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Correlações entre aquisição do vocabulário e da fonologia: número de palavras produzidas versus consoantes adquiridas

Correlações entre aquisição do vocabulário e da fonologia: número de palavras produzidas versus consoantes adquiridas

Autores:

Fernanda Marafiga Wiethan,
Helena Bolli Mota,
Anaelena Bragança de Moraes

ARTIGO ORIGINAL

CoDAS

versão On-line ISSN 2317-1782

CoDAS vol.28 no.4 São Paulo jul./ago. 2016 Epub 04-Ago-2016

http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20162015108

INTRODUÇÃO

No estudo da linguagem oral, tema complexo e intrigante, há vários parâmetros que podem ser considerados para a avaliação e análise deste desenvolvimento. Dessa forma, os pesquisadores precisam ser perspicazes e criativos, podendo utilizar diferentes teorias na tentativa de melhor explicar sua aquisição, sua evolução, seu uso, suas diferenças e suas “falhas”, quando existentes. Por isso, na tentativa de circunscrever o objeto de estudo, o tema linguagem é dividido em sistemas: fonologia, vocabulário/léxico/semântica, sintaxe, morfologia, pragmática. No presente artigo, será tratada a aquisição típica da fonologia e do vocabulário do Português Brasileiro e as relações que ocorrem entre esses sistemas no curso da aquisição.

Muito já se sabe sobre a aquisição das consoantes do Português Brasileiro, sobretudo na variante dialetal do Estado do Rio Grande do Sul, o que pode ser exemplificado pelos estudos conduzidos pela pesquisadora Regina Lamprecht e compilados em livro(1). Quanto às idades de aquisição dos fonemas na posição de onset simples, tem-se que, com um ano e seis meses de idade, a criança já produz os fonemas /p, b, t, d, m, n/; com um ano e nove meses já estabilizou as plosivas e nasais mais posteriores além das fricativas /f/ e /v/; com dois anos e dois meses já aparecem as africadas, além de /s/ e /z/; aos dois anos e oito meses aparecem os fonemas /Ʒ/ e /l/; com dois anos e dez meses a criança já domina o /ʃ/ e com três anos e quatro meses o /R/; aos três anos e dez meses aparece o /ʎ/ e aos quatro anos o /r/. Quanto às estruturas silábicas, o onset simples é a estrutura mais precoce, seguido da coda com /S/, adquirida aos dois anos e seis meses e da coda com /R/ adquirida aos três anos e dez meses. Já o onset complexo só aparece aos cinco anos de idade, sendo considerado, portanto, como de aquisição tardia(1).

Outra autora(2), também do Rio Grande do Sul, teve como objetivo descrever a aquisição fonológica do Português Brasileiro de crianças com desvio fonológico. Assim, criou o Modelo Implicacional de Complexidade de Traços (MICT), que explica a aquisição segmental das consoantes por meio das relações implicacionais entre os traços, conforme ilustrado na Figura 1.

Figura 1 Modelo Implicacional de Complexidade de Traços (MICT) proposto por Mota2 (p. 154) 

Os traços que aparecem no modelo são os marcados, ou seja, têm maior complexidade, e as linhas representam as relações existentes entre estes traços, podendo ser relação implicacional forte ou fraca. A raiz corresponde aos traços que possuem estado zero de complexidade (fonemas /p/, /t/, /m/ e /n/), que consiste da estrutura representacional básica dada na Gramática Universal, apresentando apenas traços não marcados. Da raiz ou estado zero parte a estrutura arbórea, em que os ramos representam as condições de marcação e, quanto mais distante da raiz, mais complexas são estas condições. Se em um mesmo caminho existem dois ou mais traços ou combinações de traços, significa que entre eles há uma relação de implicação. Se um traço ou combinação de traços é alvo de dois ou mais caminhos convergentes, isso quer dizer que para que este traço seja especificado é necessário que o conjunto de traços correspondentes a estes caminhos já tenham sido especificados(2).

Já o estudo do vocabulário não é tão explorado quanto o da fonologia no Brasil. No Português Brasileiro, verificou-se que, entre um ano e quatro meses e um ano e seis meses, o crescimento médio do vocabulário é de quatro palavras por mês, enquanto que, entre um ano e dez meses e dois anos, esse crescimento é de 25 palavras por mês(3).

Ainda mais escassos são os estudos que correlacionam diferentes campos da linguagem, como o vocabulário e a fonologia, por exemplo. Nesse sentido, um trabalho sugere que as alterações no vocabulário observadas em crianças com alterações específicas do desenvolvimento da linguagem são justificadas por dificuldades observadas em habilidades e/ou características diretamente relacionadas aos mecanismos envolvidos no processamento da informação, que comprometem a qualidade e a recuperação das representações fonológicas e semânticas de um novo item lexical(4).

Estudo conduzido em 2012(5), com 15 crianças com desenvolvimento típico aos dois anos de idade, utilizou como método a nomeação espontânea de palavras já conhecidas pelas crianças a fim de analisar a influência da frequência de tipos lexicais, da semelhança fonológica, da idade de aquisição e da probabilidade fonotática na variabilidade e precisão da produção. As autoras encontraram que há um importante papel da complexidade fonológica - palavras com fonemas e estruturas silábicas adquiridas tardiamente são produzidas com maior variabilidade e, tanto a frequência de tipos lexicais quanto a semelhança fonológica influenciam a variabilidade observada na fala - quanto maior o efeito da frequência de tipos dos itens lexicais e da semelhança fonológica, menor a variabilidade nas produções.

