versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.31 no.6 São Paulo 2019 Epub 02-Dez-2019
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20192018228
A ventilação mecânica invasiva, ou suporte ventilatório, é um dos procedimentos mais comuns utilizados nas unidades de terapia intensiva (UTIs)(1) para tratar pacientes com insuficiência respiratória aguda ou crônica agudizada, auxiliando na manutenção das trocas gasosas, no trabalho da musculatura respiratória e na diminuição do uso de oxigênio(2). Esse uso de suporte ventilatório fez, ao longo das décadas, a mortalidade dos pacientes críticos diminuir, resultando na conversão de muitas condições letais(3).
No entanto, o uso prolongado da ventilação mecânica invasiva, especificamente da intubação orotraqueal (IOT), acarreta diversas alterações ao indivíduo, como lesões na mucosa de vias aéreas, lesões nas pregas vocais, dilatação traqueal ou estenoses, infecções do trato respiratório, entre outros(4). Segundo o VIII Consenso da Sociedade Francesa de Medicina Intensiva(5) e demais autores(6-9), pacientes com previsão de uso de IOT acima de 21 dias(5) e com obstrução de vias aéreas superiores, excesso de secreção traqueobrônquica e dificuldades de desmame do ventilador(6-9) deverão realizar traqueostomia.
A traqueostomia é um dos procedimentos mais antigos efetuados em pacientes críticos. A cânula de traqueostomia pode ser colocada no paciente por meio cirúrgico ou dilatação percutânea. O objetivo desse procedimento é realizar uma abertura na parede anterior da traqueia, permitindo a respiração do paciente. Da mesma forma que observado na IOT, a traqueostomia pode causar alterações anatômicas que interferirão no processo fisiológico da deglutição. Segundo a literatura, alterações de deglutição são observadas em 50% a 83% dos pacientes traqueostomizados(10,11). Modificações no processo da deglutição decorrentes da traqueostomia não estão relacionadas somente ao aumento do risco de aspiração laringotraqueal (saliva ou alimento), mas principalmente a alterações da fase faríngea da deglutição(9,12). Segundo a literatura, alterações na biomecânica da deglutição associadas ao uso da traqueostomia incluem redução na elevação laríngea, que, por sua vez, tem como consequência o fechamento das vias aéreas por tempo insuficiente, pressão externa do cuff no esôfago, ocasionando dificuldade à passagem do bolo alimentar, menos pressão subglótica, aumentando a ocorrência de estase em região supraglótica, redução do reflexo de tosse, diminuindo a proteção das vias aéreas, redução do reflexo de adução das pregas vocais, ocasionando lentidão e incoordenação no fechamento destas(13).
Assim como observado em pacientes submetidos à IOT, pacientes traqueostomizados podem apresentar atraso na introdução alimentar por via oral(14,15). O processo para retirada da cânula de traqueostomia é conhecido como decanulação e pode ser realizado tanto nas UTIs quando nas enfermarias e ambulatórios(14). Diversos estudos referem a importância da participação da equipe multidisciplinar no gerenciamento desse processo, garantindo, assim, o uso de procedimentos mais seguros e eficazes. Dentre os membros que fazem parte dessa equipe multidisciplinar, a literatura destaca a participação de médicos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos e enfermeiros(16-19), estando cada um desses profissionais envolvido em uma etapa diferente do processo de decanulação.
Avaliação da deglutição e da permeabilidade de vias aéreas, desinsuflação do cuff, adaptação de válvula de fala e treino de oclusão da cânula de traqueostomia são descritos na literatura como parte do processo de decanulação(11,14,19-21). No entanto, de maneira geral, observa-se que não existe um consenso na descrição dessas etapas na literatura(22).
O objetivo do presente estudo foi realizar uma análise da literatura a fim de verificar os protocolos de decanulação da traqueostomia utilizados em estudos internacionais, observando quais os profissionais envolvidos e a descrição das etapas desse processo.
