versão impressa ISSN 1414-8145versão On-line ISSN 2177-9465
Esc. Anna Nery vol.22 no.4 Rio de Janeiro 2018 Epub 23-Nov-2018
http://dx.doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2018-0116
Transtorno do Espectro Autista (TEA), ou autismo, caracteriza-se como distúrbio relacionado ao neurodesenvolvimento e tem, usualmente, sua manifestação na primeira infância. Compreende dois domínios, um associado com dificuldade de comunicação e interação social; e outro referente a comportamentos restritivos e repetitivos.1 Sua prevalência mundial é da ordem de 10/10.000 crianças, sendo superior nas do sexo masculino; para cada uma menina, cinco meninos são autistas.2
O governo brasileiro demonstra esforços na atenção a essa população e sua família, sobretudo em termos de direitos, apoiado na Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, que confere, dentre outras questões, garantia ao diagnóstico precoce, atendimento multiprofissional e acesso às informações que auxiliem no diagnóstico e tratamento.3
A Agenda Nacional de Prioridades de Pesquisa em Saúde (ANPPS) indica necessidade de maiores investimentos em estudos relacionados à saúde mental.4 Nesse sentido, identifica-se na literatura de saúde recorrência de estudos sobre o autismo, entretanto poucos voltados a explorar a perspectiva de pais e responsáveis.1,5
A família é o primeiro ambiente de socialização da criança e o contexto primário de seu cuidado; tendo a potencialidade de acolher suas necessidades, com vistas ao suporte e promoção de seu potencial de desenvolvimento. Nessa perspectiva, o surgimento de uma condição crônica e o seu manejo no seio das interações familiares são um desafio, o que pode determinar o enfraquecimento dos laços familiares e de sua estrutura.6 Face ao exposto, o presente estudo toma como pergunta de pesquisa: "Como a família vivencia o cuidado da criança diagnosticada com TEA?" E como objetivo: conhecer a experiência da família no cuidado da criança com Transtorno do Espectro Autista e discutir possibilidades do cuidado em saúde.
Diante do interesse em utilizar a abordagem qualitativa para compreender o significado de experiências e vivências de relações sociais,7 utilizou-se como referencial teórico o Interacionismo Simbólico (IS), por revelar-se pertinente, pois se volta à interação, na qual os indivíduos são protagonistas, valorizando o significado atribuído às suas experiências. É a partir da interação social que as pessoas se relacionam e conhecem o mundo em que estão inseridas.8
Vinte e dois participantes de 15 famílias de crianças diagnosticadas com TEA, integraram o estudo. Adotou-se o conceito de criança do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), ou seja, de 0 a 12 anos de idade incompletos.9 Os critérios de seleção dos participantes foram: a) ser pai, mãe/ou responsável de crianças com TEA; b) ter acima de 18 anos.
Os participantes foram identificados a partir da primeira letra do grau de parentesco - mãe (M), pai (P) ou irmão (IR) - com a criança, identificada como caso índice (C) da pesquisa, seguido da ordem em que a entrevista foi realizada.
A pesquisa abarcou famílias de dois municípios do interior do estado de São Paulo, 14 residentes no município A e uma no município B. Ressalta-se que este último surgiu como cenário potencial para localização de participantes, mas, ao contatar as famílias, pode-se apreender que a idade das pessoas com TEA era de maiores de 12 anos, exceto uma.
O convite inicial para o estudo aconteceu a partir de atividade junto ao grupo com famílias de crianças autistas existentes em unidade de saúde do município A. Após projeção de filme sobre o tema, houve uma roda de conversa sobre ele e as experiências vivenciadas pelas famílias, ocasião em que se apresentou o estudo e se convidou à participação nele. Daqueles que manifestaram interesse, os contatos telefônicos foram obtidos e, posteriormente, confirmou-se o interesse e agendaram-se as entrevistas.
A entrevista semiestruturada foi a estratégia de coleta de dados, pois oportuniza a obtenção de dados de natureza objetiva e subjetiva, em que o entrevistado tem a possibilidade de narrar sobre o tema proposto, sem respostas ou condições prefixadas pelo pesquisador.10 Foram realizadas no ambiente de escolha da família, sendo que nove aconteceram na unidade de saúde e seis em domicílio; com durações distintas, variando de 45 a 90 minutos, com duração média de 60 minutos cada, no período de outubro de 2016 a março de 2017.
