versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.36 no.5 Rio de Janeiro 2020 Epub 18-Maio-2020
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00054420
A pandemia relacionada ao novo coronavírus (SARS-CoV-2), causador da COVID-19 1, vem impactando negativamente na saúde da população e na economia mundial 2. Dados publicados em 28 de abril de 2020 registram a doença em 213 países, com aproximadamente 2.954.222 casos confirmados, correspondendo a mais de 202.597 óbitos no mundo 3, sendo os idosos o grupo mais vulnerável. É importante ressaltar que a subnotificação dos dados é uma questão pertinente a todos os países que enfrentam a doença, portanto, o quantitativo apresentado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e países está sub-representado. No Brasil, após notificação do primeiro caso, em fevereiro de 2020, observou-se um crescente aumento no número de casos confirmados, suspeitos e óbitos relacionados a COVID-19 4.
Dada a inexistência de profilaxia, tratamento específico e sua alta taxa de transmissibilidade, o Brasil decretou Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) 5,6 e, seguindo recomendações e experiências internacionais, adotou o isolamento social como a principal medida de prevenção e controle da doença 7. Foram, assim, suspensas grande parte das atividades laborais, físicas e recreativas 7,8,9,10,11,12, sendo proibida a permanência em praias e praças públicas, estando sujeitos os cidadãos à punição penal por desobediência 13,14, alterando ainda mais a dinâmica social.
Importantes esforços da vigilância e serviços de saúde estão, principalmente, focados na contenção da epidemia e promoção de estratégias que viabilizem a ação coordenada e oportuna do sistema de saúde, o qual já está sobrecarregado. Entretanto, as doenças crônicas e comorbidades preexistentes continuam a ser um problema de grande magnitude - principalmente para idosos, grupo mais afetado pelo vírus - e que requerem ações de tratamento, controle e monitoramento contínuos, associados ao estilo de vida 15, além do impacto econômico que a inatividade física da população pode gerar aos sistemas de saúde e indivíduos 16.
Apesar de ser uma medida estratégica para a contenção de casos, o isolamento social pode trazer consequências negativas não intencionais, impactando no aumento do sedentarismo e inatividade física da população, considerada por muitos autores, por si só, como uma pandemia 17. A estada prolongada limitada à residência pode promover a diminuição da interação social e maiores períodos de imobilidade (sentado ou deitado) direta ou indiretamente relacionados à maior utilização de equipamentos virtuais como TV, computadores, celulares ou outros 18. Podem também ocorrer alterações no nível motivacional para a prática de atividades físicas, pois estas, muitas vezes, são associadas à necessidade de estrutura física, equipamentos complexos e de alto custo; locais específicos como parques, praças, clubes; e/ou suporte profissional presencial 19.
Entretanto, os benefícios da atividade física estão relacionados à sua prática e não exclusivamente a esses fatores. Sua realização apresenta efeitos imediatos e a longo prazo na saúde 20: além de diminuir efeitos nocivos relacionados a grandes períodos de imobilidade, favorece o controle das doenças crônicas e comorbidades a elas associadas 15, e melhora a resposta imunológica a infecções 21, o que pode impactar na gravidade dos sintomas e desfecho do quadro clínico de pacientes com COVID-19 22 ou outras doenças transmissíveis; promove ganhos funcionais globais, qualidade de vida e favorece a diminuição do estresse e ansiedade, sintomas comuns em situações de crise social 23.
Por sua vez, a inatividade física é considerada fator de risco chave para doenças crônicas não transmissíveis, como as cardiovasculares, cânceres e diabetes 15,20, principais comorbidades associadas a quadros complexos da síndrome respiratória aguda grave (SRAG) por COVID-19 22 e principais causas de morte no mundo 24. Assim, o desenvolvimento e adoção de metodologias alternativas que favoreçam a autonomia das pessoas e promovam a realização e manutenção da atividade física são de extrema importância para a promoção da saúde, prevenção e controle de doenças 25. Nesse sentido, o estímulo à realização de atividades físicas domiciliares apresenta-se como uma proposta importante e viável, sobretudo para grupos vulneráveis e/ou durante períodos emergenciais de restrição social, como vivenciados pela pandemia de COVID-19.
A despeito dessas questões, até o presente momento o Ministério da Saúde e governos estaduais e municipais não apresentaram, por meio dos dispositivos de ação para o enfrentamento da COVID-19, propostas e recomendações para a população e estabelecimentos sobre a importância da realização de atividade física durante períodos de reclusão social. O Conselho Federal de Educação Física (CONFEF), por sua vez, recomendou aos profissionais de educação física o estímulo e orientação ao beneficiário a permanecer fisicamente ativo, inclusive na residência, respeitando eventuais contraindicações específicas 26. Porém, essas recomendações não foram estendidas aos estabelecimentos.