Os procedimentos descritos neste trabalho não passaram por processo de submissão nem avaliação do Comitê de Ética em Pesquisa da instituição em razão de seu caráter metodológico, um estudo de revisão de literatura.
Para estabelecer o método de pesquisa, foram seguidos os preceitos do Cochrane HANBOOK for Systematic Reviews of Interventions(23). Os artigos utilizados nesse estudo foram selecionados por meio da base de dados PubMed, usando os descritores ““Tracheostomy”, “Weaning”, “Decannulation”,”Removal tube”, “Speech, Language and Hearing Sciences”, “Intensive Care Units”, ”Dysphagia”, “Swallowing”, “Deglutition” e “Deglutition Disorders”, limitando-se aos artigos no idioma inglês, publicados entre janeiro de 2012 e dezembro de 2017.
A busca dos artigos na base de dados foi realizada independentemente por três pesquisadores, visando minimizar possíveis perdas de citações. Foram analisados os textos que efetivamente se relacionavam à proposta da pesquisa. Todas as etapas da pesquisa foram conduzidas independentemente pelos pesquisadores.
Foram incluídos artigos com população acima de 18 anos de idade que descreveram as etapas de decanulação de pacientes traqueostomizados ou que descreveram os profissionais envolvidos nesse processo. Artigos em línguas como o inglês foram excluídos, assim como aqueles que não permitiram o acesso ao texto completo e os repetidos por sobreposição das palavras-chave. Dos textos completos obtidos, foram excluídos aqueles referentes a revisões de literatura, cartas ao editor e textos que não se relacionavam diretamente ao tema. Quando houve discordância entre os pesquisadores, só foram incluídos textos em que a posição final foi consensual.
Todos os textos selecionados foram analisados quanto aos seguintes itens: caracterização da amostra (idade, gênero e distúrbio de base dos participantes); profissionais envolvidos no processo da decanulação; etapas do processo de decanulação; tempo total em dias de uso da traqueostomia; tempo total em dias para concluir processo de decanulação; fatores de insucesso para conclusão do processo de decanulação.
A pesquisa resultou em um total de 778 artigos publicados entre 2012 e 2017, e, após a retirada dos artigos duplicados, houve redução para 537 artigos. Na seleção segundo os critérios de inclusão e exclusão, encontrou-se o número final de 24 artigos analisados (Figura 1).
A seguir, observam-se os principais resultados encontrados nos estudos da presente revisão de literatura relacionados à caracterização da amostra, como média de idade, gênero, presença de grupo controle e profissionais envolvidos (Tabela 1).
Tabela 1 Principais resultados nos artigos relacionados à caracterização da amostra
Artigos | Idade | Gênero | Profissionais | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Feminino | Masculino | Médico | Fisioterapeuta | Fonoaudiólogo | Enfermagem | ||
Luo et al.(24) | 44,57 | 4 | 17 | X | |||
Berney et al.(25) | 47 | 15 | 29 | X | X | X | X |
Pandian et al.(20) | 58,07 | 18 | 39 | X | X | X | X |
Warnecke et al.(26) | 56,4 | 45 | 55 | X | X | ||
Hernández et al.(27) | 54,5 | 43 | 108 | X | X | X | |
Pryor et al.(15) | 53 | 44 | 82 | X | X | X | |
Cohen et al.(22) | 61,6 | 18 | 31 | X | X | ||
Mah et al.(19) | 55,1 | 144 | 249 | X | X | X | |
Zanata et al.(9) | 32,1 | 10 | 50 | X | |||
Mathur et al.(28) | 22,67 | 12 | 18 | X | |||
Kim et al.(29) | 47,6 | 7 | 55 | - | - | - | - |
Mitton et al.(30) | 52 | 41 | 65 | X | X | X | X |
Welton et al.(16) | 61 | 23 | 21 | X | X | X | X |
Pasqua et al.(31) | 64 | 21 | 27 | - | - | - | - |
