versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.24 no.12 Rio de Janeiro dez. 2019 Epub 25-Nov-2019
http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320182412.25302019
O federalismo é um sistema que distribui a autoridade política do Estado em múltiplos centros definidos e ordenados territorialmente, e permite o exercício simultâneo do governo autônomo (‘self-rule’) e compartilhado (‘shared-rule’)1. Entretanto, a diversidade de ‘situações federativas’ é significativa2, e se expressa nas instituições que caracterizam e influenciam as políticas públicas nesses países3.
Entre os fatores que explicam as variações existentes, estudos comparados internacionais destacam a importância da divisão de competências tributárias e das relações de partilha fiscal, para fins de coordenação e cooperação entre níveis de governo nas federações4. Componentes da dimensão fiscal do federalismo também têm sido valorizados para a compreensão da autoridade dos governos de nível intermediário ou regionais (estados, províncias, länder, cantões, etc.), na definição de suas próprias políticas (critérios de autonomia tributária) e nas decisões tomadas em arenas nacionais (critérios de controle fiscal)5.
O Brasil se destaca no cenário internacional por apresentar um arranjo trino, marcado por desigualdades territoriais e compartilhamento de responsabilidades entre os entes em várias áreas da política pública6,7. A esfera federal concentra poder de arrecadação e decisão sobre a formulação de políticas e direcionamento dos gastos em âmbito estadual e municipal8, o que favorece seu desempenho na indução e regulação de prioridades nacionais, financiamento e redistribuição de recursos9-12.
Diversos estudos apontam as limitações do poder conferido às esferas estaduais na federação brasileira. Segundo Arretche e Schlegel13, a Constituição Federal de 1988 (CF88)14 permitiu a recuperação da autoridade dos estados, perdida durante o período autoritário (1964 a 1985), que interrompeu o regime democrático de 1946. Entretanto, as emendas promulgadas desde os anos 1990, mudaram o desenho original das relações intergovernamentais e do federalismo fiscal da CF 88 e propiciaram a concentração de recursos e de poder decisório na esfera federal7,9,15. As reformas aprovadas instituíram perdas aos governos estaduais e ampliaram a capacidade de coordenação da União, limitando a autoridade decisória dos governos subnacionais, principalmente no que tange à sua capacidade para afetar decisões nacionais que incidem sobre suas políticas próprias13,16.
Para Rezende17, esta progressiva fragilização da posição dos estados na federação no período pós-Constituinte se expressa em diferentes vertentes, tais como: a tributária, pela diminuição da fatia dos estados na repartição do bolo fiscal; a orçamentária, pela perda de liberdade no uso de recursos devido às vinculações constitucionais, ao peso das receitas condicionadas, à regulação de programas e ao controle de endividamento; a legislativa, pelo papel restrito desenvolvido pelos legislativos estaduais; a regulatória, pela propagação de normas provindas do governo central; a política, pela incapacidade dos dirigentes estaduais influenciarem o voto de seus representantes no Congresso Nacional, que concordam com a agenda do governo federal mesmo quando o comando dos estados está em oposição17.
Além disso, os estados apresentaram uma situação de endividamento agravada pela ‘guerra fiscal’ entre eles, pelo comprometimento de seus bancos estaduais e por uma dívida mobiliária ascendente18. A partir dos anos 1990, o governo federal impôs um forte ajuste fiscal aos governos estaduais com o intuito de retomar a estabilidade macroeconômica, o qual provocou fragilização da capacidade dos estados em promover investimentos, afetando seu desenvolvimento. As reformas institucionais (privatizações, reforma administrativa, encargos crescentes da dívida negociada, entre outras) inibiram investimentos produtivos dos governos estaduais e a pressão dos estados por transferências de recursos federais foi ampliada19. Tais aspectos são importantes para compreensão dos impactos das crises econômicas de 2008-2009 e 2015-2016 sobre as finanças públicas estaduais.
