versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.24 no.3 Rio de Janeiro mar. 2019
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018243.35182016
O excesso de peso é um agravo nutricional de determinação multidimensional. Aspectos individuais relacionados ao seu desenvolvimento, como a qualidade nutricional dos alimentos consumidos e o gasto energético são fortemente influenciados por realidades domiciliares, como insegurança alimentar vivenciada pelas famílias, e tipo de alimentos disponíveis para o consumo1. Por sua vez, as situações sociais dos domicílios são distintas dependendo do território que está inserido, seja o bairro, município, unidades da federação (UF) ou país2.
A compreensão do aumento das prevalências de excesso de peso parte da investigação de um conjunto de determinantes ou condicionantes que influenciam a situação de saúde e nutrição de um grupo populacional3. Para tanto, a utilização dos conceitos de espaço e território pensados por Milton Santos4 permite ampliar a atenção dos determinantes e condicionantes do estado nutricional. Entende-se que a apropriação social do espaço produz territórios e territorialidades propícias ao crescimento das prevalências de determinadas enfermidades, dentre essas os desvios de estado nutricional, como o excesso de peso. Por tanto, as prevalências de excesso de peso nos territórios com suas dinâmicas sociais podem ser diferentes e precisam ser investigadas para a implementação de políticas e ações de alimentação e nutrição mais específicas e resolutivas. Nesse sentido, a utilização de análise espacial de dados em saúde5 parece ser uma importante estratégia para compreensão da dinâmica das prevalências de excesso de peso nos territórios.
Josué de Castro em sua obra Geografia da Fome, já descreveu diferentes realidades alimentares e nutricionais no território brasileiro, no qual dividiu o Brasil em cinco áreas, sendo duas de fome endêmica (Amazônica e Nordeste Açucareiro), uma de fome epidêmica (Sertão Nordestino) e duas de subnutrição (Centro-Oeste e Extremo Sul)6. Sua descrição trouxe contribuições importantes para se pensar dimensões que interferem sobre as práticas alimentares no território brasileiro, como as realidades sociais de cada território e seus modelos produtivos, de geração de renda e desigualdade social. Porém, essa análise territorial foi desenvolvida em um período no qual a desnutrição proteico-calórica e a fome eram os principais problemas nutricionais brasileiros. Após esse estudo, poucos analisaram a distribuição espacial dos problemas antropométricos no território brasileiro, tendo a maioria investigado a distribuição espacial de déficits nutricionais em faixas etárias específicas7-11.
Verifica-se no Brasil, um processo de transição nutricional com redução das altas prevalências de desnutrição e crescentes proporções de excesso de peso e obesidade nos diferentes grupos etários e faixas de renda12. Essas modificações estão associadas ao consumo ou disponibilidade de produtos alimentícios com pior perfil nutricional e maior densidade energética13. Outro aspecto a ser destacado constitui-se nas elevadas prevalências de domicílios em situação de insegurança alimentar14. Apesar do paradoxo, há uma relação entre excesso de peso e insegurança alimentar15.
No Brasil, a insegurança alimentar é avaliada em nível populacional pela Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), que é um instrumento adaptado16 e o mais utilizado para identificação direta desse problema. Trata-se de uma escala psicométrica do acesso familiar aos alimentos. Essa mensura o fenômeno diretamente a partir da experiência de insegurança alimentar vivenciada e percebida pelas pessoas afetadas, captando a dificuldade de acesso aos alimentos e a dimensão psicossocial da insegurança alimentar17.
No contexto de elevada proporção de excesso de peso e de insegurança alimentar, o processamento de alimentos é um aspecto importante a ser considerado. Os alimentos podem ser classificados por tipo de processamento: in natura ou minimamente processados, àqueles que não sofrem qualquer alteração após deixar a natureza ou foram submetidos apenas a processos como limpeza moagem, secagem e outros processos que não envolvam agregação de sal, açúcar, óleos, gorduras ou outras substâncias ao alimento original, como arroz, feijão, carnes, frutas e leite; ingredientes culinários processados que são produtos extraídos de alimentos que servem para temperar, cozinhar e criar preparações culinárias, como óleos, manteiga, açúcar e sal; alimentos processados, que são fabricados pela indústria com adição de ingredientes culinários processados, por exemplo, vegetais em salmoura, frutas em caldas e peixes enlatados; e produtos alimentícios ultraprocessados que são formulações industriais feitas principalmente por substâncias derivadas de alimentos ou não, como refrigerantes, salsichas, barras de cereal18. Estudos recentes alertam acerca do consumo de produtos alimentícios ultraprocessados e o aumento das proporções de distúrbios nutricionais19, e maior risco para o desenvolvimento de doenças crônicas não transmissíveis20. Esse tipo de produto alimentício afeta, também, o desenvolvimento social, cultural, econômico e ambiental de um território, especialmente quando representam parte importante e crescente do abastecimento de alimentos nos países21,22.