Designou-se como método a Análise de Narrativa. Considera-se que as narrativas seguem uma ordem sequencial, baseadas no enredo, buscando-se recapitular os fatos, os personagens, o tempo, o espaço e o ambiente da crônica. Assim, ao analisar uma narrativa, é empregado método de investigação do íntimo do sujeito, tornando públicos pensamentos, sentimentos e significados que dizem respeito a si mesmo, bem como a cenários e personagens do seu cotidiano.11
A análise dos dados ocorreu em cinco etapas, primeiro realizou-se a transcrição das entrevistas na íntegra para proceder às etapas do método: leitura e releitura dos dados buscando identificar o tema central das narrativas; apontamento das impressões globais; especificação dos focos de conteúdo a serem incorporados para a reconstrução da história e uma releitura reflexiva com especificação de trechos representativos dos temas.12
Todas as recomendações éticas para pesquisas com seres humanos, contidas na Resolução nº 466/2012, foram seguidas, e o estudo foi aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos sob o parecer número 1.710. 625.
A análise dos dados permitiu apreender duas categorias e cinco subcategorias. As categorias foram divididas e subdividas com base nas semelhanças de grupos de falas de participantes distintos (Quadro 1).
Quadro 1 Categorização e subcategorização dos resultados
PROCESSO DIAGNÓSTICO: COMPORTAMENTOS INUSUAIS E RELAÇÕES DUAIS | CUIDADO COM A CRIANÇA AUTISTA: RELAÇÕES E PROSPECÇÃO PARA O FUTURO |
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Comportamentos da criança e o diagnóstico | Cuidado e relações intrafamiliares |
Profissionais e a incerteza diagnóstica | Cuidado e relações extrafamiliares |
Esperança na caminhada |
Fonte: Elaborado pelos autores.
A trajetória diagnóstica da criança está marcada pela interação da família com comportamentos pouco comuns e de certa forma agressivos da criança, sobretudo quando contrariada, e pela dualidade de opiniões de pessoas do seu entorno social acerca de tais comportamentos. A forma com que a família interpreta os símbolos expressados pela criança com TEA na interação com os membros familiares e sociedade dá maior significado aos comportamentos característicos. O IS traz que a interação social é simbólica, intencionalmente emitimos símbolos ao interagirmos com outras pessoas, a dificuldade de interação expressada pela criança com TEA direciona o olhar da família no diagnóstico.
A família identifica que certos comportamentos da criança, sobretudo em situações onde sente aparente desconforto e/ou é contrariada, são agressivos e pouco comuns. Ela fica atenta às situações onde isto acontece e mantém esforços compreensivos, de forma a ir identificando recorrências de componentes na cena. Este processo efetiva significações em termos de desejos imputados no comportamento manifesto que são então considerados no cotidiano familiar.
Muitos desses entendimentos revelam desconfortos em espaços e práticas sociais típicos da infância, com desdobramentos ao convívio social, tanto para a criança quanto para a família. O isolamento social da família que possui um membro com doença crônica é frequente; isso ocorre por diversas razões: fase de descoberta da doença, adequação dos medicamentos, reconhecimento dos comportamentos, resiliência do funcionamento familiar, o medo do novo, enlaçado ao preconceito e à insegurança.
A família convive com comportamentos marcantes por meio dos quais interpreta que a criança busca sinalizar seus desejos ou desconforto nas interações sociais. O desconforto diante do barulho intenso em espaços sociais e mudanças de rotinas foram destacados como pouco tolerados pela criança com TEA, integrando evidências que compuseram o diagnóstico. Nesta direção, destacam também aqueles relativos à alimentação, o ato de alimentar é foco das mães no cuidado com a criança, desde a amamentação após o nascimento e no decorrer das fases do crescimento, sendo esse cuidado um termômetro no bem-estar físico e emocional de seu filho. Esse cuidado alimentar é aliado ao diagnóstico precoce frente às descrições maternas.
Um dos comportamentos do C10 que chama a atenção é que eu não posso levá-lo em aniversários, festa junina, comemoração do dia das mães, porque ele não gosta de ficar onde tem muita gente [...] se irrita com o barulho, corre para se esconder, bate a mão na cabeça e coloca a mão na orelha para não ouvir nada (M10).