A crise financeira de 2008 originou-se na elevada exposição de alto risco (subprime) do mercado hipotecário norte-americano, que aliado ao aumento da inadimplência, propiciou a descapitalização de grandes bancos, incluindo o fechamento do Lehman Brothers em setembro de 2008. Tornou-se uma crise global, com efeitos expressivos na economia real, levando à queda da atividade econômica, ao desemprego, à desvalorização de ações e à diminuição dos preços de produtos industrializados e commodities. No Brasil, os impactos da crise internacional neste período foram minimizados pela adoção de uma grande variedade de políticas para estimular a produção e a demanda interna, incluindo medidas de reforço ao crédito e à liquidez do setor bancário, embora o país não tenha ficado totalmente imune aos seus efeitos sobre a arrecadação fiscal20-23.
Já a crise de 2015-2016 esteve mais diretamente relacionada a fatores nacionais e a uma série de medidas governamentais (ajuste fiscal, crise hídrica, desvalorização da moeda, aumento da taxa de juros SELIC - Sistema Especial de Liquidação e Custódia, entre outros), que colaboraram para reduzir a capacidade de crescimento econômico e geraram um custo fiscal elevado. Outros fatores intensificaram a recessão, tais como a queda da renda, a elevação do desemprego, o encolhimento do mercado de crédito e a redução dos investimentos públicos23,24.
Trabalhos sugerem que a recessão e as políticas de austeridade tenderam a afetar de modo mais significativo a arrecadação dos estados se comparado aos outros entes da federação25,26. Neste contexto, o artigo tem como objetivo analisar as tendências e os padrões regionais de receitas e despesas em saúde dos estados brasileiros no período de 2006 a 2016. Considera-se que as crises que atingiram o país na segunda década dos anos 2000 possuem uma dimensão federativa, que se expressa de modo diferenciado nos orçamentos dos estados, frente à divisão de competências tributárias, ao sistema de partilha fiscal, e aos mecanismos de financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS).
A justificativa do estudo está ancorada na importância dos estados para a configuração do arranjo federativo e para a condução da política de saúde no Brasil27. Embora existam estudos sobre o financiamento do SUS que analisam a repartição das fontes de receitas e a composição do gasto em saúde28-30, poucos são aqueles que se debruçam sobre as repercussões diferenciadas do federalismo fiscal nas capacidades de financiamento e de gasto em saúde dos entes subnacionais31-34.
Particularmente, os possíveis impactos das crises econômicas no Brasil ainda não foram suficientemente explorados na produção do campo da Saúde Coletiva, restando lacunas para a compreensão de seus efeitos sobre o financiamento estadual do SUS.
Trata-se de estudo exploratório e descritivo orientado para análise das condições de financiamento e gasto em saúde dos estados brasileiros.
Foram construídas duas bases de dados referentes às receitas e despesas dos 26 estados brasileiros. O Distrito Federal não foi incluído nesse estudo por se tratar de uma ‘cidade-estado’ e possuir competências tributárias, critérios de vinculação e detalhamento orçamentário distinto dos estados brasileiros. As bases possuem como variáveis os valores monetários (em moeda corrente nacional) das receitas e despesas públicas realizadas pelos estados brasileiros de 2006 a 2016. Este período foi escolhido por permitir a análise de uma série histórica da execução orçamentária em um momento de ascensão e de restrição orçamentária frente às crises econômicas de 2008-2009 e de 2015-2016.
A base de dados de receitas foi construída a partir dos dados obtidos dos relatórios de execução orçamentária do Sistema de Informação Finanças do Brasil (FINBRA). Em alguns casos, ao verificar dados de algumas rubricas muito discrepantes, comparou-se com os relatórios informados no site da transparência dos próprios estados e relatórios da Secretaria do Tesouro Nacional (STN). No estado de Mato Grosso no ano de 2013, foi necessário fazer um ajuste na dedução de ICMS relativa ao FUNDEB. No relatório do FINBRA a dedução estava em torno de 66% e foi ajustado para 20%, que é o percentual estabelecido, e confirmado no site da transparência deste estado. Já a base de despesas da saúde foi construída a partir de dados obtidos por meio do Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (SIOPS). Para efeito de comparabilidade, os valores monetários das rubricas específicas utilizadas no cálculo dos indicadores foram deflacionados para dezembro de 2016 por meio do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que foi também a fonte de dados de população total residente.