Todas essas características alimentares e nutricionais da população são acompanhadas pelo envelhecimento populacional e maiores prevalências de doenças crônicas não transmissíveis. Entretanto, essas transições demográficas e epidemiológicas ocorrem nos espaços geográficos brasileiros de formas diferentes, normalmente influenciadas pelo desenvolvimento social dos territórios22,23.
Acredita-se que existe uma correlação espacial entre o excesso de peso, a insegurança alimentar, a qualidade dos alimentos consumidos e o desenvolvimento social nos diferentes espaços geográficos brasileiros. Portanto, o objetivo deste estudo foi analisar a distribuição espacial das prevalências de excesso de peso e sua correlação com a insegurança alimentar, a aquisição de alimentos por tipo de processamento e Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), nas unidades da federação brasileiras.
Trata-se de um estudo ecológico, exploratório e analítico, cujas unidades de análise de área foram constituídas pelas 27 UF brasileiras. Foram utilizados dois inquéritos populacionais do IBGE: a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2008-200924,25 e a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2008-200914, suplemento Segurança Alimentar. As informações de desenvolvimento social desses territórios foram coletadas no Atlas Brasil, sistematizado pelo Programa das Nações Unidades para o Desenvolvimento (PNUD), de 201026.
Em relação ao plano amostral da POF e da PNAD, esses inquéritos utilizaram procedimentos complexos de amostragem envolvendo estratificação geográfica e estatística do conjunto de setores censitários do país, sorteio de conglomerados de setores dentro de estratos e sorteio de domicílios dentro dos setores24,25. Apesar do plano amostral diferente para ambas as pesquisas, cada domicílio representa um determinado número de domicílios particulares permanentes da população (universo), na qual esta amostra foi selecionada. Especificamente para a POF, a cada domicílio da amostra está associado um peso amostral ou fator de expansão ajustado, que possibilitou a obtenção de estimativas das prevalências de excesso de peso para o universo da pesquisa.
As prevalências de excesso de peso (variável dependente) foram obtidas a partir de dados de estado nutricional antropométrico de peso e altura (comprimento e estatura). Estes dados foram submetidos a um tratamento de crítica e imputação pelo próprio IBGE, para correção dos erros de resposta relacionados a valores rejeitados na etapa de crítica e de valores ausentes. No presente estudo, optou-se em utilizar os dados das variáveis de peso e estatura já imputados. A população de estudo correspondeu a 190.159 pessoas, da qual foram excluídos os dados antropométricos de 1.698 gestantes, totalizando 188.461 indivíduos24.
Para classificação do estado nutricional antropométrico, considerou-se as seguintes faixas etárias: 0 a 4 anos, 11 meses e 29 dias; 5 a 9 anos, 11 meses e 29 dias; 10 a 19 anos, 11 meses e 29 dias; 20 a 59 anos, 11 meses e 29 dias; e maiores de 60 anos. Para todas as faixas etárias, o IMC foi calculado pela fórmula [peso (kg) / altura2 (m)]. Em relação às crianças e adolescentes, a definição de excesso de peso foi realizada a partir das variáveis peso, estatura, idade e sexo, processadas nos softwares WHO Anthro27 e WHO AnthroPlus28, respectivamente, para obtenção dos escores z de cada criança ou adolescente, tomando-se como referência o padrão de crescimento proposto pela WHO29para o Índice de massa corporal-para-idade (IMC/I). O excesso de peso foi definido a partir de pontos de corte correspondente a faixa etária de 0 a 9 anos, 11 meses e 29 dias (IMC/I ≥ +2DP) e de 10 a 19 anos, 11 meses e 29 dias (IMC/I ≥ +1DP)30. Para os indivíduos adultos (20 a 59 anos, 11 meses e 29 dias) e idosos (≥ 60 anos) o excesso de peso foi classificado quando o Índice de Massa Corporal (IMC) eram iguais ou superiores a 25,0kg/m2 e 27,0 kg/m2, respectivamente30.