Na escola, o C2 não gosta que mudem a rotina. Não gosta quando a professora falta e colocam outra no lugar. Também não gosta que outro coleguinha sente no lugar dele, que mexa no material [...] se alguém mudar o que ele fez, fica nervoso (M2).
Ele tem compulsão alimentar quando fica nervoso [...]. Por exemplo, ele acabou de jantar [...] já abre os armários e come dois pacotes de bolacha [...] saco de pirulito, é perigoso ele comer o saco inteiro de uma só vez (M10).
Ressalta-se que a família, inicialmente, interpreta os símbolos expressados pela criança nas interações como comportamentos típicos da personalidade e não relativos a qualquer transtorno. Com o diagnóstico ou sua sugestibilidade, a família compromete-se a manter o cuidado e manejo do cotidiano de forma mais próxima ao 'natural' possível. Há membros familiares que, mesmo diante da confirmação diagnóstica, seguem significando os comportamentos como relativos à personalidade da criança. Diante disso, a aceitação da criança com suas particularidades interacionais, por vezes, é dificultosa para alguns familiares, que evitam relações mais próximas.
Eu nunca suspeitei de nenhum comportamento do C15, eu sempre achei que fosse da personalidade dele. Quando soube do diagnóstico, eu não acreditei e pensei comigo, o C15 ter autismo não vai mudá-lo em nada, o cuidado com ele, vai ser como os outros irmãos que não apresentam nenhuma síndrome, são crianças normais (M15).
Meus pais acham que o C4 não tem nada, que ele quer se aparecer. A gente fala, explica, mas parece que não entendem que o menino tem problema. Então, eu nem vou muito na casa deles [...]. É ruim não ter o filho aceito pelos próprios avós (P4).
O conjunto dos comportamentos acima implica em limitação de participação social da família, que evita contextos sociais onde a criança se sente desconfortada ou não seja aceita.
Acresce-se ao cenário da família da criança com TEA, o fato de conviverem com profissionais de saúde que não referendam o diagnóstico da criança, impondo a ela interações profissionais duais. Além disto, há contrassenso em definir e fechar o diagnóstico do TEA entre esses profissionais, gerando dúvidas e incertezas quanto à eficiência do tratamento ofertado.
Depois de passar na especialista em autismo, levei os papéis com o relatório na APAE, para mostrar a eles que o C2 tinha autismo, só que os profissionais da APAE afirmam que o C2 não é autista, então ele é tratado como uma criança normal. Eu fico confusa, não sei se acredito na APAE ou na especialista (M2).
Eu levei o C5 no neurologista, ele olhou e disse que era autista, disse também que realizaria exames para confirmar o diagnóstico [...]. Já na instituição de saúde que eu levo o C5, tem um médico que o atende desde os 6 meses que diz que a C5 não é autista e que o autismo está na moda, basta a criança ser hiperativa ou agressiva, ela é autista. [...] Então, fica nessa briga entre esse médico e o neurologista (M5).
Ao longo do cuidado da criança com TEA, a família, em especial a mãe, enfrenta dificuldades para o atendimento das necessidades dela, em particular relacionadas à dinâmica intrafamiliar e acesso a direitos sociais. Concomitantemente a esse processo e, como integrante a ele, a família traça estratégias para incrementos na autonomia da criança. O preconceito é vivenciado pelos participantes da pesquisa com sofrimento, tanto no âmbito intra quanto extrafamiliar, com repercussões em laços de vínculo e afeto. Na espiritualidade, a família procura se amparar para manter a esperança de encontrar o cuidado adequado e permanecer orientada a ele.
Desde o diagnóstico do TEA, as mães participantes deste estudo, principais cuidadoras, assumem a responsabilidade pelo provimento do melhor cuidado com a criança como essencialmente seu, com foco na promoção da expressão das potencialidades de desenvolvimento da criança. O compromisso sentido nesse papel é grande, gera medo em termos da sua não execução plena ou de não suportarem as exigências inerentes a isto. Ir vivenciando esse papel permite a elas afirmar ser a atitude requerida como de vigilância atenta e contínua, com aceitação de organizar a dinâmica familiar tomando na centralidade as necessidades da criança com TEA.