O FINBRA é de competência da STN e o SIOPS do Ministério da Saúde. Essas bases foram escolhidas por ser de domínio público e acesso aberto e agregarem a totalidade das receitas realizadas e das despesas empenhadas de todos os estados brasileiros. Para esse artigo foram utilizados os seguintes indicadores: receita corrente líquida per capita (RCLpc); despesa em saúde per capita (DTSpc); percentuais das receitas diretamente arrecadadas (RDA), das transferências redistributivas (TR), das transferências compensatórias (TC), e das receitas vinculadas à saúde (RVS) na receita corrente líquida. A classificação das transferências foi baseada na tipologia proposta por Prado35.
Para fins de cálculo dos indicadores foram usadas rubricas específicas das receitas realizadas e despesas empenhadas, no período de 2006 a 2016. O Quadro 1 discrimina os indicadores calculados para cada um dos estados e seus agregados – total Brasil, e regiões Norte (N), Nordeste (NE), Centro-Oeste (CO), Sudeste (SE) e Sul (S) - nos diversos anos da série.
Quadro 1 Indicadores utilizados do estudo: definição, interpretação, método e fórmula de cálculo, e fonte de dados.
Indicador | Definição | Interpretação | Método de Cálculo | Fórmula de cálculo | Fonte dos Dados |
---|---|---|---|---|---|
1. Receita corrente líquida (RCL) per Capita | Receita corrente deduzida as transferências constitucionais e as contribuições sociais por habitante (em R$). | Indica os recursos orçamentários que o estado dispõe para a execução das despesas das atividades dos órgãos da administração pública. | Numerador: receita corrente realizada menos o somatório das transferências constitucionais e das contribuições sociais. Denominador: população total residente. |
{1.0.00.00.00 - [(0,5* 1.1.12.05.00) + (0,25* 1.1.13.02.00) + (0,25* 1.7.21.01.12) + 9.1.1.12.05.00 + 9.1.1.12.07.00 + 9.1.1.13.02.00 + 9.1.7.21.01.01 + 9.1.7.21.01.12 + 9.1.7.21.09.01)] - 1.2.10.00.00}/ população do estado | FINBRA e IBGE |
2. Percentual de receitas diretamente arrecadadas | Percentual da receita diretamente arrecadada em relação à receita corrente liquida (%). | Indica a importância de recursos diretamente arrecadados (impostos, taxas, contribuições, multas e juros de mora) como fonte de receita orçamentária. | Numerador: somatório das receitas realizadas oriundas de impostos, taxas, contribuições e multas X 100. Denominador: RCL. |
[1.1.12.04.00 + (0,5*1.1.12.05.00) + 1.1.12.07.00 + (0,75*1.1.13.02.00) + 1.1.20.00.00 + 1.1.30.00.00 + 1.2.2.0.00.00 + 1.6.00.00.00 + 1.9.11.00.00 + 1.9.13.00.00 + 1.9.31.00.00] / RCL * 100 | FINBRA |
3.Percentual de transferências redistributivas | Percentual de transferências federais redistributivas em relação à receita corrente liquida (%). | Indica a importância das transferências federais redistributivas como fonte de receita orçamentária; as transferências federais redistributivas são aquelas voltadas para reduzir as desigualdades da capacidade de gasto entre os estados. | Numerador: transferências financeiras realizadas oriundas da Cota-Parte do FPE X 100. Denominador: RCL. |
1.7.21.01.01/ RCL*100 | FINBRA |