Foram utilizadas quatro variáveis independentes que representaram as dimensões de análise: insegurança alimentar, qualidade dos alimentos disponíveis para o consumo no domicílio e desenvolvimento social. A insegurança alimentar foi medida pela prevalência de domicílios em situação e insegurança alimentar (%) provenientes de publicações da PNAD 2008-200914. Essas proporções representaram a soma das categorias de insegurança alimentar domiciliar (leve, moderada e grave) geradas pela versão longa da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) com 24 questões adaptada para população brasileira14. A qualidade dos alimentos disponíveis para o consumo no domicílio foi mensurada por proporções de alimentos in natura ou minimamente processados (%) e proporções de produtos alimentícios ultraprocessados (%) per capita adquiridos para consumo alimentar domiciliar. Essas variáveis foram obtidas conforme a categorização de alimentos por tipo de processamento utilizado no Guia Alimentar para População Brasileira18. Os dados originaram medidas agregadas de aquisição alimentar domiciliar21 per capta em quilogramas/anuais de 312 itens da POF2008-200925, que foram coletados do Sistema IBGE de Recuperação Automática - SIDRA. A variável de desenvolvimento social utilizada foi o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) estimado para cada UF, disponíveis no PNUD26. O IDH representa a média aritmética simples de três subíndices referentes às dimensões longevidade, educação e renda.
Para análise descritiva dos dados utilizou-se o software Statistical Package for the Social Science (SPSS). Inicialmente foi realizada estatística descritiva com frequências, intervalo de confiança (95%) e efeito do desenho para as prevalências de excesso de peso. Para as variáveis insegurança alimentar e qualidade de alimentos disponíveis no domicílio, que já foram coletadas agregadas, foram descritas as frequências em percentual. A variável IDH foi apresentada pelos respectivos valores da média aritmética referente aos três subíndices. Todas as variáveis foram descritas por UF e Brasil.
Utilizaram-se técnicas de análise espacial de dados de área a partir das malhas digitais brasileiras por UF, com o uso dois softwares de Sistemas de Informação Geográficas (SIG). Em todas as análises as variáveis incluídas foram de natureza contínua. A análise espacial foi realizada pelo software Terra View 4.1.0 (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais; http://www.dpi.inpe.br/terraview). Para a estimativa da autocorrelação espacial utilizou-se o Índice de Moran Global (IMG), que varia entre -1 e +1, e fornece sua significância estatística (valor de p). Após essa análise foi avaliada a presença de aglomerados espaciais (clusters), a partir do Local Indicators of Spatial Association (LISA). Para tanto, foram construídos os BoxMap relativos a variável dependente e cada uma das variáveis independentes. Os cartogramas mostram o delineamento de aglomerados espaciais de quatro tipos: alto-alto (regiões formadas por UF com altas frequências da variável, circundada por regiões de altas frequências); baixo-baixo (regiões formadas por UF com baixas frequências da variável, circundada por regiões de baixas frequências), alto-baixo (regiões formadas por UF com altas frequências da variável, circundada por regiões de baixas frequências), e baixo-alto (regiões formadas por UF com baixas frequências da variável, circundada por regiões de alta frequência). Além disso, para a variável dependente foi construído o MoranMap que representa os aglomerados espaciais univariados com significância estatística (p < 0,05)31.
O software GeoDa 0.9.9.10 (Spatial Analysis Laboratory, University of Illinois, Urbana-Champaign, Estados Unidos) foi utilizado para proceder a análise bivariada LISA para avaliação da correlação espacial entre a variável dependente (prevalência de excesso de peso) e cada uma das variáveis independentes. Assim, pode-se visualizar a associação linear entre uma variável xk no local i, xk i e a lag espacial correspondente para a outra variável WyiI (lkl = xk ‘Wyi/n). Essa análise gera o Índice de Moral Local (IML) e os mapas de correlação espacial (LISA)31. Nesse caso de correlação espacial bivariada, a interpretação dos aglomerados espaciais (clusters) pode ser de cinco tipos: não significativo (territórios que não entraram na formação de clusters, devido suas diferenças não terem sido significativas); alto-alto (regiões formadas por UF com altas frequências da variável dependente, altas frequências da variável independente); baixo-baixo (regiões formadas por UF com baixas frequências da variável dependente, baixas frequências da variável independente), alto-baixo (regiões formadas por UF com altas frequências da variável dependente, baixas frequências da variável independente), e baixo-alto (regiões formadas por UF com baixas frequências da variável dependente, altas frequências da variável independente). Os valores de correlação gerados pelos IMG e IML podem ser avaliados como positivos ou negativos, e como fracos (< 0,3), moderados (0,3-0,7) ou fortes (>0,7), como utilizado na avaliação da correlação de Pearson.
Todos os dados utilizados são secundários, sem identificação pessoal e de domínio público, por isso o estudo não foi submetido à aprovação do comitê de ética em pesquisa.