Esse aspecto determina praticamente uma doação de sua parte e a aceitação dos outros membros familiares de transferirem para um lugar secundário suas necessidades em detrimento às da criança. Nessa direção, um dos aspectos essenciais é a aceitação do TEA pelos membros familiares, fato que foi apontado como não pleno para alguns pais e familiares.
O pai assume uma participação limitada na vida e cuidado da criança. O usual foi de ele permanecer na retaguarda do cuidado e de existir fragilidades nos laços pai-filho, com desdobramentos aos laços conjugais.
Depois que o C7 nasceu, eu não tenho mais tempo para mim. Desde a hora que ele levanta até a hora de ir dormir, tenho que vigiá-lo o tempo todo (M7).
Eu tive que estimular mais a independência do C3, ensinar a usar o banheiro, a se vestir sozinho. Esses estímulos de independência foram muito maiores do que os que eu disponibilizei para os irmãos dele. [...] Além disso, eu tive que mostrar o mundo para ele como verdadeiramente é, porque para mim [...] é uma criança muito inocente, então eu sinto necessidade de explicar mais para ele do que para os outros como as coisas realmente funcionam, para que ele não seja passado para trás (M3).
Eu sou divorciada dele (pai da criança), ele não aceita de jeito nenhum o diagnóstico do C9, fala que o que o C9 faz é coisa de criança birrenta, que falta ensinar as coisas básicas [...] não consegue entender que os comportamentos são próprios do autismo e não para chamar atenção. O pai do C9 pega ele um pouco aqui em casa e depois devolve porque diz que não consegue cuidar sozinho (M9).
Diante do TEA, é comum a existência de dúvidas sobre a situação e um dos recursos utilizados pela família, para esclarecimento de dúvidas e obtenção de maiores informações, foi a internet. Para algumas famílias este recurso contribuiu com descobertas sobre o autismo e aproximou membros familiares, com consequente ampliação da compreensão da criança e a particularidade de sua situação, assim como maior participação no seu cuidado.
A tia do C6 falou que autismo era uma doença grave, que talvez não tivesse cura. Então eu fui buscar na internet mais sobre o autismo. Descobri que o autista tem a cabeça e o mundo dele, que são sistemáticos e na maioria do tempo, ficam no mundo deles. Além disso, existem categorias do autismo, tem o leve, moderado e grave (P6).
Eu comecei a pesquisar na internet a respeito do autismo, então fui comentando com o avô do C4 sobre os comportamentos dos autistas. Ele percebeu que o C4 fazia tudo que estava falando no Facebook. A partir desse momento, passamos a entender o que era o autismo (M4).
Na busca de apoio intrafamiliar para o cuidado da criança, a mãe aprecia nas pessoas em potencial o quanto há de compreensão da situação, envolvimento afetivo e compromissado com a criança. O usual neste estudo foi a avó materna.
Minha mãe ajuda muito com o C11, confio nela o cuidando dele, se tenho que sair e não posso levá-lo, a primeira pessoa que eu penso é nela, devo muito a ela (M11).
Ainda em relação à dinâmica familiar, na existência de outros filhos, a mãe precisou lidar com as comparações que esses faziam em relação ao tratamento e atenção recebida pelo filho com TEA. A interpretação dos outros filhos foi de existir uma atenção e cuidado excessivamente maior à criança com TEA, quando manifestações de ciúmes foram comuns.
Eu acredito que tenho que dar mais atenção para o C12, estimulá-lo a falar e a fazer as lições na escola. Sinto que o IR12 sente bastante ciúmes do C12, porque ele fala para mim que quando o C12 faz alguma coisa errada, eu não chamo atenção (M12).
Por outro lado, as relações no núcleo familiar são significadas como de empoderamento da criança com TEA para o enfrentamento das relações sociais mais amplas. O uso intencional de relações com o irmão, com vistas ao preparo para as relações mais amplas na sociedade, é explicitado na fala, a seguir.
Depois do diagnóstico, eu passei a inserir o IR1 nas brincadeiras em casa, para que incentive a interação com o irmão. Se essa interação com o irmão ocorrer de forma saudável, acredito que será mais fácil a interação com os amigos da escola (M1).