4.Percentual de transferências compensatórias | Percentual de transferências federais compensatórias em relação à receita corrente liquida (%). | Indica a importância das transferências federais compensatórias como fonte de receita orçamentária; as transferências federais compensatórias são aquelas voltadas para compensação da perda de receita decorrente da isenção do ICMS sobre exportações. | Numerador: somatório das transferências financeiras realizadas oriundas do ICMS + desoneração Lei Complementar nº 87/96 (Lei Kandir) + 75% do IPI Exportação X 100. Denominador: RCL. | [1.7.21.36.00 + (0,75* 1.7.21.01.12)] /RCL*100. | FINBRA |
5. Percentual de receitas vinculadas à saúde | Percentual de receitas vinculadas à saúde em relação à receita corrente liquida (%). | Indica a importância dos recursos vinculados à saúde como fonte de receita orçamentária; as receitas vinculadas à saúde são aquelas voltadas para financiamento exclusivo do setor | Numerador: somatório das receitas realizadas vinculadas à saúde (transferências do SUS; convênios; prestação de serviços, entre outros) X 100. Denominador: RCL. | [(1.7.21.33.00) + (1.7.22.33.00) + (1.7.23.01.00) + (1.7.61.01.00) + (1.7.62.01.00) + (1.7.63.01.00) + (1.6.00.05.00)] /RCL*100. | FINBRA |
6. Despesa em saúde per capita | Gasto público total em saúde por habitante (em R$) | Equivale ao gasto público total em saúde, sob responsabilidade do estado, advindo de todas as fontes | Numerador: despesa empenhada em saúde advinda de todas as fontes (impostos, transferências do SUS, operações de créditos, entre outras). Denominador: população total residente. | 3.3.0.00.00.00.00 + 3.4.0.00.00.00.00 - 3.3.1.90.01.00.00 - 3.3.1.90.03.00.00 | SIOPS e IBGE |
Fonte: Elaboração dos Autores.
Nota: Todos os recursos foram ajustados para valores de dezembro de 2016 pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Foi feita a análise descritiva simples das séries temporais dos indicadores de receitas e de despesas. Os indicadores agregados foram calculados como a síntese nacional e de cada região, ou seja, a razão dos agregados (somatório dos valores financeiros dos estados no numerador dividido pelo somatório dos respectivos números de habitantes no denominador). Assim, é distinto do que seria uma medida de tendência central dos valores observados nas unidades (por exemplo, a média simples).
A variação da receita corrente líquida foi comparada com a do produto interno bruto (PIB) no período, dado obtido no IBGE. Além disso, foi calculada a dispersão relativa, que possibilita a análise de desigualdades, por meio do coeficiente de variação, que foi calculado como a razão entre o desvio padrão e a média (a partir das regiões considerando a dispersão entre os estados de cada uma delas e como um todo e por sua vez no quadro nacional considerada a dispersão entre as cinco regiões).
Observou-se tendência de crescimento da RCLpc dos estados brasileiros, no período de 2006 a 2016, com quedas em anos específicos (2009, 2015 e 2016) (Figura 1). Entretanto, de forma geral, os patamares da RCLpc em 2016 foram superiores aos de 2006. A DTSpc apresentou comportamento distinto da receita, com tendência de crescimento ao longo dos anos e incremento acentuado a partir de 2014.
Fonte: FINBRA (receitas) e SIOPS (despesas). Elaboração dos autores. Eixo da esquerda se refere aos valores per capita e o eixo da direita aos valores percentuais.
