versão impressa ISSN 0021-7557versão On-line ISSN 1678-4782
J. Pediatr. (Rio J.) vol.95 supl.1 Porto Alegre 2019 Epub 18-Abr-2019
http://dx.doi.org/10.1016/j.jped.2018.11.005
Define-se como respirador oral todo indivíduo que respira pela boca em decorrência de adaptação patológica, na presença ou não de obstrução nasal e/ou faríngea.1 A função primordial do nariz é levar o ar inspirado aos pulmões em condições ideais para que ocorra a hematose, ou seja, aquecido, umidificado, livre de micro-organismos e de poluentes presentes no ar ambiente.2
Na criança, a respiração nasal é muito importante se comparada à do adulto. Já ao nascimento, a respiração nasal é condição obrigatória em virtude do posicionamento alto da laringe em relação à cavidade oral, o que lhe permite ser amamentado e respirar. A localização alta da epiglote, nesse caso, dificulta a entrada de ar às vias aéreas inferiores quando o fluxo é oriundo da boca, promove intenso desconforto respiratório na presença de obstrução nasal bilateral.1,2
Além disso, a respiração nasal na criança auxilia no crescimento dos ossos centrais da face e no arranjo funcional de toda a musculatura relacionada à respiração e à mastigação.1,2 Em condições de obstrução nasal crônica pode ocorrer hipodesenvolvimento dos processos palatinos da maxila, que levam ao aparecimento de palato duro em ogiva. Além disso, a respiração oral exige diversas adaptações musculares e posturais para se adequar a uma nova forma de respirar, de mastigar e mesmo de deglutir os alimentos.2
É comum, por exemplo, encontrar-se abaixamento da mandíbula, musculatura labial hipotônica e alterações nas fases da deglutição nessas crianças que, se não identificadas e tratadas precocemente, podem se tornar irreversíveis. Além disso, a respiração oral concomitante à obstrução nasal pode predispor ao colapso de vias aéreas e, consequentemente, a distúrbios respiratórios do sono (DRS). Na figura 1 apresentamos o mecanismo de busca para os textos usados na presente revisão.
A prevalência de respiração oral crônica em crianças tem sido pouco estudada e desconhece-se a sua distribuição nas diferentes faixas etárias. Valores entre 3,4% e 56,8% têm sido documentados na dependência da população estudada (sadia, com problemas odontológicos, respiratórios ou outros), faixa etária avaliada e método diagnóstico empregado (questionário, exame físico).3-5
A respiração oral crônica pode determinar alterações esqueléticas e miofuncionais que comprometem o crescimento facial. Muitas crianças com respiração oral apresentam fácies alongada, fechamento incompleto dos lábios, lábio superior encurtado com acentuada concavidade, lábio inferior evertido e presença de olheiras. Caracterizam o que se denomina de fácies adenoidiana.6-9 À avaliação cefalométrica documenta-se aumento do eixo Y (fig. 2).
A presença de roncos, associados ou não à apneia ou dificuldade respiratória durante o sono, é queixa muito referida entre pais ou cuidadores dessas crianças, seguida por sono agitado, despertares noturnos frequentes,1 bruxismo10 e, algumas vezes, sonambulismo.10-12 Frequentemente a respiração oral associa-se a outros hábitos orais deletérios, como chupar o dedo, chupar chupeta, chupar e morder os lábios, roer as unhas, entre outros, com comprometimento da qualidade de vida.13
São observados também problemas de mastigação, deglutição e fala (fonemas linguodentais). É comum haver atresia do arco maxilar e a presença de palato ogival, associadas à mordida cruzada, que podem ser observadas já em pré-escolares.6-9,11
Além disso, entre esses pacientes é comum a presença de DRS, tais como roncos, aumento da resistência das vias aéreas ou mesmo apneia, com frequência variável entre 3,3% (crianças com 5-6 anos) e 42% (respiradores orais).5 A síndrome de apneia obstrutiva do sono (SAOS) é a forma mais grave e intensa de DRS e as crianças acometidas podem ter comprometimento neurocognitivo revelado por déficit de atenção e concentração, hiperatividade, cansaço matutino, diminuição na habilidade conceitual e de raciocínio verbal e não verbal, transtornos escolares,14,15 ou mesmo retardo de ganho pôndero-estatural.1,2Cor pulmonale16 e hipertensão arterial sistêmica17 são complicações atualmente muito raras associadas a SAOS.