Complementarmente, crianças com grandes vocabulários têm sistemas fonológicos mais complexos do que aquelas com vocabulários pequenos, já que a maior quantidade de palavras produzidas pode gerar a exigência de um sistema fonológico mais avançado(6).

Estudo recente(7) revelou que as crianças em fase inicial de aquisição fonológica selecionam as palavras que dirão com base no quão “pronunciáveis” elas são. No mesmo sentido, outros autores(8) encontraram evidências de que as crianças que produzem os fonemas fricativos precocemente têm melhores habilidades de vocabulário e sintaxe do que aquelas que apresentam dificuldades com as fricativas.

Assim, o objetivo do presente artigo foi verificar as possíveis correlações entre o número de tipos lexicais e o número de consoantes no sistema fonológico geral em crianças com desenvolvimento típico de linguagem.

MÉTODOS

O presente estudo caracteriza-se como pesquisa quantitativa, descritiva e com coleta de dados prospectiva. A pesquisa é parte de um projeto aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa da instituição de origem sob o número 0219.0.243.000-11. A autorização dos responsáveis pelos participantes da pesquisa foi solicitada mediante esclarecimento, leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, condição imprescindível para participação no estudo.

Os sujeitos aqui estudados foram 186 crianças com idades entre um ano e seis meses e cinco anos, 11 meses e 29 dias, membros de famílias monolíngues falantes do Português Brasileiro, com desenvolvimento típico de linguagem. Foram excluídas do estudo crianças que apresentassem perda auditiva, comprometimento neurológico, emocional e/ou cognitivo, detectável por meio de observação; presença de alterações motoras ou orgânicas orais, ou que tivessem realizado/estivessem realizando fonoterapia.

Do total de crianças analisadas, nove encontravam-se na faixa etária de um ano e seis meses a um ano, 11 meses e 29 dias; 13, nas faixas etárias de dois anos a dois anos, três meses e 29 dias; também 13 crianças na de dois anos e quatro meses a dois anos, sete meses e 29 dias; 16 encontravam-se na faixa etária de dois anos e oito meses a dois anos, 11 meses e 29 dias; e 15, em cada uma das nove faixas etárias (de três meses cada) com idades de três anos a três anos, três meses e 29 dias, até cinco anos e oito meses a cinco anos, 11 meses e 29 dias.

Os procedimentos de coleta de dados foram realizados em oito escolas municipais de Educação Infantil da cidade de Santa Maria - RS, localizadas em regiões diferentes da cidade. A avaliação fonoaudiológica foi composta de questionário destinado aos pais ou responsáveis, avaliação orofacial e das praxias orais, avaliação da linguagem oral e dos aspectos fonéticos e fonológicos da fala, além de triagem auditiva.

A entrevista, enviada pelas pedagogas das escolas e preenchida pelos responsáveis em casa, buscou obter informações sobre a gestação, parto, desenvolvimento linguístico e motor da criança, histórico clínico, comportamento atual, histórico de bilinguismo, além de aspectos gerais sobre o histórico e a dinâmica familiar.

Na avaliação do Sistema Estomatognático, utilizou-se o Protocolo de avaliação miofuncional orofacial com escores (AMIOFE)(9), que foi adaptado às necessidades desta pesquisa. Por meio deste protocolo, foram analisadas as estruturas do Sistema Estomatognático no que se refere ao aspecto, posição habitual, tensão muscular e mobilidade. Também foi analisada a função respiração.

As praxias orais das crianças a partir de três anos e seis meses foram avaliadas por meio do Protocolo de avaliação da dispraxia(10). As crianças com idade inferior a três anos e seis meses não tiveram esse aspecto avaliado porque não há valores de referência até essa faixa etária.

A avaliação da linguagem foi realizada por meio do Protocolo de Observação Comportamental(11). Assim, foi possível observar o desenvolvimento cognitivo e de linguagem. O protocolo mencionado foi projetado para crianças de um a quatro anos de idade, é de fácil aplicação e contém valores de referência definidos. Para as crianças maiores de quatro anos, foi observada a conversação espontânea com respostas a perguntas e a análise de pequenas narrativas orais espontâneas.

A avaliação dos aspectos fonéticos da fala para as crianças a partir de três anos e seis meses foi realizada por meio da repetição de vocábulos foneticamente balanceados. Por meio desta avaliação é possível detectar alterações articulatórias e fonológicas que possam ocorrer na fala. Para as crianças menores que três anos e seis meses, foi solicitado que repetissem algumas palavras, informalmente, por meio de atividades lúdicas.

A triagem auditiva para as crianças de até dois anos, seis meses e 29 dias de idade foi a Audiometria de Reforço Visual, que é utilizada em crianças de seis a 24 meses(12), utilizando o audiômetro pediátrico portátil, com tons puros modulados (warble) nas frequências de 500, 1000, 2000 e 4000 Hz, nas intensidades de 20 dBNA a 80 dBNA em campo livre. Na realização do teste, as frequências eram alternadas (500, 4000, 1000, 2000 Hz) até que se chegasse ao nível mínimo de resposta para cada frequência. Foram consideradas normais as respostas que estivessem entre 20 e 40 dBNA(13). Embora essa avaliação seja adequada para crianças de até dois anos, foi necessário estender a faixa, pois, na prática, verificou-se que as crianças com essa idade não conseguiam responder à audiometria lúdica.