Figura 1 Evolução das receitas e da despesa total em saúde dos estados: receita corrente líquida (em R$ per capita), receitas diretamente arrecadadas (em %), transferências redistributivas (em %), receitas vinculadas à saúde (em %), transferências compensatórias (em %), outras fontes (em %), despesa total em saúde (em R$ per capita). Brasil, 2006 a 2016.Nota: Receitas realizadas e despesas empenhadas, ajustadas para valores do ano de 2016 pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A Tabela 1 mostra a taxa de crescimento real do PIB do Brasil e da RCL total para o conjunto dos estados e seus agregados regionais. No período analisado, a RCL teve taxa de crescimento superior à do PIB nacional para os estados e as regiões, exceto o SE. Entretanto, o agregado dos estados apresentou taxas de crescimento negativas nos anos de 2009 (-1,7), 2015 (-5,9) e 2016 (-1,6) e, com exceção de 2016, inferiores à taxa de crescimento do PIB Brasil que nesses anos também se apresentou negativa (-0,1; -3,5 e -3,3; respectivamente). Em 2009, N, CO e SE tiveram resultados seguindo essa tendência nacional. Em 2015, todas as regiões apresentaram valores negativos da taxa de crescimento da RCL e inferiores ao PIB Brasil, excetuando-se a região S. A região CO foi a que apresentou as maiores oscilações de valores (Tabela 1).
Tabela 1 Evolução da taxa de crescimento real do produto interno bruto do Brasil e da receita corrente líquida dos estados (total e por região). Brasil, 2006 a 2016 .
Ano | Taxa de crescimento real do PIB do Brasil (%) | Taxa de crescimento real da RCL total dos Estados (%) | Região Norte | Região Nordeste | Região Centro-Oeste | Região Sudeste | Região Sul |
---|---|---|---|---|---|---|---|
2006 | 4,0 | ||||||
2007 | 6,1 | 5,5 | 8,3 | 3,2 | 9,0 | 6,0 | 3,8 |
2008 | 5,1 | 12,8 | 16,1 | 12,4 | 15,1 | 12,2 | 12,7 |
2009 | -0,1 | -1,7 | -2,7 | 0,2 | -0,9 | -3,0 | 0,4 |
2010 | 7,5 | 8,9 | 6,9 | 9,4 | 4,8 | 9,6 | 8,8 |
2011 | 4,0 | 5,3 | 12,6 | 5,7 | 10,2 | 3,7 | 4,0 |
2012 | 1,9 | 1,8 | 3,9 | 1,7 | 6,0 | 0,9 | 1,9 |
2013 | 3,0 | 4,3 | 1,6 | 9,7 | -2,9 | 3,2 | 6,0 |
2014 | 0,5 | 2,8 | 4,0 | -0,2 | 28,4 | -1,5 | 10,2 |
2015 | -3,5 | -5,9 | -6,7 | -4,8 | -18,7 | -5,0 | -2,8 |
2016 | -3,3 | -1,6 | 4,9 | 3,7 | 10,5 | -7,2 | -0,9 |
Média (2006 a 2016) | 2,0 | 3,1 | 4,7 | 4,0 | 5,5 | 1,7 | 4,3 |
Fonte: FINBRA (receitas) e IBGE (PIB). Elaboração dos autores.
Nota: Receitas realizadas ajustadas para valores de dezembro de 2016 pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Os recursos diretamente arrecadados foram as principais fontes de receita orçamentária dos estados (em média, cerca de 69% da RCL), seguidos das transferências redistributivas (em média, cerca de 15%) (Figura 1). Não houve variação significativa da participação proporcional das diferentes fontes de RCL, com exceção de ligeira queda dos recursos diretamente arrecadados em 2008, 2011 e 2014, e das oscilações ao longo dos anos no caso das outras fontes de receitas (variação de 9% a 13%). As receitas vinculadas à saúde representaram, em média, cerca de 4% da RCL.
A Figura 2 evidencia distintos padrões regionais dos indicadores de receita e da despesa total em saúde dos estados. As regiões SE e CO apresentaram os maiores valores de RCLpc. Este indicador apresentou tendência de crescimento em praticamente todas as regiões com queda em anos específicos (2009, 2013 e 2015), exceto na região SE cuja diminuição da receita pode ser observada a partir de 2013. A DTSpc acompanhou a tendência de crescimento, porém, sem oscilações, exceto em 2011 (região CO) e 2013 (regiões SE e S). A região N apresentou a maior despesa em saúde e a região NE a menor (Figura 2).