O processo de cuidar da criança com TEA traz aprendizados à mulher em termos de valores e respeito à singularidade, com desdobramentos às relações intra e extrafamiliares.
O C11 me ensinou muita coisa, como ter mais calma e paciência com as outras pessoas. Antes de ser mãe, eu não tinha paciência, depois que eu os tive, principalmente o C11, aprendi a ter. Também aprendi que cada pessoa tem seu tempo, que nem todos aceitam o autismo, que existe muito preconceito da população. C11 mostrou que eu precisava ter mais cuidado com meus filhos, que são crianças e precisam de um adulto supervisionando as brincadeiras e as lições da escola (M11).
Nas relações sociais mais amplas, a família descreve dificuldades de inclusão da criança com TEA na sociedade, quando sentimentos de exclusão e preconceito reverberam em situações de desprezo e rejeição social, com negativas a direitos como acesso à educação, religião, saúde, lazer e bem-estar. Diante deles, a mãe precisa efetivar resistências e exigir direitos.
Para colocar o C4 no catecismo foi uma luta, porque os padres da igreja queriam que eu colocasse na APAE e as professoras fossem dar aula para ele lá, eu acho que isso foi um pouco de preconceito (M4).
Eu percebi quando fui levar o C11 na escola que a professora tratava todos os alunos com carinho, menos o C11. Ela me falou que eu teria que esperar o cuidador dele no pátio ou na diretoria, meio que me tirando da sala de aula. Eu acredito que pelo meu filho ter autismo, ela também fez uma espécie de exclusão comigo (M11).
Há nítidas preocupações da parte materna em relação ao acolhimento social futuro do filho com TEA, sobretudo quando ponderam sua não presença eterna na vida dele e os efeitos do preconceito social sentidos por ela. Diante disto, visam investimentos na autonomia da criança, seja investindo em estímulo e educação, seja em termos de 'lucidez'/desempenho, aspecto que as medicações comuns ao tratamento do TEA em muito limitam.
Eu não espero que o C5 seja dependente de remédio toda vida, quero vê-lo feliz, sem que fique dopado, desejo que o C5 tenha um futuro com sucesso (M5).
O único medo, receio que eu tenho do futuro é morrer e deixar o C14 desamparado. Eu não sei como ele estará no futuro, se alguém poderá olhar por ele, se ele enfrentará preconceitos (M14).
Eu quero fazer de tudo para que ele continue a estudar, consiga fazer uma faculdade, para mostrar para as pessoas que não é porque tem autismo, que a criança tem que viver fechada em casa, não podendo construir a vida dela (M10).
Nas relações com os diversos equipamentos de saúde e profissionais típicos da trajetória de famílias com crianças com TEA, foram os psicólogos, psicopedagogos e fonoaudiólogos que despontaram como mais acolhedores. Existiu sensibilidade, interesse e envolvimento dos mesmos em contribuir na singularidade das necessidades da criança e família, efetivando com proteção aos direitos sociais no território adverso marcado pelo preconceito e negativas de acesso.
A fonoaudióloga é meu anjo da guarda, meu centro de referência [...] é quem me apoiou desde o começo, ajudou com escola e com família. Então a considero como parte da minha família. A psicóloga também está sempre presente, elas são fundamentais para o cuidado do C8. O C8 também tem uma paixão pela psicopedagoga, que assim como a fonoaudióloga é uma profissional formidável. A psicopedagoga também disponibiliza para o C8 toda atenção que precisa na educação, além disso, ela participa diariamente da vida pessoal do C8 (M8).
Outro recurso social que se efetiva enquanto apoio são grupos de famílias em situação similar a sua. Nesses espaços, o compartilhar das experiências, tanto boas quanto ruins, efetivam enfrentamentos, formas de lidar com os percalços da trajetória de diagnóstico e cuidado à criança com TEA. Cabe destacar o apontamento da relevância desse recurso no momento do diagnóstico, assim como o reconhecimento de serem esses espaços sociais onde o suporte ocorreu. Concebem-no enquanto espaço onde a resiliência se processa, assim como a luta social por melhorias no diagnóstico, tratamento e qualidade de vida da criança com TEA e suas famílias. Diante disto, assinalam a necessidade de divulgação e garantia dos mesmos.