Zanata et al.(21) | 53 | 4 | 16 | X | X | ||
Thomas et al.(17) | 71,4 | 36 | 86 | X | X | X | |
Tawfik et al.(32) | 48 | 57 | 38 | - | - | - | - |
Nakashima et al.(33) | 44,9 | 22 | 142 | X | |||
Terra et al.(34) | 37,8 | 33 | 59 | X | X | ||
Schneider et al.(35) | 61,4 | 22 | 31 | X | X | X | |
Bianchi et al.(11) | 75 | 24 | 27 | X | X | X | |
Shrestha et al.(36) | 36 | 20 | 98 | X | X | X | - |
Budweiser et al.(37) | 70 | 46 | 120 | - | - | - | - |
Gundogdu et al.(18) | 29,2 | 7 | 28 | X | X | X | X |
Média/Porcentagem | 51,5 | 29,8 | 62,1 | 70,8% | 41,6% | 66,6% | 41,6% |
Legenda: Idade (média de idade dos participantes); Gênero (número exato por gênero)
Além dos profissionais citados, dois estudos citaram a participação de terapeutas ocupacionais(17,25), dois de psicólogos(18,25) e quatro não especificaram, apenas relataram coordenadores ou profissionais da reabilitação(17,25,30,33), participando do processo de decanulação. Na área médica, as especialidades presentes foram cirurgiões de cabeça e pescoço, cirurgiões do trauma, pneumologistas, anestesiologistas, otorrinolaringologista, médico intensivista, neurologista, cirurgião torácico e fisiatra. Dos estudos de que não se obtiveram os dados, três utilizaram como forma de coleta dados dos prontuários médicos e um não mencionou os membros da equipe.
Foram listados também os dados relacionados aos distúrbios de base nas populações estudadas em cada artigo (Tabela 2). O fato de alguns trabalhos não terem os dados apresentados ocorre, pois os autores selecionaram todos os pacientes aptos ao processo de decanulação na instituição. Acrescentam-se aos dados citados na tabela que foram observados também pacientes com doença abdominal e sepse(27) e oriundos do serviço de medicamentos e da medicina física/reabilitação(20).
Tabela 2 Distúrbios de base da população de cada estudo selecionado
Artigos | Neurologia | Cabeça e pescoço | Trauma | Cardiologia | Oncologia | Doença pulmonar | Queimados | Cirurgia | Alteração de VA | Medicina geral | ||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
SNC | SNP | Geral | ||||||||||
Luo et al.(24) | X | |||||||||||
Berney et al.(25) | X | X | ||||||||||
Pandian et al.(20) | X | X | X | X | X | |||||||
Warnecke et al.(26) | X | |||||||||||
Hernández et al.(27) | X | X | X | X | X | |||||||
Pryor et al.(15) | X | X | X | X | X | X | X | |||||
Cohen et al.(22) | - | - | - | - | - | - | - | - | - | - | - | - |
Mah et al.(19) | X | X | X | X | X | |||||||
Zanata et al.(9) | X | |||||||||||
Mathur et al.(28) | - | - | - | - | - | - | - | - | - | - | - | - |
Kim et al.(29) | X | |||||||||||
Mitton et al.(30) | X | |||||||||||
Welton et al.(16) | X | |||||||||||
Pasqua et al.(31) | X | X | X | |||||||||
Zanata et al.(21) | X | |||||||||||
Thomas et al.(17) | X | X | ||||||||||
Tawfik et al.(32) | X | X | ||||||||||
Nakashima et al.(33) | X | |||||||||||
Terra et al.(34) | X | |||||||||||
Schneider et al.(35) | X | |||||||||||
Bianchi et al.(11) | X | X | X | |||||||||
Shrestha et al.(36) | X | |||||||||||
Budweiser et al.(37) | X | X | ||||||||||
Gundogdu et al.(18) | X | |||||||||||
Porcentagem | 36,3% | 31,8% | 18,1% | 9,0% | 9,0% | 22,7% | 9,0% | 13,6% | 4,5% | 21,2% | 13,6% | 13,6% |
Legenda: SNC: sistema nervoso central; SNP: sistema nervoso periférico; VA: vias aéreas
Dentre as alterações neurológicas mais encontradas, houve: lesão de medula espinhal(24,29), traumatismo cranioencefálico(9,21,36), lesões supratentorial e infratentorial(30), acidente vascular(35) e lesão cervical(18,33).