Com as crianças na faixa etária de dois anos e sete meses a cinco anos, 11 meses e 29 dias, foi realizada a avaliação audiológica, com audiometria lúdica condicionada ou audiometria tonal liminar(14). Essas avaliações foram realizadas por meio do audiômetro Interacoustics Screening Audiometer AS208, devidamente calibrado. Foi realizada a pesquisa dos limiares auditivos por via aérea de 500 a 4000 Hz testados a 20 dBNA. Caso houvesse falha nas respostas, em uma ou mais frequências, e em duas triagens consecutivas, a criança era encaminhada para avaliação otorrinolaringológica e audiológica completa.

Com as crianças que responderam adequadamente às avaliações mencionadas, realizaram-se as avaliações fonológica e do vocabulário. A avaliação foi realizada por meio de fala espontânea e nomeação de objetos e brinquedos em miniatura, de lista pré-elaborada, selecionados a partir da Avaliação Fonológica da Criança (AFC)(15). Esse instrumento permite avaliar as possibilidades de ocorrência para cada consoante do Português Brasileiro em todas as posições possíveis.

Foram realizadas gravações em vídeo com filmadora da marca Samsung, modelo SMX-C200, que foram armazenadas em HD externo para transcrição fonética ampla da fala da criança e transcrição alfabética da fala da examinadora. Para a transcrição fonética da fala das crianças até 3:3;29, utilizou-se o método do consenso(16), ou seja, duas julgadoras trabalharam independentemente na transcrição. Em seguida, as transcrições foram comparadas e as discrepâncias ouvidas novamente por uma terceira julgadora até chegarem à concordância em todos os enunciados/palavras/sons produzidos pela criança. Caso não houvesse a concordância entre pelo menos duas julgadoras, o trecho era excluído. Assim, garantiu-se a confiabilidade das transcrições, evitando que um grande número de palavras fosse excluído, já que crianças pequenas, mesmo com desenvolvimento típico, apresentam maior variabilidade nas produções e imaturidade articulatória.

Já para as crianças das demais faixas etárias, que apresentam as produções mais estáveis, utilizou-se o seguinte método de confiabilidade entre as transcrições: todas as amostras foram transcritas por julgadora experiente em linguagem infantil. Uma segunda avaliadora com a mesma experiência transcreveu, independentemente, 20% da mesma amostra para atestar a confiabilidade(5,17). Assim, a média de concordância foi de 79,6% para as faixas de 3 anos; 81,9% para as faixas de 4 anos; e 80,1% para as faixas de 5 anos.

As filmagens tiveram duração de, em média, 20 minutos para que se pudesse obter tanto uma amostra representativa da fala das crianças, quanto garantir a viabilidade das transcrições, considerando-se o grande número de sujeitos incluídos na pesquisa. A referência para diagnosticar as alterações fonológicas foram os estudos conduzidos pela pesquisadora Regina Lamprecht(1), considerando-se uma “margem de erro”, dada a singularidade da aquisição fonológica. Essa referência foi escolhida por ser do mesmo Estado da realização da presente pesquisa.

As avaliações de fala realizadas foram analisadas, inicialmente, utilizando-se a Análise Contrastiva. Para a realização desta análise, utilizam-se quatro fichas: Descrição Fonética 1 - registro das realizações dos segmentos consonantais; Descrição Fonética 2 - registro do inventário fonético de acordo com as categorias de ponto, modo e sonoridade e as realizações de encontros consonantais; Análise Contrastiva 1 - registro das ocorrências e possibilidades das substituições e omissões realizadas pela criança, com o cálculo das porcentagens; e Análise Contrastiva 2, que apresenta o sistema fonológico utilizado pela criança, registrando os contrastes, as substituições e as omissões por ela produzidos(15).

A partir disso, para se estabelecer o inventário fonológico, foram utilizados os seguintes critérios(18): ocorrência de 0% a 39% indica que o fonema não está adquirido; se a ocorrência estiver entre 40% e 79%, o fonema encontra-se parcialmente adquirido; já ocorrência igual ou superior a 80% indica que o fonema está adquirido. Para determinar as características dos sistemas fonológicos dos sujeitos e as probabilidades de produção de cada som, considerou-se o sistema fonológico geral dos sujeitos, analisando-se as consoantes /p, b, t, d, k, g, f, v, s, z, ʃ, Ʒ, m, n, ɲ, l, ʎ, r, R/ nas posições de onset simples, /l, r/ na segunda posição do onset complexo e /s, r/ na posição de coda. Ressalta-se que a coda lateral foi produzida em todos os casos como a semivogal [w], o que resulta em um ditongo(19). Quanto à nasal em posição pós-vocálica, considerou-se que se comporta como a nasalização da vogal anterior, sendo considerada, portanto, como autossegmento flutuante(20). Ainda, a consoante nasal pode se tornar um elemento do ditongo. Assim, a nasal e a lateral pós-vocálicas não foram aqui consideradas na posição de coda.