No Brasil, a prevalência de excesso de peso foi de 34,2%, sendo as maiores prevalências encontradas nas regiões Norte e Nordeste, nos estados do Rio Grande do Norte (34,1%) e de Pernambuco (34,0%), e as menores, no Maranhão (23,9%) e no Acre (24,4%). Enquanto que nas regiões Sul, Sudeste e Centro Oeste, as maiores prevalências de excesso de peso foram nos estados do Rio Grande do Sul (43,2%) e São Paulo (39,3%), e as menores, no Espírito Santo (30,9%) e Goiás (31,2%) (Tabela 1). As prevalências de excesso de peso por UF apresentaram significativa e moderada autocorrelação espacial (IMG = 0,581), com indicativo de aglomerados espaciais do tipo baixo-baixo formado pela maior parte dos estados das regiões Norte e Nordeste, e aglomerados do tipo alto-alto formado pela maior parte dos estados das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste (Figura 1a). O MoranMap, que apresenta os aglomerados espaciais com significância estatística, destaca dois clusters, um do tipo baixo-baixo, formado por Piauí, Maranhão, Tocantins e Pará, e um alto-alto, formado por Minas Gerais, São Paulo, Santa Catarina, Paraná e Mato Grosso do Sul (Figura 1b).
Tabela 1 Prevalências *(%) de excesso de peso, por Unidades da Federação, Brasil, 2008-2009.
UF | Prevalência de Excesso de Peso (%) | IC (95%) | Efeito do desenho |
---|---|---|---|
Brasil | 34,2 | 33,8-34,6 | 2,61 |
Rio Grande do Norte | 34,1 | 32,6-35,6 | 0,86 |
Pernambuco | 34,0 | 32,8-35,3 | 1,49 |
Paraíba | 31,9 | 30,5-33,4 | 0,92 |
Rondônia | 31,5 | 29,7-33,4 | 0,67 |
Amapá | 30,3 | 28,4-32,4 | 0,34 |
Ceará | 29,9 | 28,5-31,3 | 1,85 |
Pará | 29,7 | 28,5-31,0 | 1,21 |
Amazonas | 29,3 | 28,0-30,7 | 0,82 |
Sergipe | 28,6 | 27,2-30,1 | 0,56 |
Bahia | 28,5 | 27,4-29,6 | 1,87 |
Alagoas | 27,9 | 26,8-29,0 | 0,53 |
Tocantins | 27,2 | 25,8-28,7 | 0,38 |
Roraima | 26,9 | 25,0-28,9 | 0,23 |
Piauí | 25,2 | 24,1-26,3 | 0,57 |
Acre | 24,4 | 22,9-26,0 | 0,26 |
Maranhão | 23,9 | 22,8-25,0 | 1,01 |
Rio Grande do Sul | 43,2 | 41,7-44,7 | 2,19 |
São Paulo | 39,3 | 38,0-40,5 | 6,06 |
Paraná | 38,3 | 36,9-39,7 | 2,06 |
Rio de Janeiro | 37,6 | 36,0-39,3 | 4,14 |
Santa Catarina | 37,3 | 35,9-38,7 | 1,26 |
Mato Grosso do Sul | 36,1 | 34,8-37,4 | 0,47 |
Distrito Federal | 33,3 | 31,2-35,4 | 1,28 |
Minas Gerais | 33,2 | 32,3-34,1 | 1,73 |
Mato Grosso | 32,3 | 31,1-33,5 | 0,57 |
Goiás | 31,2 | 30,0-32,4 | 1,02 |
Espírito Santo | 30,9 | 29,9-31,9 | 0,43 |
Fonte: POF 2008-2009
* Percentuais ponderados a partir da estratificação geográfica e socioeconômica da amostra da POF 2008-2009.
IMG: Índice de Moran Global
Figura 1 Distribuição espacial dos clusters não significativos (BoxMap) e significativos (MoranMap) das prevalências de excesso de peso, por Unidades da Federação, Brasil, 2008-2009.
Em relação ao IDH, nas regiões Norte e Nordeste, os valores concentraram-se entre 0,631 (Alagoas) e 0,708 (Amapá); enquanto que nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste os valores foram entre 0,725 (Mato Grosso) e 0,824 (Distrito Federal) (Tabela 2). A análise de autocorrelação espacial do IDH foi moderada e significativa (IMG 0,596). Verificou-se a presença de aglomerados espaciais formados pela maior parte dos estados do Norte e Nordeste, que foram do tipo baixo-baixo. Já a maior parte das UF do Sudeste, Centro-Oeste e Sul formaram aglomerados espaciais do tipo alto-alto para este índice (Figura 2a). No que se refere à análise de correlação espacial (bivariada), pode-se observar moderadas correlações positivas entre as prevalências de excesso de peso e IDH (IML = 0,605), ou seja, as UF com maiores prevalências de excesso de peso possuíam maiores valores de IDH, e aquelas com menores valores de IDH, menores prevalências de excesso de peso (Figura 3a).