Dentre as etapas do processo de decanulação, a presente revisão de literatura encontrou, na maioria dos artigos, procedimentos de desinsuflação do cuff; treino de oclusão, substituição da cânula de traqueostomia, treino de tosse, mobilização de secreção, avaliação da permeabilidade de vias aéreas e da deglutição e uso de válvula de fala (Tabela 3). Seis estudos não descreveram em seu método o protocolo utilizado para decanulação(15,17,28,29,32,34).
Tabela 3 Etapas do processo de decanulação
Artigos | Desinsuflação do cuff | Treino de oclusão | Permeabilidade da passagem de ar | Avaliação da deglutição | Mobilização de secreção | Treino de tosse | Válvula de fala | Troca da cânula de TQT |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Luo et al.(24) | X | X | X | X | ||||
Berney et al.(25) | X | X | X | X | X | |||
Pandian et al.(20) | X | X | X | X | ||||
Warnecke et al.(26) | X | X | ||||||
Hernández et al.(27) | X | X | X | X | X | X | ||
Pryor et al.(15) | X | X | ||||||
Cohen et al.(22) | X | X | ||||||
Mah et al.(19) | X | X | X | |||||
Zanata et al.(9) | X | X | X | |||||
Mathur et al.(28) | - | - | - | - | - | - | - | - |
Kim et al.(29) | X | X | ||||||
Mitton et al.(30) | X | |||||||
Welton et al.(16) | X | X | X | X | X | |||
Pasqua et al.(31) | X | X | X | X | X | X | ||
Zanata et al.(21) | X | X | X | X | X | X | ||
Thomas et al.(17) | - | - | - | X | - | - | - | - |
Tawfik et al.(32) | - | - | - | - | - | - | - | - |
Nakashima et al.(33) | X | X | X | |||||
Terra et al.(34) | - | - | - | - | - | - | - | - |
Schneider et al.(35) | X | X | X | |||||
Bianchi et al.(11) | X | X | X | X | X | |||
Shrestha et al.(36) | X | X | X | |||||
Budweiser et al.(37) | X | X | X | |||||
Gundogdu et al.(18) | X | X | X | X | X | X | X | |
Porcentagem | 40% | 55% | 50% | 75% | 50% | 40% | 25% | 50% |
Legenda: TQT: traqueostomia
Além dos procedimentos descritos, verificou-se que 14 artigos utilizaram exames objetivos no processo de decanulação, tendo cinco utilizado nasolaringofibroscopia(11,18,20,22,31), quatro, broncoscopia(20,27,28,35), dois, tomografia(18,36) e três, videoendoscopia da deglutição(15,18,26). Além disso, observaram-se em menor escala o uso do teste de função pulmonar(29) e manometria(31).
Os dados referentes ao tempo de decanulação (tempo do processo) e ao tempo total de traqueostomia (colocação até decanulação) foram encontrados em 18 artigos (Tabela 4).
Tabela 4 Tempo total de uso de traqueostomia e tempo do processo de decanulação (em dias)
Artigos | Tempo total de TQT | Tempo de decanulação |
---|---|---|
Luo et al.(24) | 40 | 18,8 |
Berney et al.(25) | 24,65 | 9,9 |
Pandian et al.(20) | 16 | - |
Warnecke et al.(26) | 21 | 10,5 |
Hernández et al.(27) | - | 15 |
Pryor et al.(15) | 20 | 7,0 |
Cohen et al.(22) | 21,3 | - |
Mah et al.(19) | - | 7,0 |
Zanata et al.(9) | - | 59 |
Mathur et al.(28) | 16,6 | 26,5 |
Kim et al.(29) | 91,61 | - |
Mitton et al.(30) | 28 | - |
Welton et al.(16) | 59 | 12 |
Pasqua et al.(31) | - | 45,9 |
Zanata et al.(21) | - | 74 |
Thomas et al.(17) | 31,3 | 17,66 |
Tawfik et al.(32) | 31 | - |
Nakashima et al.(33) | 61,5 | 16,9 |
Média | 35,5 | 24,6 |
Legenda: TQT: traqueostomia
Os fatores que levaram ao insucesso no processo de decanulação foram dificuldade de expectoração ou aumento da secreção, presença de estenose traqueal e infecção pulmonar, sendo os três mais presentes nos estudos (Quadro 1).
