quanto aos dados perceptivo-auditivos, o protocolo CAPE-V tem sido amplamente utilizado na clínica e nas pesquisas em voz(9,10), por permitir que sejam feitas análises não só relacionadas à fonte glótica, como na GRBASI, mas também aos aspectos de filtro, além de envolver uma grande quantidade de parâmetros vocais. Nesse instrumento, as amostras sustentadas e encadeadas são analisadas em conjunto e é possível a marcação de parâmetros adicionais, caso o clínico julgue necessário. A marcação de cada um dos parâmetros é feita em escala analógico-visual (EAV) de 100 mm, sendo que, quanto mais próximo à pontuação máxima, maior é o desvio vocal(10).
Embora já existam muitas pesquisas relacionando a autoavaliação vocal do paciente à avaliação clínica da voz, na maior parte das vezes elas contemplam os instrumentos validados há mais tempo, como o QVV, o IDV e o PPAV(11-13). Especificamente sobre a ESV, as produções com esse objetivo ainda são escassas. Além disso, não foram localizados trabalhos que mencionem a correlação da autoavaliação com a análise perceptivo-auditiva feita por meio do CAPE-V.
Diante do exposto, o objetivo deste estudo foi correlacionar os sintomas vocais aos dados perceptivo-auditivos da voz em indivíduos disfônicos.
Trata-se de estudo observacional, analítico, transversal e retrospectivo, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital de Clínicas (HC) da Universidade Federal do Paraná (UFPR), sob o número 575.722. Foram analisados 30 prontuários referentes à totalidade de indivíduos encaminhados para o serviço de Fonoaudiologia vinculado ao Serviço de Endoscopia Per Oral do HC/UFPR entre os meses de maio e agosto de 2013. Os prontuários pertenciam a indivíduos com queixas vocais, sendo 22 mulheres e oito homens, com média de idade de 51,8 anos (+15,5), nível socioeconômico baixo, alfabetizados, com patologias laríngeas diversas e graus de comprometimento vocal variados.
Foram coletados os seguintes dados dos prontuários:
- Escores obtidos pelo indivíduo na ESV (domínios: limitação, físico, emocional e total). O domínio limitação tem pontuação máxima de 60 pontos, o físico de 32 pontos e o emocional de 28 pontos. A pontuação total máxima da ESV é de 120 pontos, sendo que, quanto maior o valor apresentado pelo indivíduo, maior a sintomatologia relacionada à voz.
- Valores obtidos nas EAV do protocolo CAPE-V, para cada um dos parâmetros predeterminados no instrumento (grau geral do desvio vocal, rugosidade, soprosidade, tensão, pitch, loudness e ressonância). No próprio protocolo, já havia a marcação realizada pela avaliadora, que variava de 0 a 100 mm, sendo que, quanto mais próximo de 100, maior o desvio vocal.
Todas as variáveis utilizadas nesta pesquisa são contínuas e, por isso, para análise estatística, foi utilizado o teste de Correlação de Pearson, que investiga se à medida que uma variável aumenta a outra também aumenta (correlação positiva), ou diminui (correlação negativa). Considerou-se o coeficiente de correlação de 1,0 como indicativo de correlação linear perfeita; entre 0,80 e 0,99, forte; 0,60 a 0,79, moderada; 0,40 a 0,59, fraca e menor que 0,40, ínfima para as correlações positivas e negativas.
Foram obtidos os coeficientes de correlação para o cruzamento entre os escores obtidos na ESV e os resultados da avaliação perceptivo-auditiva por meio do CAPE-V. Observou-se correlações positivas consideradas boas apenas para os cruzamentos entre os escores médios do domínio Limitação da ESV x grau geral do desvio vocal (coeficiente de correlação de 0,619) e escores médios do domínio total da ESV x grau geral do desvio vocal (coeficiente de correlação de 0,645). Os parâmetros soprosidade e tensão foram os que tiveram piores correlações com os escores da ESV (todas consideradas ínfimas) (Tabela 1).