Finalizadas as Análises Contrastivas, contabilizou-se o número de fonemas adquiridos no sistema fonológico geral de cada criança, em cada grupo do MICT(2) - Estado 0 e Níveis 1 e 2; Níveis 3, 4 e 5; Níveis 6, 7, 8 e 9 e em todas as estruturas silábicas possíveis.

Quanto à classificação dos dados do vocabulário, contabilizou-se o número dos tipos (ou types) lexicais produzidos, do mesmo modo que foi realizado por outra autora(21). Ou seja, foi realizada soma simples de quantas palavras (número de palavras) foram ditas por cada criança. Para executar essa contagem, foram utilizadas as transcrições mencionadas previamente. É importante ressaltar que as palavras ditas por repetição (ditas imediatamente após a examinadora) não foram consideradas.

Todas as palavras ditas por cada criança foram digitadas em uma planilha (um item por célula). A seguir, os itens repetidos foram excluídos, restando apenas um item de cada palavra. Assim, consideraram-se todas as palavras diferentes produzidas pela criança para a soma de quantos vocábulos foram ditos.

Ressalta-se que nessa contagem quando a palavra mantinha o mesmo radical, mudando apenas o sufixo, como nos casos de flexões de número e gênero e flexões verbais, considerou-se apenas um item lexical (uma palavra dita). Por exemplo, menino/menina; menino/meninos; gostar/gostou/gostava.

No caso das frases verbais, quando duas palavras eram usadas juntas tendo um único significado, como em “vou comer”, considerou-se um único item lexical (uma palavra dita), pois o primeiro verbo não traz significado, apenas expressando noção de tempo.

Contrações, como “pra” (para a), foram contabilizadas como um único item lexical (uma palavra dita).

Foram, então, calculadas as médias do número de tipos lexicais produzidos (média de quantas palavras foram ditas) em cada faixa etária. Ressalta-se que, neste trabalho, não foram consideradas as classes gramaticais produzidas, conforme já mencionado anteriormente. Apenas contabilizou-se o número de palavras ditas por cada sujeito em cada filmagem, já que o objetivo foi analisar a quantidade de itens lexicais produzidos (quantas palavras as crianças produzem) no tempo determinado por idade, além de estabelecer correlações destes dados com a produção das consoantes.

Os dados numéricos dos tipos lexicais (média de quantas palavras foram ditas no tempo determinado por faixa etária) e dos fonemas no sistema fonológico geral, em cada estrutura silábica e nos diferentes níveis do MICT(2) produzidos por cada sujeito foram comparados entre as faixas etárias, utilizando-se o programa computacional Statistica, versão 9.1, aplicando-se o teste estatístico não paramétrico de Kruskal–Wallis, seguido de comparações múltiplas.

Utilizando-se o mesmo programa, foram calculadas as correlações entre o número de tipos lexicais produzidos e as variáveis estabelecidas para o sistema fonológico dos sujeitos em cada faixa etária pesquisada, utilizando-se o Coeficiente de Correlação de Spearman, seguido do teste t de Student para verificar a significância da correlação. Alguns cálculos do coeficiente de correlação não puderam ser realizados porque os valores assumidos pelas variáveis eram constantes. Para ambos os testes, o nível de significância considerado foi de 5% (p≤ 0,05).

RESULTADOS

Na Tabela 1, são apresentados os dados sobre as consoantes adquiridas no sistema fonológico geral e em cada estrutura silábica possível por faixa etária das crianças, bem como a comparação entre as médias nestas faixas.

Tabela 1 Número de consoantes adquiridas no sistema fonológico geral e em cada estrutura silábica por faixa etária 

Faixa etária SFG / Onset simples Onset complexo Coda
Média Mín Máx DP Média Mín Máx DP Média Mín Máx DP
(A)1:6-1: 11;29 4,8 (F – M) 3 8 1,8 0 (K – M) 0 0 0 0 (H, J – M) 0 0 0
(B) 2:0-2:3;29 9,9 (G – M) 5 15 3,0 0 (K – M) 0 0 0 0 (H – M) 0 0 0
(C) 2:4-2:7;29 12,8 (G – M) 8 18 3,1 0 (K – M) 0 0 0 0,1(H, J – M) 0 1 0,4
(D) 2:8-2: 11;29 15,2 (G – M) 13 17 1,3 0,1 (K – M) 0 1 0,2 0,4(H, J – M) 0 1 0,2
(E) 3:0-3:3;29 16,3 (J – M) 13 18 1,8 0 (K – M) 0 0 0 0,4(H, J – M) 0 1 0,5
(F) 3:4-3:7;29 17,4 (A) 15 19 1,2 0,2 (K – M) 0 1 0,4 0,7(H, J – M) 0 1 0,5
(G) 3:8-3: 11;29 17,7 (A – B) 15 19 1,2 0,3 (K – M) 0 2 0,6 0,8(H, J – M) 0 1 0,4
(H) 4:0-4:3;29 18,4 (A – D) 17 19 0,8 0,3 (L,M) 0 2 0,6 1,9 (A – G) 1 2 0,3
(I) 4:4-4:7;29 18,3 (A – D) 17 19 0,7 0,8 0 2 0,9 1,3 (B) 1 2 0,5
(J) 4:8-4: 11;29 18,7 (A - E) 18 19 0,5 0,9 0 2 0,8 1,9 (A – G) 1 2 0,3
(K) 5:0-5:3;29 18,9 (A - E) 18 19 0,3 1,5 (A – G) 0 2 0,7 1,9(A – G) 1 2 0,3
(L) 5:4-5:7;29 18,7 (A - E) 18 19 0,5 1,5 (A – H) 1 2 0,5 1,9(A – G) 1 2 0,3
(M) 5:8-5: 11;29 18,9 (A - E) 18 19 0,3 1,5 (A – H) 0 2 0,6 1,9(A – G) 1 2 0,3