Quadro 1 Fatores de insucesso para conclusão do processo de decanulação
Artigos | Fatores de insucesso |
---|---|
Luo et al.(24) | Dificuldade de expectoração/aumento de secreção; infecção pulmonar; ventilação mecânica prolongada; realização tardia da traqueostomia. |
Berney et al.(25) | Infecção pulmonar e trauma facial. |
Pandian et al.(20) | Dificuldade de expectoração/aumento de secreção; ventilação mecânica prolongada; mais tempo de uso da traqueostomia. |
Warnecke et al.(26) | Aspiração silente de saliva; disfagia; tosse. |
Hernández et al.(27) | Dificuldade de expectoração/aumento de secreção; ventilação mecânica prolongada; disfagia; idosos. |
Pryor et al.(15) | Queimados. |
Cohen et al.(22) | Estenose. |
Mah et al.(19) | - |
Zanata et al.(9) | - |
Mathur et al.(28) | Mais tempo de uso da traqueostomia e estenose. |
Kim et al.(29) | - |
Mitton et al.(30) | Dificuldade de expectoração/aumento de secreção e disfagia. |
Welton et al.(16) | - |
Pasqua et al.(31) | Infecção pulmonar e mais tempo de uso da traqueostomia. |
Zanata et al.(21) | Dificuldade de expectoração/aumento de secreção; aspiração silente de saliva e tosse. |
Thomas et al.(17) | - |
Tawfik et al.(32) | Estenose. |
Nakashima et al.(33) | - |
Terra et al.(34) | Estenose. |
Schneider et al.(35) | Infecção pulmonar e idosos. |
Bianchi et al.(11) | - |
Shrestha et al.(36) | Tosse. |
Budweiser et al.(37) | Idosos. |
Gundogdu et al.(18) | Estenose. |
-: estudos que não analisaram os fatores de insucesso do processo de decanulação
O presente estudo de revisão de literatura encontrou nos 24 artigos analisados: número de variável de participantes – variação entre 20(9) e 393(19) indivíduos; média de idade – ampla variação entre 23(28) e 71 anos(17); na maioria dos estudos, a idade variou entre 45 e 60 anos; prevalência do gênero masculino; prevalência de doenças neurológicas; doenças do sistema nervosa central (SNC) apareceram em 36,3% dos estudos, doenças do sistema nervoso periférico (SNP), em 31,8% e outras alterações neurológicas não especificadas, em 18,1%.
Dentre os profissionais envolvidos no processo de decanulação, médicos e fonoaudiólogos foram os mais apontados nos estudos, com porcentagens de 70,8% e 66,6%, respectivamente. Dos 24 estudos analisados, 17 citaram mais de um profissional participando desse processo, sendo eles, além de médicos e fonoaudiólogos, fisioterapeutas e enfermeiros. Um estudo comparou grupos de pacientes traqueostomizados pré e pós-intervenção por equipe multidisciplinar, analisando o tempo de desmame da ventilação mecânica (VM), troca da cânula de traqueostomia e tempo de encaminhamento para avaliação fonoaudiológica. Esse estudo concluiu que a participação de uma equipe multidisciplinar no tratamento desses pacientes pode melhorar a qualidade e a eficácia dos atendimentos(16).