Entre as várias causas de respiração oral na criança as mais frequentes são a hipertrofia de tonsilas faríngeas (adenoides) e/ou palatinas (amigdalas) e a rinite alérgica não tratada e, consequentemente, não controlada, embora não possamos esquecer outras etiologias, como a atresia de coanas uni ou bilateral, as variações anatômicas das conchas nasais, o corpo estranho nasal, as deformidades septais ou as massas nasais e entidades ainda mais raras que podem provocar congestão nasal, como a fibrose cística, a discinesia ciliar primária e as imunodeficiências primárias.
A hipertrofia de tonsilas faríngeas e/ou palatinas, embora possa estar presente em fase precoce da vida, em geral torna-se aparente ao redor dos dois anos de vida, pois acompanham o desenvolvimento do sistema linfoide e podem acentuar-se com o progredir da idade. Na maioria das vezes o seu diagnóstico é confirmado pela radiografia simples lateral da face e em casos duvidosos pela nasofibroscopia. A hipertrofia das tonsilas palatinas pode ser confirmada pela simples oroscopia.
A rinite pode ser definida como a inflamação sintomática da mucosa nasal e caracteriza-se por obstrução nasal, rinorreia (anterior e posterior), espirros e prurido nasal. Constitui um problema muito comum desde a idade pré-escolar, pode atingir até 40% das crianças.18 Foi demonstrado que a congestão nasal era a queixa mais frequente nas crianças com rinite em idade pré-escolar.19
A rinite alérgica, quando não adequadamente controlada, pode evoluir com obstrução nasal crônica e, consequentemente, respiração oral de suplência. Além do quadro clínico característico, o exame físico desses pacientes evidencia hiperemia da conjuntiva ocular, olheiras, sulco nasal transverso e conchas nasais hipertrofiadas, que dificultam a livre passagem do ar. Muitas vezes, existe associação da rinite alérgica com a hipertrofia de tonsilas faríngeas,20-22 o que piora consideravelmente o quadro respiratório.23,24 Quando avaliadas por questionários específicos, crianças com rinite alérgica persistente moderada-grave apresentam maior frequência de distúrbios do sono do que crianças controle, particularmente nos domínios de distúrbios respiratórios noturnos, sonolência diurna e parassonias.25,26 Além disso, há evidências de associação entre a gravidade da rinite alérgica e a intensidade dos distúrbios do sono.25,27
Cho et al. confirmaram essa afirmação ao estudar a presença de sensibilização alérgica como fator de risco para quadros mais graves de hipertrofia de tonsilas faríngeas e/ou palatinas.21 Os autores determinaram os níveis de IgE específica (sIgE) a alérgenos em soro e em tecido tonsilar extirpado (obtido em cirurgia de remoção) de 102 crianças respiradoras orais e com hipertrofia de tonsila faríngea. Segundo a presença ou não de sIgE, identificaram três grupos: alérgico (sIgE em soro e tecido, n = 55), com alergia local (sIgE apenas tecidual, n = 17) e sem alergia (ausente no soro e no tecido, n = 32). Na população total, 70,6% dos pacientes eram sensíveis a pelo menos um alérgeno (soro e/ou tecido). Os níveis teciduais de sIgE foram