Fonte: FINBRA (receitas) e SIOPS (despesas). Elaboração dos autores. Eixo da esquerda se refere aos valores per capita e o eixo da direita aos valores percentuais.
Figura 2 Evolução das receitas e despesa total em saúde dos estados segundo região: receita corrente líquida (em R$ per capita), receitas diretamente arrecadadas (em %), transferências redistributivas (em %), receitas vinculadas à saúde (em %), transferências compensatórias (em %), outras fontes (em %), despesa total em saúde (em R$ per capita). Brasil, 2006 a 2016.Nota: Receitas realizadas e despesas empenhadas, ajustadas para valores de dezembro de 2016 pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Em relação à participação proporcional das fontes de receita, os estados do N e NE apresentaram os maiores percentuais de transferências redistributivas (em média, cerca de 42% e 38%, respectivamente), se comparadas a outras regiões (14% no CO, 3% no SE e 7% no S), que apresentaram maiores percentuais de recursos diretamente arrecadados (em média, 75%, 78% e 78% respectivamente). As receitas vinculadas à saúde foram baixas em todas as regiões, variando de 1% (CO) a 5% (NE). As outras fontes de receita foram as que apresentaram as maiores oscilações entre as regiões (Figura 2).
Em 2009, todas as regiões apresentaram diminuição da participação proporcional das transferências redistributivas, exceto a Sul. Os estados do CO foram os que apresentaram maiores oscilações da proporção de transferências redistributivas e de receitas de outras fontes no período estudado (Figura 2).
A Tabela 2 mostra o coeficiente de variação da RCLpc e da DTSpc para o conjunto dos estados e seus agregados regionais, bem como entre as regiões. Em ambos indicadores, as diferenças foram marcantes e com oscilações em todo o período, sendo mais acentuadas no caso da DTSpc. Entretanto, observou-se redução da desigualdade principalmente em relação à DTSpc, em 2016 se comparado a 2006.
Tabela 2 Coeficiente de variação da receita corrente líquida per capita e da despesa total em saúde per capita dos estados segundo região e entre regiões (valores em %). Brasil, 2006 a 2016.
Coeficiente de Variação da RCL per capita | |||||||
Anos | Coeficiente de Variação da RCL Per Capita dos Estados, por região e total | Desigualdade entre as regiões | |||||
N | NE | CO | SE | S | Total | ||
2006 | 42% | 23% | 19% | 21% | 6% | 42% | 17% |
2007 | 40% | 21% | 18% | 19% | 6% | 44% | 19% |
2008 | 43% | 21% | 20% | 18% | 9% | 46% | 19% |
2009 | 43% | 20% | 22% | 17% | 9% | 45% | 18% |
2010 | 37% | 20% | 17% | 16% | 9% | 38% | 17% |
2011 | 39% | 19% | 14% | 17% | 8% | 42% | 17% |
2012 | 35% | 16% | 14% | 17% | 5% | 39% | 18% |
2013 | 36% | 15% | 19% | 15% | 3% | 38% | 15% |
2014 | 39% | 17% | 43% | 14% | 9% | 43% | 19% |
2015 | 35% | 17% | 18% | 11% | 6% | 36% | 15% |
2016 | 37% | 13% | 26% | 9% | 1% | 39% | 16% |
Coeficiente de Variação da Despesa em Saúde Per Capita | |||||||
Anos | Coeficiente de Variação da Despesa em Saúde per capita dos Estados, por região e total | Desigualdade entre as regiões | |||||
N | NE | CO | SE | S | Total | ||
2006 | 36% | 45% | 47% | 64% | 24% | 61% | 28% |
2007 | 39% | 50% | 51% | 68% | 7% | 62% | 25% |
2008 | 40% | 42% | 58% | 68% | 11% | 62% | 25% |
2009 | 41% | 41% | 57% | 67% | 15% | 60% | 23% |
2010 | 38% | 38% | 53% | 69% | 15% | 56% | 21% |
2011 | 40% | 42% | 57% | 69% | 15% | 61% | 26% |
2012 | 43% | 46% | 44% | 69% | 20% | 64% | 26% |
2013 | 41% | 24% | 20% | 70% | 4% | 59% | 26% |
2014 | 43% | 23% | 17% | 36% | 4% | 51% | 21% |
2015 | 40% | 21% | 29% | 35% | 5% | 49% | 19% |
2016 | 37% | 17% | 28% | 34% | 5% | 48% | 17% |
Fonte: FINBRA (receitas) e SIOPS (despesas). Elaboração dos autores.