Os artigos analisados descrevem alguns critérios que devem ser apresentados pelos pacientes a fim de garantir o sucesso da decanulação. Tais critérios são não dependência de umidificação(24) e ventilação mecânica; avaliação prévia da deglutição (garantindo que não existe risco para aspiração)(9,22,24,26,31); pelo menos oito pontos na Escala de Coma de Glasgow(9,27); estabilidade da frequência cardíaca(22,27), sendo menor que 140 batimentos/minuto; não dependência de drogas vasoativas; temperatura inferior a 38°C(27); presença de reflexo de tosse espontâneo(22,27,31); habilidade no manejo de secreções(15); estar traqueostomizado há pelo menos sete dias; frequência respiratória abaixo de 20 ciclos/minuto(22); saturação de oxigênio acima de 90% em ar ambiente(9,22); nível de consciência alerta e colaborativo. O estudo de Pasqua et al.(31) mostrou que 100% dos pacientes que apresentavam todos esses critérios foram decanulados com sucesso, enquanto, entre os pacientes que não apresentavam nenhum desses critérios, apenas 10% concluíram o processo com sucesso.
Quanto aos procedimentos executados durante o processo de decanulação, duas etapas são consideradas primordiais para o início desse processo, sendo elas a desinsuflação do cuff e a avaliação da permeabilidade de vias aéreas(27). Segundo os dados descritos na Tabela 3, oito dos 24 estudos analisados citaram o processo de manipulação do cuff ou balonete como item principal no processo de decanulação. O estudo realizado por Gundogdu et al.(18) descreveu que todos os participantes que realizaram treino de desinsuflação do cuff associado ao treino da musculatura inspiratória obtiveram mais sucesso na decanulação. Ainda segundo a literatura, a associação entre o treino de desinsuflação do cuff e técnicas de estimulação da deglutição e tosse reduziu de maneira eficiente o tempo da decanulação(11).
Considerando a presença do cuff, a literatura analisada descreve que, durante o processo de decanulação, o cuff deve permanecer desinsuflado pelo maior tempo possível, considerando a tolerância, a necessidade de ventilação e a quantidade de secreção do paciente(15,25). Essa etapa do processo deve ser iniciada precocemente, a fim de evitar possível perda da sensibilidade da orofaringe(25). Os resultados da presente revisão ainda apontam que pacientes estáveis, que se mantenham confortáveis com o cuff desinsuflado já na primeira tentativa, devem permanecer assim de maneira contínua(15). A literatura ainda aponta que o cuff deverá permanecer insuflado apenas nos casos em que seja necessário realizar aspiração traqueal quatro vezes ou mais no período de oito horas(27). É importante ressaltar que o processo de desinsuflação do cuff foi descrito em 40% dos artigos analisados, uma vez que alguns autores consideram essa etapa precursora ao início do processo de decanulação propriamente dito.
Após a desinsuflação do cuff, a literatura aponta a necessidade de avaliação da permeabilidade de vias aéreas, ou seja, a verificação da passagem de ar pelas pregas vocais para as vias aéreas superiores. Estudos apontam que nessa etapa a traqueostomia deverá ser ocluída (dedo, válvula de fala ou êmbolo de seringa)(25) por um período de até cinco minutos(27). Durante esse período, o paciente deverá ter os sinais vitais monitorados (frequências cardíaca e respiratória, pressão sanguínea e saturação de oxigênio), uma vez que a alteração desses sinais é sugestiva de obstrução de vias aéreas.
A descrição do treino de oclusão da traqueostomia não foi uniforme nos estudos analisados. As opções encontradas para esse treino foram: permanecer 48 horas com a traqueostomia ocluída(9,25,31); permanecer 24 horas com a traqueostomia ocluída(16,20,27) e, caso ocorra desconforto, optar por uma abordagem mais conservadora, realizando a seguinte sequência: 12 horas ocluída, 12 horas desocluída e nova tentativa em permanecer 24 horas com a traqueostomia ocluída(20).