significantemente mais elevados do que os séricos e com predomínio de sIgE a inalantes no tecido da tonsila faríngea e sIgE a alimentos na tonsila palatina. Prevalência significantemente mais elevada de asma, de rinite alérgica, de sintomas mais intensos e maior consumo de medicamentos de alívio foram observados entre os alérgicos em comparação com os não alérgicos. Esses dados são evidência inequívoca de que a associação de alergia agrava os quadros alérgicos nesses pacientes.21 Entretanto, esse fato não se confirmou em pacientes com dermatite atópica.23
Os distúrbios respiratórios do sono (DRS, roncos, respiração oral e apneia obstrutiva do sono) têm sido identificados como fatores de risco para o retardo de crescimento associado à obstrução crônica das vias aéreas superiores, seja por hipertrofia de tonsilas faríngeas e/ou palatinas ou rinite alérgica.28-35
O sono é definido como um estado reversível de desengajamento perceptivo e falta de resposta ao meio ambiente.36 Em mamíferos são identificados pelo menos dois estágios básicos de sono documentados por sinais de atividade cortical (eletroencefalograma, EEG), movimentos rápidos dos olhos e tônus muscular: o estágio de sono sincronizado ou de sono não REM (Rapid eye moviment; NREM) e o de sono REM (Rapid eye movement).36
De maneira simplista, o sono inicia-se pelo estágio de sono NREM, que é caracterizado por movimentos oculares rotatórios lentos, redução do tônus muscular e atividade cerebral fragmentada e de baixa amplitude.37 Esse estágio é composto por três fases: a primeira é uma fase transitória e curta que é seguida por uma segunda em que a atividade cerebral tem maior amplitude, a terceira é caracterizada por ondas lentas de grande amplitude e é conhecida como sono profundo, no qual há o aparecimento de ondas delta e liberação do hormônio de crescimento (GH).
O segundo estágio, denominado de sono REM, não é dividido em estágios e caracteriza-se por movimentos rápidos dos olhos, variações de frequência cardíaca e respiratória, pressão arterial e fluxo sanguíneo cerebral diminuído. A atividade mental durante o sono REM está associada ao sonho, tem-se como base a lembrança de sonhos relatada após cerca de 80% dos despertares nesse estado de sono.38,39 Os estágios do sono ocorrem de maneira cíclica durante a noite com a sucessão dos estágios 1 a 3 do sono NREM e sono REM em ciclos de 70 a 110 minutos com aumento da duração dos períodos de sono REM e redução do sono de ondas lentas.
Como mencionado anteriormente, é durante o sono profundo ou de ondas lentas (delta) que há a maior liberação do hormônio liberador do GH (GHRH) pelo hipotálamo.40-42 Estudos experimentais em animais documentaram que a administração do hormônio liberador de GH (GHRH) aumenta o sono NREM e que a inibição da sua secreção suprime a duração e profundidade do sono.43-46 Uma vez liberado, o GH atuaria em sítios específicos (via eixo GH-IGF) e desenvolveria as suas diferentes funções, entre elas o crescimento. Alterações na homeostase do processo do sono poderão interferir com a liberação fisiológica dessa rede hormonal.