Nota: Receitas realizadas e despesas empenhadas, ajustadas para valores de dezembro de 2016 pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Ressalta-se que as desigualdades da RCLpc foram mais significativas nos estados da região N e CO, e da DTSpc nos estados do SE. Houve oscilações nos coeficientes ao longo do período, com tendência à redução da desigualdade, principalmente no NE e SE. Em ambos os indicadores analisados, é marcante a menor desigualdade entre os estados da região S (Tabela 2).
Nesse estudo, foram analisadas as tendências e os padrões regionais das receitas e despesas em saúde dos estados no período de 2006 a 2016, procurando identificar possíveis repercussões das crises econômicas, frente à divisão de competências tributárias, ao sistema de partilha fiscal, e aos mecanismos de financiamento do SUS.
Verificou-se uma tendência de crescimento das receitas com quedas em anos específicos, associadas às crises de 2008-2009 e de 2015-2016. Diversos estudos sugerem que as dificuldades de arrecadação da União nesse período comprometeram as bases de cálculo do Fundo de Participação dos Estados (FPE) - o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e o Imposto de Renda (IR) - que representa parcela significativa das receitas dos estados25,26. Afonso e Castro26 destacam que após 2008, a trajetória de arrecadação e gasto federal foi muito baixa, havendo uma quebra estrutural da tendência que predominou na primeira década de 2000. Particularmente, nestes anos, houve uma concomitante expansão de gastos públicos, sobretudo sociais, em um contexto de excepcional desempenho da evolução da receita tributária nacional, em que a carga tributária bruta alcançou patamar superior a 2/3 do PIB.
As medidas adotadas pelo governo federal para conter a crise de 2008 por meio de desonerações de tributos também comprometeram a composição do FPE36. Tais medidas, associadas a não atualização dos critérios de rateio do FPE17, levaram à diminuição de repasses para as regiões brasileiras. Os estados do N, NE e CO foram os mais afetados pelas mudanças, com uma perda de R$108,4 bilhões no período de 2008 a 2012, segundo estimativas do Tribunal de Contas da União37.
Ainda assim, as transferências redistributivas, por meio dos fundos de participação, cumprem papel importante na redução das disparidades inter-regionais da receita orçamentária dos estados. O método de cálculo adotado para o repasse desses recursos beneficia os governos com menor poder de arrecadação direta de tributos35, o que permite explicar a alta dependência dos estados das regiões N e NE em relação ao FPE, evidenciada nesse estudo. Entretanto, Arretche38, em estudo recente, demonstrou que as transferências do FPE têm efeitos limitados para reduzir as desigualdades, pois não privilegiam estados com maior concentração de populações vulneráveis.
A crise, entretanto, não repercutiu da mesma maneira nas despesas em saúde que apresentaram tendência de crescimento, para o conjunto dos estados e regiões, mesmo em momentos de queda da arrecadação. Este crescimento pode estar associado à vigência da regulamentação da Emenda Constitucional 29 (EC29) que define percentuais mínimos de aplicação da União, estados e municípios, em ações e serviços públicos de saúde desde 2000.