Tabela 2 Prevalência de domicílios em situação de insegurança alimentar*, Índice de Desenvolvimento Humano**, proporção de aquisição domiciliar de alimentos in natura ou minimamente processados*** e de produtos alimentícios ultraprocessados***, por Unidades da Federação, Brasil.
UF | IDH | Domicílios em insegurança alimentar | Aquisição domiciliar de alimentos in natura ou minimamente processados | Aquisição domiciliar de produtos alimentícios ultraprocessados |
---|---|---|---|---|
| ||||
(%) | (%) | (%) | ||
Brasil | 0,727 | 36,1 | 65,6 | 9,3 |
Rondônia | 0,69 | 31,7 | 65,3 | 10,6 |
Acre | 0,663 | 47,5 | 64,1 | 6,1 |
Amazonas | 0,674 | 33,1 | 65,3 | 9,1 |
Roraima | 0,707 | 47,6 | 72,4 | 7,2 |
Pará | 0,646 | 43,2 | 65,3 | 7,6 |
Amapá | 0,708 | 45,5 | 60,7 | 10,1 |
Tocantins | 0,699 | 43,4 | 75 | 7,8 |
Maranhão | 0,639 | 64,6 | 78,7 | 4,6 |
Piauí | 0,646 | 58,6 | 76,5 | 5,8 |
Ceará | 0,682 | 48,3 | 64,5 | 6,8 |
Rio Grande do Norte | 0,684 | 47,1 | 54 | 6,7 |
Paraíba | 0,658 | 41 | 65,8 | 6,8 |
Pernambuco | 0,673 | 42,1 | 55,4 | 8,7 |
Alagoas | 0,631 | 37,1 | 64,1 | 7,8 |
Sergipe | 0,665 | 40,3 | 68,5 | 7,1 |
Bahia | 0,66 | 41,2 | 68,4 | 6,2 |
Minas Gerais | 0,731 | 25,5 | 64,8 | 11 |
Espírito Santo | 0,74 | 27,8 | 62,8 | 10,2 |
Rio de Janeiro | 0,761 | 21,9 | 59,4 | 14 |
São Paulo | 0,783 | 22,4 | 59,7 | 15,8 |
Paraná | 0,749 | 20,4 | 66,4 | 12,4 |
Santa Catarina | 0,774 | 14,8 | 62,8 | 12,7 |
Rio Grande do Sul | 0,746 | 19,2 | 65,5 | 14,9 |
Mato Grosso do Sul | 0,729 | 30,5 | 68,8 | 10,9 |
Mato Grosso | 0,725 | 22,1 | 66,4 | 8,3 |
Goiás | 0,735 | 37,8 | 66,1 | 11,5 |
Distrito Federal | 0,824 | 21,2 | 64,4 | 11,8 |
Fontes: * PNAD 2009; ** PNUD 2010; ***POF 2008-2009
IMG: Índice de Moran Global
Figura 2 Distribuição espacial dos clusters (BoxMap) do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) (2a), das prevalências de domicílio em insegurança alimentar domiciliar (2b), proporção de aquisição domiciliar de alimentos in natura ou minimamente processados (2c) e de produtos alimentícios ultraprocessados (2d), por Unidades da Federação, Brasil, 2008-2010.
IML: Índice de Moran Local
Figura 3 Distribuição dos clusters da correlação espacial bivariada LISA das prevalências de excesso de peso com as prevalências de domicílios em insegurança alimentar (3a), o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) (3b), a proporção de aquisição domiciliar de alimentos in natura ou minimamente processados (3c) e de produtos alimentícios ultraprocessados (3d), nas Unidades Federativas do Brasil, 2008-2010.