Tabela 1 Correlação entre escores obtidos na ESV e resultados da avaliação perceptivo-auditiva por meio da escala CAPE-V
Variáveis | GG do desvio | Rugosidade | Soprosidade | Tensão | Pitch | Loudness | Ressonância | |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
ESV Limitação | Coef. Corr. | 0,619 | 0,532 | 0,263 | 0,326 | 0,478 | 0,556 | 0,369 |
Valor de p | <0,001* | 0,002* | 0,161 | 0,078 | 0,007* | 0,001* | 0,045* | |
ESV Emocional | Coef. Corr. | 0,509 | 0,435 | 0,057 | 0,274 | 0,407 | 0,484 | 0,381 |
Valor de p | 0,004* | 0,016* | 0,763 | 0,142 | 0,026* | 0,007* | 0,007* | |
ESV Físico | Coef. Corr. | 0,346 | 0,319 | -0,008 | 0,225 | 0,116 | 0,155 | 0,26 |
Valor de p | 0,061 | 0,086 | 0,966 | 0,231 | 0,541 | 0,413 | 0,01* | |
ESV Total | Coef. Corr. | 0,645 | 0,566 | 0,195 | 0,358 | 0,467 | 0,558 | 0,335 |
Valor de p | <0,001* | 0,001* | 0,302 | 0,052 | 0,009* | 0,001* | 0,016* |
*Valores significativos (p<0,05) – Teste de Correlação de Pearson Legenda: GG = grau geral; ESV = escala de sintomas vocais; Coef. Corr. = coeficiente de correlação
Atualmente, a avaliação perceptivo-auditiva e a autoavaliação vocal têm a mesma importância na clínica vocal, uma vez que a análise conjunta das duas permitirá um bom raciocínio do profissional a respeito do prognóstico e do processo terapêutico do paciente(6). Identificar possíveis relações entre esses dois tipos de avaliação pode contribuir para a compreensão da complexidade de fatores envolvidos no desencadeamento e manutenção de uma disfonia.
As correlações positivas consideradas boas aconteceram entre dois domínios da ESV (limitação e total) e o grau geral da disfonia, que corresponde à junção dos outros parâmetros perceptivo-auditivos avaliados. O domínio referente à limitação contempla sintomas relacionados à funcionalidade, ou seja, às restrições de voz e comunicação causadas pela disfonia. Neste domínio, são questionados sintomas como rouquidão, perda da voz, voz fraca/baixa, falhas na voz e cansaço ao falar(8). Por este motivo, esperava-se haver correlações mais fortes entre seus resultados e os parâmetros avaliados isoladamente (rugosidade, soprosidade, loudness, etc.), o que não ocorreu. No entanto, a boa correlação com o grau geral da disfonia indica que este é o domínio que mais se associa à avaliação perceptivo-auditiva realizada pelo clínico.
Os resultados aqui obtidos confirmam pesquisa internacional recente, que teve como objetivo correlacionar os dados de autoavaliação vocal, por meio do instrumento IDV e avaliação clínica da voz(14). Os autores concluíram que, embora haja algumas correlações significativas entre autoavaliação e parâmetros acústicos, os dados de autoavaliação são diferentes dos obtidos na avaliação perceptivo-auditiva da voz.
No presente estudo, os demais domínios da ESV, que contemplam as limitações emocionais e físicas não tiveram boa correlação com nenhum dos parâmetros perceptivo-auditivos. Os sintomas relacionados ao impacto emocional do distúrbio vocal dependem de uma série de fatores sociodemográficos e ocupacionais e, por isso, podem não ter relação direta com a avaliação do clínico(3,14). Já os sintomas físicos, em geral, contemplam aspectos orgânicos, sem relação direta com a produção vocal (dor na garganta, sensação de nódulos inchados no pescoço, tosses/pigarros, entre outros) e, por este motivo, esperava-se que também não teriam correlação direta com a avaliação perceptivo-auditiva.
Chamou a atenção o fato de os parâmetros perceptivo-auditivos soprosidade e tensão terem tido correlação praticamente insignificante com todos os escores da ESV, mesmo os relacionados ao domínio Limitação, que tem maior relação com a avaliação clínica. Acredita-se que outras características vocais possam ter se sobreposto a eles na avaliação perceptivo-auditiva, uma vez que é comum, nos casos de disfonia, as vozes serem consideradas predominantemente rugosas, por exemplo. Neste sentido, é possível que haja maior impacto na autoavaliação do sujeito (que em geral não sabe identificar exatamente o tipo de alteração auditiva que observa em sua própria voz) do que na avaliação do especialista (que avalia cada um dos aspectos individualmente).
Os parâmetros rugosidade, pitch e loudness tiveram correlação regular com os sintomas vocais, provavelmente pelo fato de estas características serem mais facilmente observadas/percebidas por leigos. A ampliação do número de sujeitos em um próximo estudo permitirá melhor inferência a respeito da correlação entre esses três parâmetros e os resultados da ESV. Nas condições atuais, pode-se estar diante de um erro estatístico do tipo II, aceitando-se a hipótese nula (H0 - que no presente trabalho seria a não correlação entre as variáveis), quando, na verdade, ela é falsa e poderia ser comprovada por meio de modificações amostrais ou de outras tomadas de decisões referentes aos aspectos metodológicos.
A relação entre os sintomas vocais e as características perceptivo-auditivas da voz não é direta. No entanto, os sintomas relacionados à funcionalidade, ou seja, às limitações vocais e de comunicação, parecem ter maior correlação com a avaliação clínica, especificamente com o parâmetro grau geral do desvio vocal.