Estudos demonstram o efeito protetor da Emenda sobre o gasto público em saúde no Brasil, e sua repercussão para a elevação expressiva da participação dos governos estaduais e municipais no financiamento do SUS29,39. No ano 2000, quando a EC 29 foi aprovada, os estados respondiam por 18,6% dos recursos públicos alocados ao SUS. Em 2010, essa participação aumentou para 26,4%, correspondendo a uma elevação no aporte de recursos de cerca 200% (de R$12 bilhões em 2000 para R$ 36,3 bilhões em 2010)39.
O aumento da despesa em saúde também expressa os compromissos e prioridades assumidos pelos governos no desenvolvimento de políticas próprias, na coordenação de estratégias nacionalmente induzidas e na regionalização da saúde no contexto dos anos 200027. Esse processo resultou em maiores investimentos e reforçou parcerias e articulações público-privadas na organização de redes e na prestação de serviços especializados40,41.
Cabe salientar as diferenças encontradas para o conjunto dos estados e seus agregados regionais. Embora as tendências da RCLpc e da DTSpc no período tenham sido semelhantes, os patamares de receita e despesa foram distintos entre as regiões, o que é evidenciado pelos resultados dos coeficientes de variação. Tais resultados sugerem possíveis efeitos diferenciados da crise em função dos componentes de receita orçamentária bem como às prioridades conferidas às despesas governamentais dos estados no Brasil.
Ressalta-se que o desafio do equilíbrio das finanças públicas se acentua particularmente para os estados, tendo em vista as políticas de austeridade fiscal adotadas pelo governo federal e seus efeitos sobre os mecanismos de financiamento do SUS. Segundo Vieira42, em períodos de crise os países tendem a diminuir os gastos públicos no intuito de tornar o ambiente fiscal mais restrito ou para aderir às condições atribuídas pelas instituições internacionais na concessão de empréstimos. Nesse estudo, a baixa proporção de receitas vinculadas à saúde nos orçamentos estaduais pode estar relacionada à priorização dos municípios no processo de descentralização, mas também à contenção dos gastos federais, o que tende a se agravar com o congelamento das despesas primárias da União previsto na Emenda Constitucional 9543.
Funcia44 demonstrou que, em 2017, o financiamento da saúde da população já sofreu prejuízos. As despesas federais com ações e serviços de saúde foram afetadas negativamente (a) em termos dos valores pagos pelo Ministério da Saúde que, embora tenha empenhado, liquidou despesas abaixo do piso Constitucional; (b) em relação às transferências financeiras do Fundo Nacional de Saúde para os Fundos Estaduais e Municipais de Saúde, que apresentaram queda real com variações nominais abaixo do IPCA/IBGE; (c) e no que tange às variações referentes às transferências financeiras dos blocos de financiamento que apresentaram queda nominal e real em quatro dos 6 blocos44.
Com a economia sofrendo uma ameaça de recessão prolongada, esse reforço de políticas de austeridade fiscal e monetária tenderá a diminuir o consumo das famílias e dos investimentos privados, levando à um círculo vicioso de desaceleração ou mesmo queda na arrecadação tributária, menor crescimento econômico e maior carga da dívida pública líquida na renda nacional45. Além disso, a austeridade se materializa como um obstáculo para a redução das desigualdades (UNCTAD) e para os direitos humanos da população (ONU, 2018), com sérias implicações para o direito à saúde46,47.
Esse artigo evidenciou a diversidade de fontes e a heterogeneidade de receitas e despesas em saúde, bem como os impactos diferenciados da crise sobre os orçamentos dos estados nas regiões. A manutenção do crescimento da despesa em saúde em momentos de crise econômica e dificuldades de arrecadação pode estar associada ao efeito protetor conferido pelos dispositivos de vinculação constitucional da saúde, pelos compromissos e prioridades de gastos, bem como pelos mecanismos de compensação de fontes receitas decorrentes do federalismo fiscal. Contudo, desafios ainda persistem em relação à implantação de um sistema de transferências que permita diminuir as desigualdades e estabelecer maior cooperação entre os níveis de governo, em um contexto de austeridade e fortes restrições ao financiamento público da saúde no Brasil.