Legenda: Teste estatístico: Kruskal-Wallis. Nível de significância: p ≤ 0,05. Mín=mínimo; Máx=máximo; DP=desvio padrão. As letras sobrescritas entre parênteses representam a faixa com a qual há diferença estatisticamente significante. O traço (-) indica diferença estatística de uma faixa até outra e a vírgula (,) indica diferença estatística de uma faixa e de outra. Exemplo: A produção da coda, na faixa etária de 1:6 a 1:11;29 (A) difere das faixas de 4:0-4:3;29 (H) e 4:8-4:11;29 (J), 5:0-5:3;29 (K), 5:4-5:7;29 (L), 5:8-5:11;29 (M)

Para a compreensão dessa tabela, é importante ter em mente alguns fatores: o número máximo de fonemas possíveis no sistema fonológico geral e na posição do onset simples é o mesmo, ou seja, 19; o número máximo de fonemas possíveis para o onset complexo e para a coda é dois.

Na Tabela 2, são apresentados os dados de produção das consoantes em cada nível do MICT(2) por faixa etária e a comparação entre as médias nestas faixas.

Tabela 2 Medidas descritivas do número de consoantes adquiridas em cada nível do MICT2  

Faixa etária E0, N1, N2 N3, N4, N5 N6, N7, N8, N9
Média Mín Máx DP Média Mín Máx DP Média Mín Máx DP
(A)1:6-1: 11;29 2,9 (D – M) 1 5 1,3 1,7 (E – M) 0 3 0,9 0,2 (G – M) 0 1 0,4
(B) 2:0-2:3;29 5,7 2 7 1,5 3,3 (F – M) 1 6 1,5 0,9 (G – M) 0 3 0,9
(C) 2:4-2:7;29 6,5 4 7 1,0 3,9 (F, H– M) 1 6 1,5 2,5 (H – M) 0 5 1,7
(D) 2:8-2: 11;29 7,0 (A) 7 7 0 5,2 4 6 0,7 3,0 (H – M) 1 5 1,0
(E) 3:0-3:3;29 7,0 (A) 7 7 0 5,3 (A) 3 6 1,1 3,9 (J – M) 2 5 1,1
(F) 3:4-3:7;29 7,0 (A) 7 7 0 5,9 (A – C) 4 6 0,5 4,5 2 6 1,0
(G) 3:8-3: 11;29 7,0 (A) 7 7 0 5,9 (A, B) 5 6 0,3 4,9 (A, B) 2 6 1,1
(H) 4:0-4:3;29 7,0 (A) 7 7 0 6,0 (A – C) 6 6 0 5,4 (A – D) 4 6 0,8
(I) 4:4-4:7;29 7,0 (A) 7 7 0 6,0 (A – C) 6 6 0 5,3 (A – D) 4 6 0,7
(J) 4:8-4: 11;29 7,0 (A) 7 7 0 6,0 (A – C) 6 6 0 5,7 (A – E) 5 6 0,5
(K) 5:0-5:3;29 7,0 (A) 7 7 0 6,0 (A – C) 6 6 0 5,9 (A – E) 5 6 0,3
(L) 5:4-5:7;29 7,0 (A) 7 7 0 6,0 (A – C) 6 6 0 5,7 (A – E) 5 6 0,5
(M) 5:8-5: 11;29 7,0 (A) 7 7 0 6,0 (A – C) 6 6 0 5,9 (A – E) 5 6 0,3

Legenda: Teste Estatístico: Kruskal-Wallis; nível de significância: p ≤ 0,05. Mín=mínimo; Máx=máximo; DP=desvio padrão. E0 = Estado 0; N = Nível. As letras sobrescritas entre parênteses representam a faixa em que houve diferença estatisticamente significante. O traço (-) indica diferença estatística de uma faixa até outra e a vírgula (,) indica diferença estatística de uma faixa e de outra. Exemplo: A produção dos fonemas dos N3, N4 e N5 na faixa etária de 2:4 – 2:7;29 (C) difere das faixas de 3:4-3:7,29 (F) e 4:0-4:3;29 (H); 4:4-4:7;29 (I); 4:8-4:11;29 (J); 5:0-5:3;29 (K); 5:4-5:7;29 (L); 5:8-5:11;29 (M)

Para a compreensão da Tabela 2, é importante lembrar que os fonemas relativos ao Estado 0, Níveis 1 e 2 são sete: /p, t, m, n, ɲ, b, d/; os fonemas relativos aos Níveis 3, 4 e 5 são seis: /k, g, f, v, s, z/; e os fonemas relativos aos Níveis 6, 7, 8 e 9 são seis: /l, ʃ, Ʒ, r, R, ʎ/.

Na Tabela 3, são apresentados os dados referentes à média do número dos tipos lexicais produzidos por faixa etária e a comparação entre as médias nestas faixas.