Haja vista a incerteza sobre quando poderá ser seguro deixar o isolamento, a situação de inatividade física pode se agravar. A importância de recomendações por parte dos órgãos reguladores e instâncias governamentais está centrada no potencial de influenciar estabelecimentos e profissionais à adoção de práticas. Além disso, têm um importante papel em conferir legitimidade e regulamentar práticas inovadoras, respaldando o exercício profissional e encorajando profissionais a ampliar suas práticas.
É importante que o Ministério da Saúde e Secretarias de Saúde tenham planos intersetoriais para a promoção de atividade física, fortalecendo o combate à inatividade física, e a promoção de estilos de vidas saudáveis como prevenção e tratamento de doenças crônicas 17. Nesse sentido, é urgente a emissão de recomendações oficiais gerais à população com relação à prática de atividade física, em particular as domiciliares, no período de isolamento social, bem como a profissionais e estabelecimentos.
Programas de atividades físicas domiciliares são considerados eficazes, seguros e de baixo custo, e quando realizados de forma direcionada, de acordo com a especificidade de cada indivíduo, promovem ganhos nos componentes da aptidão física relacionados à saúde e habilidades, impactando positivamente na funcionalidade global e qualidade de vida destes 27,28. Apresentam, assim, uma alternativa promissora e eficaz para o aumento e manutenção dos níveis de atividade física da população e de resposta imunológica ao SARS-CoV-2, a ser adotada como política pública de saúde.
Além de importantes estratégias gerais, como as recomendadas pela OMS para a manutenção do estilo de vida ativo - como a realização de, pelo menos, 150 minutos semanais de atividade física moderada para adultos 24 - alguns indivíduos podem necessitar de programas específicos, adequados às suas condições físicas e psicossociais, o que pode favorecer a adesão e atenuar riscos relacionados a comorbidades preexistentes 29.
Sempre que possível, devem ser considerados os componentes para a prescrição de atividade física - frequência, intensidade, tempo, tipo, volume, e progressão da atividade - e verificar os possíveis efeitos que cada componente pode exercer e sofrer em relação às especificidades dos indivíduos e grupos, como faixa etária, progressão de doenças, tratamentos específicos, sintomas, situação de vulnerabilidade social, status laboral, fragilidade emocional, risco de quedas, orientação religiosa, entre outros 29.
Assim, é apresentada uma proposta de abordagem holística que relacione a prática de atividade física não apenas ao status funcional e à autoavaliação subjetiva, pelos praticantes, de seu nível de aptidão física para a realização do programa proposto, mas apresente ações factíveis dentro das preferências e possibilidades de cada pessoa.
Quando possível, oportunizar uma variedade de modalidades como dança, exercícios resistidos, ioga, jogos e outros; e compreender fatores que podem influenciar no declínio funcional global e condições que levem a incapacidades 30, bem como aspectos físicos, sociais, emocionais e espirituais que possam impactar na prática de atividade física, auxilia na adesão e adequação da proposta ao grupo ao qual é direcionado.
Assim, a criação de canais de comunicação remotos entre profissionais e usuários/clientes pode possibilitar a adequação, quando necessário, do programa ofertado e avaliar seus possíveis impactos à saúde. Essas ações podem ser adotadas por profissionais de educação física liberais, como personal trainers, bem como pelos estabelecimentos de saúde e atividade física, públicos e privados. Os profissionais de educação física vinculados às unidades de atenção primária, por exemplo, podem desenvolver programas de atividade física - baseados em materiais instrucionais e comunicação remota - prescrições e avaliações, de acordo com grupos, favorecendo a continuidade do cuidado e a manutenção do vínculo.
Essas recomendações são válidas tanto para períodos de isolamento social, imposto pela situação de epidemias e pandemias, quanto para períodos de “normalidade”, direcionadas a grupos vulneráveis ou com fragilidades que dificultam a saída de casa, ou por preferências dos indivíduos.
Reforçamos que a prática de atividades físicas, inclusive em domicílio, deve ser uma política de saúde pública amplamente divulgada e difundida que se adeque às novas dinâmicas sociais e busque incentivar a autonomia e independência das pessoas, fortalecendo o autocuidado apoiado.
É importante levar em consideração que períodos de isolamento social, normalmente, não são experienciados a longo prazo, entretanto, seus impactos podem ser vivenciados por toda uma vida. Portanto, requerem ações coordenadas e pautadas em uma concepção de saúde ampliada, atenta às diferenças entre grupos e iniquidades em saúde. Nesse sentido, torna-se emergencial a recomendação de estratégias que auxiliem as pessoas a manterem-se ou tornarem-se fisicamente ativas em domicílio, fomentando a autonomia destas no gerenciamento e tomada de decisões sobre suas vidas.