versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.112 no.5 São Paulo maio 2019 Epub 06-Jun-2019
https://doi.org/10.5935/abc.20190084
A doença cardiovascular, principalmente a doença arterial coronariana (DAC), continua sendo um problema de saúde mundial,1 apesar dos grandes avanços nos tratamentos que têm contribuído para a redução da mortalidade por DAC nas últimas décadas.2 De fato, tendências mais recentes apontam para um achatamento das taxas de mortalidade por DAC, mas para alguns subgrupos, essas taxas podem estar aumentando.3 Os motivos para essa tendência alarmante estão relacionados à prevalência de fatores de risco, falhas no sistema de saúde na abordagem de doenças crônicas, acesso desigual à tecnologia, níveis decrescente de investimentos em pesquisas, e heterogeneidade na qualidade do cuidado.4
Por outro lado, os gastos com os cuidados com as doenças cardiovasculares continuam a seguir uma tendência linear crescente5 e, consequentemente, a oferta de um cuidado de alto valor tem diminuído.6 Em longo prazo, pesquisas cardiovasculares e inovação deveriam estimular o desenvolvimento de novos medicamentos e novas terapias. Em curto prazo, para os sistemas de saúde que lutam contra gastos cada vez maiores, evitar exames inadequados e terapias ineficazes atenderia à estratégia de saúde baseada em valor.7,8 O conceito fundamental de se focar em valor em vez de volume pode amenizar expectativas conflitantes entre pagantes, provedores, pacientes e médicos, os quais deveriam compartilhar de um objetivo comum de se reduzir gastos desnecessários na saúde e melhorar os resultados.9
No entanto, está na hora de transformar essa discussão em ação. Na liderança dessa transformação, durante a última década, médicos representantes de sociedades médicas norte americanas se reúnem para apresentar recomendações baseadas em evidências e opiniões de especialistas sobre muitos procedimentos terapêuticos e diagnósticos. Essas recomendações, chamadas de Critérios de Uso Apropriado (AUC, Appropriate Use Criteria), têm o objetivo de auxiliar médicos na promoção do cuidado cardiovascular de alto valor.
Nesta edição dos Arquivos Brasileiros de Cardiologia, Luciano et al.,10 apresentam os resultados do uso dos AUC no cateterismo diagnóstico (CD) no Brasil.10 De maio a outubro de 2016, foram obtidos dados de CDs realizados em dois hospitais terciários (um hospital geral e um hospital de cardiologia). Os autores coletaram dados que os permitiram atribuir escores de adequação para cada CD. Os escores foram: "apropriado" (7-9), "ocasionalmente apropriado" (4-6), ou "raramente apropriado" (1-3). De acordo com os AUC originais, o mesmo sistema de pontuação foi utilizado, mas os termos descritivos eram "apropriado", "incerto" e "inapropriado".11 Além disso, os autores compararam cada uma das categorias dos AUC entre os hospitais e a presença de DAC. A presença de DAC obstrutiva foi definida como obstrução angiográfica de mais de 50% na artéria coronária esquerda ou de 70% em outro local.
A amostra incluiu 737 CDs em pacientes com idade média de 62 anos. No total, 80,6% dos exames foram considerados apropriados de acordo com os AUC, 15,1% ocasionalmente apropriados (incerto), e 4,3% raramente apropriado (inapropriado). Em estudos similares conduzidos na América do Norte, as taxas de uso apropriado, incerto e inapropriado do CD foram 52,8%, 31% e 10,8%, respectivamente, em Ontário, e 35%, 40% e 25%, respectivamente, em Nova Iorque.12,13 No estudo brasileiro, a taxa de uso inapropriado em pacientes estáveis (10,1%) foi similar à encontrada na coorte de Ontário (10,8%) e quase duas vezes menor que a do estudo realizado em Nova Iorque. Um dado interessante é que tanto o Canadá como o Brasil possuem sistema de saúde público universal, diferentemente do sistema dos EUA, predominantemente financiado por fundos privados.9
O segundo achado que merece atenção especial é a ausência de DAC obstrutiva grave em 41,2% dos CDs. Apesar dessa frequência ser mais baixa que a da coorte canadense (54.5%), ela ainda representa uma importante fonte de gastos com doenças cardiovasculares, que poderia ser melhorada por meio de uma avaliação abrangente e especializada (probabilidade pré-teste). De fato, a frequência de CDs normais foi significativamente menor no hospital especializado em cardiologia, que no hospital geral (37,8% vs. 52,6%; p = 0,008), apesar de um volume três vezes maior no primeiro hospital. Ainda, nos pacientes em investigação para DAC, as taxas de CDs apropriadas foram significativamente maiores no hospital cardiológico em comparação ao hospital geral (87,3% vs. 58,5%; p < 0,01). Portanto, esses resultados constituem evidência indireta de melhor desempenho dos centros cardiovasculares com alto volume.
Há muitas ressalvas, porém, em relação ao estudo. Primeiramente, o tamanho da amostra foi relativamente pequeno. Segundo, a categorização dos AUCs foi feito pelo mesmo médico (não cego) que realizou o CD e participou da decisão de se fazer ou não a intervenção. Terceiro, não foram relatados no estudo os fatores de risco basais ou resultados de teste de esforço, particularmente para o hospital geral, o qual apresentou maior proporção de pacientes (estáveis) com DAC em comparação ao hospital cardiológico (73% vs. 34%). Quarto, não foi realizada avaliação funcional ou por imagem intravascular invasiva. Finalmente, a amostra incluiu somente pacientes usuários do sistema público de saúde, e não foram apresentados desfechos clínicos.
Um outro achado interessante do estudo de Luciano et al.,10 relaciona-se às razões por trás da categoria raramente apropriado (inapropriado) para o CD e o processo de tomadas de decisões. Quanto maior a frequência de CD inapropriado, maior a probabilidade de outras intervenções inapropriadas, um fenômeno chamado "cascata diagnóstica-terapêutica".14 O perigo dessa cascata foi evitado nos dois hospitais brasileiros; contudo, onde todos os pacientes categorizados como "inapropriado", 21,9% deles apresentaram DAC obstrutiva grave, continuaram em tratamento clínico, o qual foi realizado com base na melhor evidência disponível. Parabenizamos os autores e os médicos por fazerem as coisas certas, da maneira certa, beneficiando tanto os pacientes como o sistema de saúde.