O Maranhão teve maior proporção de domicílios em situação de insegurança alimentar (64,6%), seguido do Piauí (58,6%) nas regiões Norte e Nordeste. Enquanto que nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, as maiores prevalências foram encontradas nos estados de Goiás (37,8%) e Mato Grosso do Sul (30,5%). A menor proporção de domicílios em insegurança alimentar foi verificada em Santa Catarina (14,8%) (Tabela 2). A análise de autocorrelação espacial da prevalência de domicílios em insegurança alimentar foi moderada e significativas (IMG 0,624, p = 0,01). Verificou-se a presença de aglomerados espaciais formados pela maior parte dos estados do Norte e Nordeste, que foram do tipo alto-alto (Figura 2b). Em relação à análise de correlação espacial (bivariada), verificou-se correlação espacial negativa e moderada (IML = -0,561) entre excesso de peso e a prevalência de domicílios em insegurança alimentar, com aglomerados espaciais formados por estados do Sudeste, Centro-Oeste e Sul com altas prevalências de excesso de peso e baixas prevalências de domicílios em insegurança alimentar, e um aglomerado espacial com baixas prevalências de excesso de peso e altas prevalências de insegurança alimentar formados por Ceará, Piauí, Maranhão e Tocantins (Figura 3b).
No que se refere à aquisição domiciliar de alimentos por tipo de processamento, observou-se que o estado do Maranhão teve maior proporção de aquisição de alimentos in natura ou minimamente processados (78,7%), e menor de produtos alimentícios ultraprocessados (4,6%). Nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste a menor proporção de aquisição domiciliar de alimentos in natura ou minimamente processados foi verificada no Rio de Janeiro (59,4%) e a maior aquisição domiciliar de produtos alimentícios ultraprocessados ocorreu em São Paulo (15,8%) (Tabela 2). A análise de autocorrelação espacial da aquisição domiciliar de in natura ou minimamente processados foi fraca e não significativa (IMG = 0,218, p = 0,09). Essa autocorrelação não foi significativa, talvez por possuírem frequências muito semelhantes entre as UF, e, portanto, não formaram aglomerados espaciais bem delimitados (figura 2c). A autocorrelação espacial dos da aquisição domiciliar de produtos alimentícios ultraprocessados foi moderada e significativa (IMG 0,621, p = 0,01). Ademais, verificou-se a presença de aglomerados espaciais formados pela maior parte dos estados do Norte e Nordeste que foram do tipo baixo-baixo. Já a maior parte das UF do Sudeste, Centro-Oeste e Sul formaram aglomerados espaciais do tipo alto-alto para esses produtos alimentícios (Figura 2d). Na análise bivariada, observou-se uma moderada correlação entre as prevalências de excesso de peso e a aquisição de produtos alimentícios ultraprocessados (IML = 0,559, p = 0,01). Constatou-se aglomerados espaciais formados por estados do Sudeste, Centro-Oeste e Sul mostrando altas prevalências de excesso de peso e alta proporção de aquisição domiciliar de produtos alimentícios ultraprocessados. Enquanto Piauí, Maranhão e Tocantins apresentaram baixas prevalências de excesso de peso e baixas proporções de aquisição dos produtos alimentícios ultraprocessados (Figura 3).
A distribuição espacial das prevalências de excesso de peso no Brasil demostrou desigualdade na ocorrência desse distúrbio nutricional antropométrico, sendo superiores em UF das regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste se comparado aos estados do Norte e Nordeste. Além disso, os resultados apontaram correlações espaciais positivas entre o excesso de peso, o IDH e a aquisição domiciliar de produtos alimentícios ultraprocessados. E correlação negativa entre o excesso de peso e a prevalência de domicílios em insegurança alimentar.
A compreensão da distribuição espacial do excesso de peso nos espaços geográficos é importante, uma vez que no mundo e no Brasil configura-se como um problema de saúde pública. No Brasil, entre 1974-1975 e 2008-2009, o excesso de peso em adultos aumentou cerca de três vezes no sexo masculino (de 18,5% para 50,1%) e quase dobrou no sexo feminino (de 28,7% para 48%)24. Estima-se que no mundo esse agravo é responsável por 44% da carga global de diabetes mellitus, 23% de doença isquêmica do coração e entre 7% e 41% para alguns tipos de câncer32.
As correlações espaciais encontradas entre as prevalências de excesso de peso e desenvolvimento social medido pelo IDH, cujos maiores valores são proporcionais a melhores indicadores de longevidade, renda e educação corroboram com estudos que descrevem o excesso de peso e a obesidade no Brasil. A prevalência de excesso de peso aumenta conforme a fase da vida, atingindo maiores proporções aproximadamente entre os 50 e 60 anos33. Análises estratificadas para situação socioeconômica e escolaridade dos dados da POF 2008-2009, apresentaram resultados nesse mesmo sentido24. Estudo de coorte, desenvolvido na cidade de Pelotas no Rio Grande do Sul, verificou que o excesso de peso aumentou com a idade e estava associado ao nível socioeconômico e escolaridade materna34. Foram verificadas maiores prevalências de sobrepeso em idoso de unidades da federação do Sul e Sudeste, que possuem maior desenvolvimento social35.