Acho importante a prefeitura divulgar mais o grupo de apoio de mães e pais de crianças autistas. Tem muitas mães que recebem o diagnóstico, não têm internet para buscar informações. Essas mães geralmente são humildes não sabem do grupo e não têm apoio de outras mães que passam pela mesma situação (M3).
Quando eu soube do diagnóstico, comecei a chorar, e fiquei desesperada. A mãe do C3 estava comigo e começou a me confortar dizendo que eu não era única no mundo que tinha um filho autista, que mais gente podia me amparar no município (M9).
Ainda no cenário do enfrentamento e resiliência, a família busca forças para lidar com dificuldades e percalços inerentes ao cuidado à criança com TEA. A espiritualidade, mais especificamente Deus, e a crença na revelação do caminho e da força e proteção para caminhar efetivam-se enquanto recurso que mantém as famílias orientadas a prosseguir no cuidado.
Eu peço muito a Deus para que ele ilumine meu caminho, porque, se a minha missão é ser mãe do C9, que ele me dê força para passar por todos os obstáculos que forem colocados nele (M9).
Acho que mais do que ir à igreja, é pedir para Deus proteção, pedir para ele iluminar os caminhos que iremos cruzar durante a vida, é o que mais ajuda (M13).
A família da criança com TEA vivencia um processo dinâmico, no qual os membros se mobilizam assumindo papéis ativos frente aos sinais, diagnóstico e cuidados, onde suas interpretações das situações vividas, bem como as interações com a criança, direcionam as ações realizadas por eles.
Os sinais do autismo são perceptíveis aos pais antes do segundo ano de vida, sendo os déficits na comunicação e na interação social os primeiros a serem reconhecidos como alterados.13 Comportamentos ligados à repetição e restrição de atividades, bem como a agressividade são comuns aos autistas.14 A criança autista tem dificuldade para se comunicar com seus familiares e com a comunidade, culminando em limites para a expressão e compreensão de desejos. Esses resultados estão em concordância com estudos que afirmam que há existência de fragilidades de entendimento nas interações sociais entre o autista, sua família e o meio de convívio.15
Um outro disparador de suspeita de que a criança tem necessidades que precisam ser melhor investigadas é o comportamento desafiador nos momentos das refeições devido às restrições e compulsões alimentares; há a preocupação com o estado nutricional e qualidade de vida, em função da alta seletividade alimentar.16 A par dessas características, em consultas de acompanhamento de crescimento e desenvolvimento infantil, relatos de famílias nesta direção devem ser valorizados e explorados pelos profissionais com vistas a diagnósticos precoces.
Há dificuldade em realizar o diagnóstico precoce do TEA em função do preparo dos profissionais da rede de atenção à saúde.17 A família vivencia incertezas durante esse processo, o que, muitas vezes, a deixa insegura em relação à condução terapêutica proposta.
A dificuldade na aceitação do diagnóstico é exteriorizada pela família por meio do sentimento de culpa, de negação, de insegurança e de desesperança pela perda do filho considerado "normal" diante dos olhos da sociedade.18 Contudo, este estudo revelou o compromisso das mães em prover o melhor cuidado, inclusive em termos de estímulo ao desenvolvimento das potencialidades da criança. Dessa forma, ter pronto acesso a equipamentos sociais que possam ofertar orientações e terapêuticas nesta direção é essencial para potencializar a orientação materna e familiar a fim de promover a autonomia possível à criança com TEA.
Por outro lado, é comum famílias perpassarem por diversos especialistas, com a falsa esperança de não receberem a confirmação do diagnóstico. Essa peregrinação sucede-se até que a família, enfim, o aceite, decidindo por aderir ao tratamento adequado, trazendo a longo prazo benefícios para a sua qualidade de vida.18,19 Uma das questões que contribui nessa direção, como revelado neste estudo, é a dualidade de opiniões sobre o diagnóstico que as famílias vivenciam nas interações com os profissionais de saúde.
É primordial que profissionais de saúde que realizam o acompanhamento de crescimento e desenvolvimento conheçam e se mantenham atualizados sobre as diretrizes diagnósticas para o TEA, a fim de que a emissão de seus pareceres sobre a situação da criança possa contribuir para o melhor processo terapêutico, o que certamente gerará maior segurança das famílias. Além disso, a rede de cuidados se efetiva diante da comunicação dos profissionais entre si. Nenhuma família deste estudo assinalou esforços de profissionais em dialogarem sobre a situação da criança e tecerem planos terapêuticos em comum.