Evidências apontam para a redução da liberação hipofisária do GH em indivíduos com obstrução das vias aéreas.46 Embora a causa do retardo de crescimento não seja totalmente esclarecida, especula-se que os níveis noturnos de GH sejam baixos, haja falta de apetite e disfagia que resultem em ingestão calórica baixa, hipoxemia noturna, acidose noturna e aumento do consumo energético após o aumento do trabalho de respiração. A remoção cirúrgica das tonsilas faríngeas e palatinas tem se acompanhado por retomada do crescimento normal para a idade nessas crianças,28-31,47 assim como o controle da rinite alérgica.34
Estudo experimental com ratos documentou estar a obstrução de vias aéreas superiores acompanhada por redução nos níveis hipotalâmicos e séricos de GHRH, assim como nos níveis de receptores para GHRH.43 Nesses animais, o tempo de vigília estava aumentado e o sono de ondas lentas, o sono paradoxal e as ondas de baixa atividade estavam reduzidos. A administração de ritanserina (antagonista seletivo do receptor de serotonima) aliviou esses efeitos, ou seja, normalizou o conteúdo hipotalâmico de GHRH, diminuiu a duração da onda, aumentou a duração e a profundidade do sono de ondas lentas e reduziu o retardo de crescimento observado nesses animais. Assim, os autores sugerem estar o retardo de crescimento observado nesses animais, com obstrução de vias aéreas superiores, associado ao GHRH hipotalâmico.43 Anormalidades no eixo GHRH/GH são subjacentes a ambos, com retardo de crescimento e sono de ondas lentas associado à obstrução de vias aéreas superiores.43
Em humanos, a avaliação de pacientes com hipertrofia das tonsilas faríngeas e/ou palatinas tem fornecido subsídios importantes para o melhor entendimento da relação entre obstrução de vias aéreas e déficit de crescimento. Revisão sistemática, seguida por metanálise, identificou 20 estudos entre 211 citações em que se avaliou a relação entre a presença de tonsilas faríngeas hipertrofiadas, crescimento, marcadores do crescimento e distúrbios respiratórios do sono em crianças.35 A análise conjunta dos dados de mais de 300 pacientes possibilitou confirmar, de modo mais efetivo, os resultados obtidos previamente. Houve aumento significante em relação aos valores pré-cirúrgicos de peso (Diferença mínima significante (DMS) = 0,57; IC95% 0,44 a 0,70), estatura (DMS = 0,34; IC95% = 0,20 a 0,47), avaliados por escore-z, assim como dos níveis séricos de IGF-1 (DMS = 0,53; IC95% = 0,33 a 0,73) e IGFBP-3 (DMS = 0,59; IC95% = 0,34 a 0,83). Concluem os autores que médicos de atenção primária e especialistas devam considerar um quadro de DRS ao avaliar crianças com déficit de crescimento.35
Todavia, a falta de homogeneidade das populações avaliadas foi um fator limitante para as conclusões observadas e fez com que novos estudos fossem feitos. Tatlıpınar et al. avaliaram os níveis séricos de IGF-1 e de IGFBP-3, assim como a relação entre o volume da tonsila faríngea e a nasofaringe (TF/N), de pacientes (três a 10 anos) com apneia do sono secundária à hipertrofia de tonsilas faríngeas.48 A remoção cirúrgica acompanhou-se por aumento de peso, de estatura e dos níveis séricos de IGF-I e IGF-BP3. Entretanto, não houve correlação significante entre a elevação dos biomarcadores e o índice TF/N.48
Estudo mais recente em crianças pré-púberes, maiores de cinco anos, com quadro de hipertrofia de tonsilas faríngeas, documentou, após a extirpação das tonsilas, além de aumento significante do peso, da estatura e do índice de massa corporal, aumento significante dos níveis séricos de IGF-1 e de grelina. A grelina está predominantemente envolvida na regulação do ciclo sono-vigília, está associada a privação do sono, além de ter papel na regulação do metabolismo. Definida como o hormônio da fome, interage com o GH, leptina e orexinas na regulação do circuito do sono, enfatiza exercer papel no balanço energético durante o sono.49 Segundo os autores, o retardo de crescimento nessas crianças estudadas estaria relacionado aos menores níveis séricos de IGF-1.50
O nariz é o órgão responsável pelo olfato, essencial à respiração, através da umidificação, do aquecimento e da filtragem do ar inalado, permitindo ainda a drenagem dos seios paranasais. As vias aéreas superiores sofrem alterações importantes durante a infância e idade pré-escolar, com um aumento de 6% para 40% do volume respiratório nasal, relativamente ao adulto, durante os primeiros cinco anos vida.51
Desde os primeiros meses de vida, justificado pelas condicionantes anatômicas, a respiração nasal é preferencial,1,52 metade das crianças apresenta hipoxemias significativas se o nariz estiver congestionado.52
A respiração oral pode ter consequências dramáticas, inclusive retardo no crescimento, realça a importância do reconhecimento precoce dessa entidade, que deve ser diagnosticada e corretamente controlada, seja por abordagem clínica ou mesmo cirúrgica.