No Brasil, a proporção de aquisição domiciliar de alimentos in natura ou minimamente processados ultrapassou os 60%, o que pode se traduzir em um aspecto positivo em relação ao padrão alimentar da população, considerando outros países36. Esta proporção está em consonância a prevalência de consumo brasileira destes tipos de alimentos, que foi de 69,5%37. Neste estudo verificou-se que a aquisição domiciliar de alimentos in natura ou minimamente processados teve autocorrelação espacial negativa e fraca, porém ocorreu a formação de um aglomerado espacial bivariado com as prevalências de excesso de peso em estados da região Norte e Nordeste (Piauí, Maranhão, Tocantins e Pará). As maiores proporções de aquisição domiciliar de alimentos in natura ou minimamente processados neste território pode ocorrer devido ao poder aquisitivo da maior parte da população desses estados que possuem baixo poder aquisitivo e maior insegurança alimentar. Estudo que avaliou o preço dos grupos de alimentos consumidos no Brasil considerando a natureza, a extensão e o propósito de seu processamento, verificou que os alimentos minimamente processados, como grãos secos (arroz e feijão) são uma alternativa mais econômica38. Porém, necessita-se investigar a qualidade dos itens alimentares que compõe essa categoria, pois podem ser monótonos trazendo risco ao estado nutricional dos indivíduos que vivem nesses estados.
Já em relação a aquisição domiciliar dos produtos alimentícios ultraprocessados, a proporção de aquisição foi de 9,3%, o que diverge da prevalência de consumo destes tipos de alimentos, que foi de 21,5%37. Essa diferença pode ser explicada, uma vez que neste estudo utilizou-se a análise dos alimentos disponíveis para o consumo no domicílio, enquanto que a análise de consumo alimentar considerou os alimentos consumidos dentro e fora dos domicílios. Salienta-se que mesmo em menor proporção, há uma preocupação com a prevalência de consumo de alimentos ultraprocessados pelos brasileiros. Considerando-se a análise do perfil nutricional da fração do consumo relativo de produtos alimentícios ultraprocessados estudo comprovou que esse tipo de dieta obteve maiores densidade energética, teor de gorduras em geral, de gordura saturada, de gordura trans, de sódio e de açúcar livre e menor teor de fibras, de proteínas e de potássio, quando comparado à fração do consumo relativa a alimentos in natura ou minimamente processados37. Além disso, para 16 dos 17 micronutrientes estudados, o teor médio encontrado na fração do consumo alimentar relativa aos alimentos ultraprocessados foi inferior a de alimentos in natura ou minimamente processados. O aumento da participação de alimentos ultraprocessados na dieta mostrou-se inversa e significativamente associado ao teor de vitaminas B12, D, E, niacina e piridoxina e de cobre, ferro, fósforo, magnésio, selênio e zinco20, cujas deficiências podem estar relacionadas ao excesso de peso e consequente desenvolvimento de DCNT39.
A aquisição domiciliar de produtos alimentícios ultraprocessados e as prevalências de excesso de peso tiveram correlações espaciais positivas e moderadas em UF mais desenvolvidas (Sudeste, Sul e Centro-Oeste). A OPAS21 destaca que os territórios com maior desenvolvimento e urbanização são mercados mais atraentes para produtos ultraprocessados, por serem totalmente industrializados e de mais alta renda. No mundo, por exemplo, os países conhecidos como o “Norte global” (América do Norte , Europa Ocidental e as regiões desenvolvidas do Leste da Ásia) são os locais que possuem maior comércio de ultraprocessados e maiores prevalências de excesso de peso e obesidade21.
Estudo que analisou a venda de produtos ultraprocessados nos países identificou que mesmo esse comércio sendo mais elevado naqueles de alta renda, a taxa de crescimento entre 2000 e 2013 foi maior em países de baixa renda. Em adição, verificou-se que a maior comercialização de produtos alimentícios ultraprocessados foi relacionada ao aumento da prevalência do excesso de peso e obesidade, a exemplo da América Latina21.
A distribuição das variáveis no território brasileiro aponta para a existência de um espaço geográfico que parece estar em uma etapa de transição alimentar e nutricional distintas entre as UF do Sudeste, Sul, Centro-Oeste e as do Norte e Nordeste. Possivelmente, esse fato decorre de eventos sociodemográficos influenciados pelo capitalismo liberal que são mais fortes em grandes pólos de influência econômica, que no Brasil concentram-se principalmente nas regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste40.