Os resultados reminiscentes às mudanças e cuidados, tomados após diagnóstico, evidenciam possibilidade de expressão de aspectos positivos como alívio de conflitos, trocas de ideias, ensinamentos e união intrafamiliar. As mudanças positivas ocorridas na vida das famílias entrevistadas, conferiram-lhes valores e significados renovadores, reconfortantes e contínuos, impactando no fortalecimento dos laços existentes entre seus membros.
Os papéis exercidos pela mãe e pai estão enraizados no núcleo familiar dos entrevistados; admite-se à mãe o papel de cuidadora principal, enquanto o pai permanece na retaguarda, assumindo a responsabilidade do sustento financeiro do lar. As mães sofrem, significativamente, com sentimentos de medo, culpa e demanda aumentada de cuidado.20,21 enquanto que o pai é refletido pela não aceitação do diagnóstico.18 Assim, incluir o pai nas consultas de acompanhamento do crescimento e desenvolvimento da criança, em especial aquelas com TEA é necessidade urgente, com desdobramentos à dinâmica familiar. Inferem-se questões trabalhistas que limitariam a efetivação dessa inserção.
Diante disto, carece-se de lutas sociais que sensibilizem autoridades formuladoras de políticas em relação a isto. Outro movimento, é ampliar evidências sobre os benefícios da inserção do pai de crianças com TEA e/ou outras doenças crônicas nas consultas de acompanhamentos do crescimento e desenvolvimento infantil. Contudo, ressalte-se que a efetividade dessa intervenção fica na dependência do profissional de saúde realmente concretizar um atendimento que inclua a família, com interesse em suas dúvidas e vivências no cuidado de sua criança. A não existência de um espaço relacional que favoreça à família expor suas aflições e dinâmica esvai a potência e resultados de uma inserção desta natureza. Recomendamos estudos nessa direção.
Outra situação intrafamiliar, que poderia ser melhor acolhida com a mesma lógica inclusiva, seria o ciúme entre os irmãos no contexto do TEA. A criança irmã precisa de espaço para expor sua percepção sobre a dinâmica familiar e os profissionais de saúde poderiam garantir esse espaço, seja na consulta de seu acompanhamento ou de seu irmão, ou de ambos. A superproteção dada às crianças com TEA está descrita como típica à dinâmica familiar e provoca na criança irmã o sentimento de ciúmes.18
Envolvendo situações extrafamiliares, relativas ao contexto relacional das crianças autistas e suas famílias, temos o preconceito sofrido em diferentes ambientes sociais. Autores reforçam que o preconceito e a vitimização à criança autista proporcionam aos pais episódios de estresse e conflitos sociais a serem vencidos por eles.22
Na busca de vencer o preconceito, observa-se, em nosso estudo, a expectativa da mãe de ver o filho com maior independência e de alguma forma inserido na sociedade. Pesquisa realizada com criança diagnosticada com Síndrome de Asperger observou que a família é instrumento essencial no processo de aquisição da sua autonomia. Há dicotomia nas decisões da família frente ao tratamento do autismo. A família prevê independência da criança, porém o medicamento parece ser limitador de autonomia, à medida que aumenta sonolência, minimiza senso crítico e capacidade de discernimento.23
A terapêutica medicamentosa é vista como limitadora da expressão infantil. Em contrapartida, os medicamentos antipsicóticos como a Risperidona são comumente prescritos para indivíduos com TEA, aliviando comportamento agressivo/irritabilidade e propiciando desenvolvimento de habilidades sociais, apresentando como efeito colateral recorrente o aumento de apetite e peso corporal.24
Em associação à terapêutica medicamentosa, são utilizadas terapias comportamentais, estímulos de desenvolvimento de habilidades motoras e cognitivas, estratégias de comunicação, direcionadas por profissionais fisioterapeutas, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais e psicólogos. O tratamento das crianças autistas está na realização do diagnóstico precoce integrado as outras terapêuticas, contribuindo para o prognóstico positivo do TEA.25
Práticas integrativas podem ser utilizadas como propulsoras de felicidade das crianças autistas, destacando o interesse delas pela música. O resultado benéfico da musicoterapia, colabora para o desenvolvimento de habilidades sociais e comunicativas das crianças estudadas.26 A espiritualidade concebe o apoio capaz de trazer sustento a tudo aquilo que está acima da competência do ser humano; a crença em um ser superior transmite força e coragem para vencer os obstáculos impostos pelos déficits do autismo.27
Uma importante estratégia a ser utilizada como apoio social, a internet, vem conectando indivíduos com interesses em comum, funcionando como espaço de troca de informações, reivindicações e suporte entre seus usuários, capaz ainda de influenciar o cotidiano e a atitude das pessoas perante o autismo.28
Os profissionais da enfermagem devem atentar-se às singularidades dos indivíduos e suas respectivas necessidades, prestando uma assistência íntegra e de qualidade que atenda a todas as demandas de cuidado dos autistas e suas famílias, contribuindo para o fortalecimento e ampliação dos seus laços relacionais.19,29 O enfermeiro envolto, pela sua competência em cuidar do doente e sua família, é um profissional capaz de inserir-se no cuidado em domicílio e contribuir com a família na organização da dinâmica e cuidado familiar.