Estudos que não relataram o treino da oclusão da traqueostomia como etapa do processo de decanulação realizaram a decanulação com base nos resultados da avaliação da deglutição(26) e da permeabilidade de vias aéreas(22) ou não descreveram detalhadamente o processo(15,19,30). Quanto ao uso da válvula de fala (25% dos artigos) e à troca da cânula de traqueostomia (50% dos artigos) durante o processo da decanulação, observa-se que cinco artigos descrevem o uso da válvula para treino de oclusão da traqueostomia(16,19,20,25,30) e nove artigos, a troca de cânula de traqueostomia como etapa prévia ao treino da oclusão (troca por uma cânula de menor calibre(16,19,24,27); troca por cânula fenestrada ou sem cuff(25); troca por cânula metálica)(9).
Para pacientes que apresentam alterações dos sinais vitais durante a etapa de oclusão da traqueostomia, sugere-se a realização de um exame objetivo, como broncoscopia(27), para confirmar a obstrução de vias aéreas. Nesta revisão, sete estudos fizeram uso da broncoscopia(20,27,28,31,32,34,35) e três estudos, da laringoscopia(20,22,34) a fim de confirmar a presença de obstrução de vias aéreas. É importante ressaltar que um dos estudos aqui analisados, cujo objetivo foi avaliar, por meio da broncoscopia, indivíduos aptos à decanulação, verificou que não houve correlação entre o sucesso da decanulação e os achados desse exame (características da traqueostomia, inflamação, infecção, granulações, ulcerações, entre outros)(28).
Neste sentido, os autores concluem que limitar o procedimento de decanulação a um exame de permeabilidade de vias aéreas não é o método mais adequado para assegurar o sucesso da decanulação. Dessa forma, os exames objetivos utilizados para verificar a presença de alterações, como estenose traqueal ou granulomas (fibroscopia, broncoscopia etc.)(31,34), devem fazer parte do processo de decanulação e não ser determinantes nesse processo.
Segundo Hernández et al.(27), após a realização das etapas anteriores, sugere-se a avaliação da capacidade do paciente em proteger as vias aéreas inferiores, evitando, assim, uma possível broncoaspiração. Essa avaliação é realizada por meio da avaliação da deglutição. Nessa revisão, 75% dos artigos analisados realizaram algum tipo de avaliação da deglutição durante o processo de decanulação. Para verificar o risco de broncoaspiração durante a deglutição, foi observado nos estudos analisados o uso dos seguintes procedimentos: teste do corante azul(31), teste do corante azul modificado(26), avaliação clínica(9,15,17,18,26,27,36), avaliação objetiva (videodeglutograma e videoendoscopia da deglutição)(11,15,17,18,26,29,31,35). Cabe ressaltar que em três dos artigos analisados, apesar de os autores citarem a importância da avaliação da deglutição, não descreveram como esta foi realizada(19,22,24).
A metodologia aplicada para a avaliação clínica da deglutição variou consideravelmente entre os estudos, não havendo um consenso quanto ao melhor protocolo/procedimento a ser utilizado. Os principais procedimentos utilizados foram: oferta de 50 ml de água com o cuff desinsuflado(27); avaliação baseada no Frazier Free Water Protocol, com oferta de água em livre demanda, independentemente de o cuff estar insuflado ou não(15); oferta de 200 ml de água e água espessada na consistência pudim com cuff desinsuflado, sendo a água espessada oferecida nos volumes de 5 ml, 10 ml e livre demanda(9); avaliação da habilidade do paciente em deglutir secreção, eficiência da tosse e quantificação da secreção aspirada da traqueostomia(26).
Quanto à avaliação objetiva da deglutição, esta foi realizada por meio de dois exames: o videodeglutograma e a videoendoscopia da deglutição. Assim como observado para a avaliação clínica da deglutição, não foi observado um consenso quanto aos itens avaliados nos exames objetivos descritos nos estudos analisados. Cada estudo descreve o protocolo utilizado na instituição em que os dados foram coletados. Para a videoendoscopia da deglutição, foram observados os seguintes itens: presença de aspiração massiva ou silente de saliva; eficiência da deglutição espontânea de saliva por minuto; avaliação da sensibilidade orofaríngea e presença do reflexo de tosse; observação dos eventos de deglutição após a oferta de uma colher de chá de água e purê(26). O videodeglutograma foi realizado com a oferta de líquidos finos e semissólidos(29), em diferentes volumes e quantidades.