Tabela 3 Medidas descritivas do número de tipos lexicais produzidos por faixa etária 

Faixa etária Média de tipos lexicais Mínimo Máximo Desvio Padrão
(A)1:6-1: 11;29 20,7 (F - M) 8 37 10,1
(B) 2:0-2:3;29 57,9 (F - M) 30 129 28,0
(C) 2:4-2:7;29 96,0 (I,J) 60 158 26,5
(D) 2:8-2: 11;29 107,9 (J) 73 176 28,6
(E) 3:0-3:3;29 103,0 (I,J) 57 143 23,4
(F) 3:4-3:7;29 126,2 (A,B) 73 169 28,9
(G) 3:8-3: 11;29 139,9 (A,B) 78 191 31,3
(H) 4:0-4:3;29 139,8 (A,B) 92 178 22,3
(I) 4:4-4:7;29 172,9 (A - C,E) 89 310 60,8
(J) 4:8-4: 11;29 164,8 (A - E) 98 232 37,9
(K) 5:0-5:3;29 127,2 (A,B) 60 173 34,9
(L) 5:4-5:7;29 132,5 (A,B) 66 187 43,6
(M) 5:8-5: 11;29 135,9 (A,B) 77 205 40,0

Legenda: Teste estatístico: Kruskal-Wallis. Nível de significância: p ≤ 0,05. Mín=mínimo; Máx=máximo; DP=desvio padrão. As letras sobrescritas entre parênteses representam a faixa em que há diferença estatisticamente significante. O traço (-) indica diferença estatística de uma faixa até outra e a vírgula (,) indica diferença estatística de uma faixa e de outra. Exemplo: A produção dos tipos, na faixa etária de 2:0 a 2:3;29 (B) difere das faixas de 3:4-3:7,29 (F), 3:8-3:11;29 (G), 4:0-4:3;29 (H), 4:4-4:7;29 (I), 4:8-4:11;29 (J), 5:0-5:3;29 (K), 5:4-5:7;29 (L), 5:8-5:11;29 (M); a faixa de 3:4-3:7;29 (F) difere das faixas de 1:6-1:11;29 (A) e 2:0-2:3;29 (B)

Na Tabela 4, são apresentadas as correlações entre o número de tipos lexicais produzidos e o número de fonemas adquiridos no Sistema Fonológico Geral, nos diferentes níveis do MICT(2) e em cada estrutura silábica possível nas faixas etárias pesquisadas. Observa-se que poucas correlações apresentaram significância estatística, e a maioria das correlações encontradas foi positiva, ou seja, com o aumento dos valores de uma das variáveis ocorre o aumento da outra.

Tabela 4 Correlações entre o número de tipos lexicais produzidos e os diferentes aspectos da fonologia dos sujeitos 

Faixa etária Aspectos da Fonologia Coeficiente (r) p-valor
1:6-1: 11;29 Tipos X Fonemas (SFG) / onset simples 0,514 0,156
Fonemas E0, N1, N2 0,699 0,036*
Fonemas N3, N4, N5 - 0,071 0,855
Fonemas N6, N7, N8, N9 0,215 0,578
2:0-2:3;29 Tipos X Fonemas (SFG) / onset simples 0,585 0,036*
Fonemas E0, N1, N2 0,240 0,429
Fonemas N3, N4, N5 0,431 0,142
Fonemas N6, N7, N8, N9 0,738 0,004*
2:4-2:7;29 Tipos X Fonemas (SFG) / onset simples 0,658 0,014*
Fonemas E0, N1, N2 0,550 0,052
Fonemas N3, N4, N5 0,748 0,003*
Fonemas N6, N7, N8, N9 0,214 0,483
Coda 0,679 0,011*
2:8-2: 11;29 Tipos X Fonemas (SFG) / onset simples - 0,237 0,375
Fonemas N3, N4, N5 -0,083 0,761
Fonemas N6, N7, N8, N9 -0,246 0,359
Onset complexo - 0,204 0,449
Coda 0,539 0,031*
3:0-3:3;29 Tipos X Fonemas (SFG) / onset simples - 0, 139 0,622
Fonemas N3, N4, N5 - 0,335 0,222
Fonemas N6, N7, N8, N9 0,108 0,701
Coda - 0,163 0,562
3:4-3:7;29 Tipos X Fonemas (SFG) / onset simples 0,160 0,568
Fonemas N3, N4, N5 - 0,840 0,766
Fonemas N6, N7, N8, N9 0,235 0,398
Onset complexo 0,444 0,098
Coda 0,312 0,258
3:8-3: 11;29 Tipos X Fonemas (SFG) / onset simples - 0,248 0,374
Fonemas N3, N4, N5 0,011 0,968
Fonemas N6, N7, N8, N9 - 0,289 0,296
Onset complexo 0,029 0,918
Coda - 0,377 0,166
4:0-4:3;29 Tipos X Fonemas (SFG) / onset simples 0,237 0,396
Fonemas N6, N7, N8, N9 0,237 0,396
Onset complexo 0,052 0,854
Coda 0,196 0,484
4:4-4:7;29 Tipos X Fonemas (SFG) / onset simples 0,066 0,815
Fonemas N6, N7, N8, N9 0,066 0,815
Onset complexo 0,094 0,738
Coda - 0,342 0,212
4:8-4: 11;29 Tipos X Fonemas (SFG) / onset simples - 0,431 0,109
Fonemas N6, N7, N8, N9 - 0,431 0,109
Onset complexo - 0,024 0,934
Coda 0,013 0,963
5:0-5:3;29 Tipos X Fonemas (SFG) / onset simples 0,258 0,353
Fonemas N6, N7, N8, N9 0,258 0,353
Onset complexo 0,345 0,207
Coda 0,532 0,041*
5:4-5:7;29 Tipos X Fonemas (SFG) / onset simples 0,125 0,657
Fonemas N6, N7, N8, N9 0,125 0,657
Onset complexo 0,115 0,683
Coda 0,041 0,884
5:8-5: 11;29 Tipos X Fonemas (SFG) / onset simples 0,283 0,307
Fonemas N6, N7, N8, N9 0,283 0,307
Onset complexo - 0,663 0,007*
Coda - 0,478 0,072