Cada família possui necessidades particulares, onde as fragilidades a serem abarcadas relacionam-se à dinâmica familiar. É necessário compreender a família, sua estrutura e funcionamento, cabendo ao profissional descobrir, através das consultas, narrativas, e, principalmente, compreender no ambiente domiciliar como ocorre a organização dessa família, suas relações e resiliências. Nesse sentido, visitas domiciliares podem compor o planejamento do cuidado em domicílio, uma vez que revelam questões outras que o espaço consultório/instituição de saúde não abrangem.
A família demanda cuidados disponibilizados por profissionais de diversas áreas; observa-se que cada profissional atua dentro de sua própria atribuição, isoladamente, apesar de pertencerem a uma mesma equipe de tratamento. Desse modo, o suporte oferecido revela-se descontínuo e desproporcional para abranger todas as necessidades da família.30
A capacidade do profissional de saúde de se colocar no "lugar do outro", conceito do IS presente nas interações estabelecidas, pode abrir portas para ampliar a interação com a família e, consequentemente, a possibilidade de gerar um cuidado a partir da concepção de quem efetivamente cuida. Ainda relativo a esse conceito, assumir o papel do outro é uma tarefa que se inicia na infância que ajuda a criança a aprimorar o Self e agir na sociedade. A criança com "TEA" pode, ou não, conseguir chegar a assumir o papel do outro, a depender do grau do transtorno e das experiências vivenciadas tanto intra quanto extrafamiliar.
A realização deste estudo possibilitou alcançar o objetivo de conhecer as experiências vivenciadas por famílias de crianças com TEA. Dentre as várias lutas empreendidas pela família, a inicial relaciona-se ao estabelecimento do diagnóstico, em que as várias evidências comportamentais nem sempre levam a um diagnóstico precoce. Passada essa fase, as dificuldades relacionais sobressaem, impactando, tanto na família como nas interações externas a ela, seja com outros membros familiares, profissionais de saúde e sociedade como também com instituições. A presença do preconceito nas interações é significativa, mas há espaço para que manifestações de solidariedade e parceria ocorram; calçada sobre a espiritualidade vem a esperança de ter força para a caminhada.
A fim de minimizar preconceitos enrustidos na assistência que limitam a maneira como as pessoas se relacionam com a família e com a criança, faz-se necessária a atualização profissional em termos de informações e condutas frente ao TEA. A partilha de conhecimentos atuais sobre o TEA com o público leigo e profissionalizado, bem como sensibilização para a família e seu esforço frente à condição crônica, demonstra à sociedade possibilidade de maiores contribuições de ser partícipe por meio do cuidado, e pode ser potencializadora do esforço já exercido pela família.
Sugere-se a realização de pesquisas com famílias que tenham um membro com TEA em fase adulta para avaliar como os aspectos da autonomia e a independência do indivíduo se estabelecem. Espera-se que este estudo possa contribuir para atuação dos enfermeiros que lidam com crianças autistas e suas famílias, sinalizando necessidade da busca pelo aprimoramento de estratégias de cuidado que viabilizem o resgate e a ampliação da unidade familiar.