O Sudeste, Sul e Centro-Oeste tiveram um crescimento econômico acentuado e marcado pela rápida industrialização, consolidando-se como regiões de grande interesse econômico e comercial ao longo da história do Brasil41. Esses aspectos históricos e geográficos proporcionaram a essa região maior desenvolvimento humano. Os resultados desse estudo mostraram que UF dessas regiões estão em uma etapa mais avançada da transição alimentar e nutricional, que se correlaciona com etapa da transição epidemiológica caracterizada pelo aumento das prevalências das doenças crônicas não transmissíveis42.
Em contrapartida, a maior parte dos estados das regiões Norte e Nordeste, possuem sua construção histórico-geográfica marcada pela exploração comercial e extrativismo de produtos como pau-brasil e cana de açúcar no início da colonização e posteriormente borracha, e pouco interesse e investimentos na industrialização desses territórios. Esses fatos causaram atraso no desenvolvimento humano por falta de investimentos comerciais e do estado41. As altas prevalências de domicílios em insegurança alimentar e aquisição de alimentos in natura ou minimante processados em detrimento dos ultraprocessados, e baixas prevalências de excesso de peso situa essas UF em uma etapa menos avançada da transição alimentar e nutricional se comparada as regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste, o que contribuiu para ressaltar a situação de polarização epidemiológica42.
Esses fatores socioeconômicos e demográficos interferem diretamente na dinâmica de acesso aos alimentos, no estado nutricional e no de saúde de grupos populacionais40. Batista Filho e Batista12 nos fazem refletir sobre o conceito de transição alimentar e nutricional ao chamar atenção para mercantilização do comer e da comida, a qual está desencadeando uma “desnaturação dos alimentos, a desnaturação da vida humana e dos biomas em seu conjunto, o confronto com a natureza, como uma guerra não declarada: os ganhos da tecnologia a serviço dos mercados”12. Estes autores alertam para o crescimento do consumo de ultraprocessados, ao destacar que “80% a 90% dos alimentos, antes de entrar em nossas bocas, passa pela boca das máquinas”12.
Verificou-se, também, com os resultados desse estudo que a prevalência de insegurança alimentar domiciliar estava desigualmente distribuída no território brasileiro e apresentou correlação negativa com a distribuição espacial das prevalências de excesso de peso. Deve-se considerar que a insegurança alimentar possui relação com as modificações no estado nutricional e de saúde dos indivíduos e grupos populacionais. Situações de insegurança alimentar podem acarretar desnutrição clínica e subclínica, principalmente em grupos etários mais vulneráveis (crianças, adolescentes e idosos), mas também desencadear manifestações posteriores relacionadas ao risco de desenvolvimento de DCNT no adulto15.
Este estudo apresenta algumas limitações próprias da metodologia empregada e seus resultados devem ser interpretados com cautela, devido a possível existência de um viés de agregação ou falácia ecológica. Em estudos ecológicos, a observação da existência de uma relação entre duas variáveis no nível agregado não implica, necessariamente, que essa relação se mantenha no nível individual. O estudo apresenta boa validade interna, pois os dados são provenientes de inquéritos populacionais com amostra complexa e representativos dos estratos geográficos analisados.
Na literatura brasileira, não foram encontrados estudos que abordassem o tema por meio do método de análise espacial considerando a prevalência de excesso de peso para toda a população brasileira, o que limitou a comparabilidade dos resultados. No entanto, o estudo é válido e mostrou importantes aspectos acerca da inovação quanto às categorias por tipo de processamento utilizadas para análise da aquisição de alimentos. Além disso, salienta-se o rigor metodológico quanto ao tratamento dos dados, e a análise de três dimensões que se relacionam as prevalências de excesso de peso: a qualidade dos alimentos, a insegurança alimentar e o desenvolvimento social. Os achados contribuem para o conhecimento a cerca dos determinantes da alimentação e nutrição da população brasileira.
A análise periódica desses e outros aspectos alimentares e nutricionais no Brasil auxiliarão a implantação de políticas, como a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional43 e a Política Nacional de Alimentação e Nutrição44, e construção de ações de alimentação, nutrição e saúde mais específicas nos diferentes espaços geográficos brasileiros. Essa prática de reconhecimento do território, seus problemas e potencialidades possibilita o planejamento de ações mais efetivas, coerentes e resolutivas aos problemas que interferem negativamente sobre o processo saúde-doença vivenciados pela população. Conclui-se que a ocorrência de excesso de peso foi desigualmente distribuída no território brasileiro e foi associada ao índice de desenvolvimento humano e à aquisição de produtos alimentícios ultraprocessados. Além disso, houve associação inversa das prevalências de excesso de peso com as prevalências de domicílios em insegurança alimentar.