Legenda: Teste estatístico t de Student para significância do coeficiente de correlação de Spearman; nível de significância: p≤0,05; para algumas variáveis não foi possível o cálculo do coeficiente de correlação; SFG=Sistema Fonológico Geral; E0=Estado 0; N=Nível; O asterisco (*) indica os valores em que há significância estatística

Apenas na faixa etária de 5:8-5:11;29, encontrou-se correlação negativa significativa entre os tipos lexicais produzidos e o número de fonemas adquiridos na posição de onset complexo. Isso significa que quanto mais tipos lexicais as crianças produziam nessa faixa, mais instáveis eram as produções do onset complexo ou quanto menos tipos lexicais as crianças produziam, mais vezes o onset complexo era produzido corretamente.

DISCUSSÃO

Os resultados apresentados na Tabela 1 evidenciaram aumento progressivo nas médias do número de consoantes adquiridas em todas as posições possíveis, não sendo observado o fenômeno da regressão, bastante comentado em outros estudos(1,22). A regressão é geralmente analisada como um fenômeno individual, mais facilmente observada em estudos longitudinais(22). Assim, acredita-se que esse fenômeno não foi aqui observado por serem consideradas as médias referentes à aquisição de um grande número de crianças, contabilizando-se apenas o número de consoantes, sem analisá-las separadamente.

Estudos do Rio Grande do Sul, mesmo Estado em que a presente pesquisa foi realizada, apontam para aquisição completa do sistema fonológico do Português Brasileiro entre cinco anos e cinco anos e dois meses, sendo o onset complexo o último constituinte a ser adquirido(1). Porém, na presente pesquisa, nem todas as crianças apresentaram o sistema fonológico completo, mesmo aos cinco anos de idade. Isso pode se dever tanto a variações individuais(1) quanto a interferências do meio, pois a linguagem é o resultado da inter-relação do estado inicial (sistema de aquisição da linguagem) e o curso da experiência(23).

Especificamente em relação às estruturas silábicas, a aquisição seguiu a sequência: onset simples → codaonset complexo, evidenciada pela significância estatística entre as faixas etárias para cada estrutura, do mesmo modo que ocorreu em outra pesquisa(1). Isso é explicado pelo grau de dificuldade articulatória na produção dos constituintes silábicos, sendo consoante-vogal (CV) a estrutura mais simples, seguida por C-V-C e após CCV.

Com relação aos níveis do MICT(2), observaram-se estabilização rápida e crescimento linear nas consoantes do Estado 0 e Níveis 1 e 2, já que eles correspondem a fonemas plosivos e nasais, que são adquiridos precocemente no Português Brasileiro(1,19).

Os fonemas dos Níveis 3, 4 e 5 também evidenciaram crescimento linear, entretanto com estabilização mais tardia, na faixa de quatro anos a quatro anos, três meses e 29 dias. Esses níveis correspondem às plosivas /k, g/ e às fricativas /f, v, s, z/. Conforme a literatura, as primeiras podem ser adquiridas entre um ano e sete meses e um ano e oito meses(1) até dois anos e dois anos e um mês(19). As fricativas /f, v/ são adquiridas entre um ano e oito meses e um ano e nove meses(1) até dois anos e dois anos e um mês(19). De aquisição um pouco mais tardia, as fricativas /s, z/ foram registradas entre dois anos e dois anos e seis meses(1) até dois anos e quatro meses e dois anos e 11 meses(19). Assim, verifica-se que as crianças da presente pesquisa, de modo geral, apresentaram aquisição mais tardia, pois, apenas na primeira faixa etária de quatro anos, 100% das crianças apresentavam todos os fonemas dos Níveis 3, 4 e 5 adquiridos.

Já nos Níveis 6, 7, 8 e 9, correspondentes às fricativas posteriores e às líquidas, não houve 100% de aquisição em nenhuma faixa etária. Porém, na faixa etária de quatro anos a quatro anos, três meses e 29 dias, a maioria das crianças já apresentava todas essas consoantes adquiridas, o que está de acordo com a literatura(1,19).

Em relação aos tipos lexicais produzidos, de modo geral, observou-se aumento gradual, do mesmo modo que foi observado em outros estudos(24). A diferença estatística entre a primeira faixa e a faixa de três anos e quatro meses e três anos, sete meses e 29 dias referente ao incremento de tipos lexicais produzidos ocorreu de modo semelhante a um estudo alemão com metodologia similar(24).