Outra etapa envolvida no processo de decanulação, descrita em dez dos artigos analisados, é a avaliação da capacidade de o paciente gerenciar as secreções(27) e expeli-las pela orofaringe por meio de tosse(20). Essa etapa de avaliação foi conduzida nos estudos por fisioterapeutas(27) e fonoaudiólogos(26), tendo sido observadas eficiência da tosse(22,26), quantidade(26) e qualidade da secreção e frequência da necessidade de aspiração da traqueostomia(27). Segundo Hernández et al.(27), um dos critérios que deve ser considerado para que a decanulação ocorra com sucesso é a necessidade de aspiração da traqueostomia, que não deve ultrapassar o máximo de duas vezes no intervalo de oito horas.
Para pacientes que não conseguirem passar nessa etapa, oito dos estudos sugeriram o treino da tosse. Por meio da avaliação dessa etapa, observou-se a necessidade de realizar treino de tosse em alguns pacientes. Esse treino apareceu em oito estudos, sendo a tosse manualmente assistida uma das técnicas utilizadas(24).
O desempenho suficiente da musculatura respiratória e a consequente eficácia da tosse, a permeabilidade normal das vias aéreas e a ausência de disfagia facilitam o processo de remoção da cânula na maioria dos casos(31). A última etapa do processo de decanulação é a permanência da traqueostomia ocluída. Segundo Zanata et al.(21), durante a oclusão do tubo, o paciente deve ser capaz de respirar espontânea e suficientemente por meio da via aérea superior, mantendo a saturação de oxigênio estável.
Considerando o tempo de uso de traqueostomia, foi observada na literatura analisada uma variação entre 16 e 91 dias, tendo o processo de decanulação sido realizado em sete a 74 dias. Segundo Thomas et al.(17), a doença de base tem impacto direto no tempo de decanulação. Segundo a literatura, o local de lesão cerebral (SNC ou SNP) tem impacto direto no tempo médio de decanulação, sendo este menor nos pacientes com doenças neurológicas centrais(11,18,24). O estudo que apresentou o maior tempo no processo de decanulação (74 dias) foi realizado em pacientes vítimas de acidente vascular encefálico isquêmico(35).
Por fim, os estudos apontam os seguintes fatores como negativos para o processo de decanulação: indivíduos do gênero masculino(27,28), presença de traumas faciais(25), pacientes com queimaduras(15), broncopneumonia(25), aumento de secreção(20), uso de ventilação mecânica por tempo prolongado(20), aspiração silente de saliva(26), ausência de deglutição de saliva(26), alteração na sensibilidade laríngea(26), tosse ineficiente(26), idade acima de 60 anos(27), necessidade frequente de aspiração da traqueostomia(20,27,30), presença de estenose traqueal(22), tempo prolongado de uso da traqueostomia(20,28), presença de disfagia(30), pH baixo e PaO2 elevada(31).
A presente revisão de literatura conclui que:
os profissionais mais presentes no processo de decanulação são médicos e fonoaudiólogos, tendo relevância também a participação de fisioterapeutas e enfermeiros;
os fatores apontados como indicativos de sucesso no processo de decanulação são estabilidade clínica e hemodinâmica, nível de consciência alerta e paciente colaborativo, não necessidade de ventilação mecânica, não dependência de umidificação, bom gerenciamento das secreções e ausência de broncoaspiração;
dentre as etapas mais importantes no processo de decanulação, destacam-se desinsuflação do cuff; permeabilidade de vias aéreas, avaliação da deglutição, gerenciamento das secreções e treino de oclusão da traqueostomia;
a avaliação da deglutição foi a etapa do processo de decanulação mais citada nos artigos analisados, evidenciando a importância do profissional fonoaudiólogo nesse processo.