O aumento das médias dos tipos lexicais entre as faixas foi mais acentuado na fase inicial da aquisição, de modo semelhante a um estudo com crianças francesas, em que houve uma progressão acentuada nas medidas de diversidade lexical entre 24 e 36 meses(25). Isso pode estar relacionado à fase de explosão do vocabulário, período em que ocorre crescimento vertiginoso no número de itens lexicais produzidos pelas crianças(21).

O aumento constante e gradual do vocabulário ocorre por este ser o único elemento da linguagem com possibilidade infinita de crescimento, ou seja, adquirimos novas palavras até o fim da vida, embora os itens de nosso cotidiano sejam predominantemente adquiridos no período inicial de aquisição(21).

Ainda sobre o número de tipos lexicais produzidos, verifica-se por meio do desvio padrão, grande variabilidade entre as crianças de mesma faixa etária. Isso ocorre pelas variações individuais e pelos fatores externos que podem influenciar a aquisição da linguagem, conforme já mencionado(23).

Quanto às inter-relações encontradas, o fato de ter-se apenas uma correlação negativa pode ser explicado por estudos que encontraram que crianças com grandes vocabulários têm sistemas fonológicos mais complexos do que aquelas com vocabulários pequenos. Um grande vocabulário pode gerar uma exigência de um sistema fonológico mais avançado(6). Complementarmente, alterações de vocabulário em crianças com alterações de linguagem são justificadas por dificuldades no processamento da informação, o que envolve as representações fonológicas e semânticas correspondentes a um novo item lexical(4).

Ainda, um estudo(26) que comparou o desempenho em prova de vocabulário expressivo de crianças com e sem desvio fonológico evidenciou que a nomeação correta dos itens (substantivos) do teste foi significativamente maior nas crianças com desenvolvimento fonológico típico. Isso indica que, quanto melhor a fonologia, melhor será o vocabulário, de modo geral, o que também foi indicado pelos resultados do presente estudo.

Palavras com propriedades fonéticas que espelham as vocalizações pré-linguísticas serão adquiridas mais cedo do que palavras com traços ou estruturas silábicas que não estão presentes no repertório pré-linguístico da criança(6). Essa afirmação explica por que a maioria das correlações encontradas nas faixas etárias iniciais se refere aos fonemas na posição de onset simples e nos níveis iniciais do MICT(2).

O maior número de correlações positivas encontrado no presente estudo foi referente à coda. Um estudo realizado com crianças americanas de quatro anos de idade demonstrou que a habilidade de reconhecimento de rimas está diretamente relacionada com a aquisição incidental de palavras novas(27). Assim, sendo a coda o final da sílaba, podendo estar no final da palavra, supõe-se que crianças com melhores habilidades de reconhecimento de rimas podem ter mais facilidade no reconhecimento e produção da coda, o que influencia também na ampliação do vocabulário.

A única correlação negativa estatisticamente significante foi entre a produção dos tipos lexicais e a produção de fonemas na posição de onset complexo, na última faixa etária aqui pesquisada. Uma explicação possível é que, nessa faixa etária, as crianças já apresentam um vocabulário mais rico com classes gramaticais mais difíceis, sendo que maior exigência semântica pode corresponder a mais erros na produção fonológica(28) e essa dificuldade fonológica é mais acentuada na estrutura silábica mais complexa e de aquisição mais tardia. Além disso, alguns encontros consonantais levam mais tempo para serem adquiridos, mesmo que sejam palavras com alta frequência no input das crianças(29).

Assim, verifica-se que o vocabulário e a fonologia comportam-se de modo semelhante durante o desenvolvimento típico da linguagem e que apresentam inter-relações entre si, sendo a maioria das correlações positivas. Destaca-se que esses dados são reforçados pelas pesquisas internacionais aqui mencionadas(6,27-29), evidenciando que a relação entre léxico e fonologia existe e é comum às diferentes línguas.

CONCLUSÃO

No desenvolvimento típico da linguagem, o sistema fonológico apresenta crescimento gradual com o avanço da idade, tanto para o número de consoantes adquiridas no sistema fonológico geral e nas diferentes estruturas silábicas quanto nos níveis do MICT(2). Quanto às estruturas silábicas, a ordem de aquisição foi onset simples, seguido da coda e do onset complexo. Além disso, nem a coda nem o onset complexo apresentaram 100% de aquisição, mesmo nas últimas faixas etárias pesquisadas. Em relação aos níveis do MICT(2), a ordem de aquisição foi: fonemas do Estado 0, Níveis 1 e 2 → Níveis 3, 4 e 5 → Níveis 6, 7, 8 e 9. O último grupo não chegou a 100% de aquisição em nenhuma faixa etária.

O comportamento dos tipos lexicais produzidos foi semelhante ao que ocorreu com as consoantes, ou seja, houve progressão gradual. Entretanto, na primeira faixa de cinco anos houve pequena regressão, mas sem significância estatística.

Verificou-se a presença de correlações entre o vocabulário e a fonologia, sendo a maioria positiva, indicando que ambos os sistemas são interdependentes, ou seja, quanto mais tipos lexicais a criança produzir, melhor será seu sistema fonológico de modo geral. Apenas o onset complexo demonstrou correlação negativa estatisticamente significante em relação aos tipos lexicais na última faixa etária pesquisada, indicando que essa estrutura silábica pode exigir mais do processamento linguístico, influenciando negativamente o vocabulário.

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