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Critérios psicológicos para contraindicação em candidatos a transplante pulmonar: um estudo de cinco anos

Critérios psicológicos para contraindicação em candidatos a transplante pulmonar: um estudo de cinco anos

Autores:

Elaine Marques Hojaij,
Bellkiss Wilma Romano,
André Nathan Costa,
Jose Eduardo Afonso Junior,
Priscila Cilene Leon Bueno de Camargo,
Rafael Medeiros Carraro,
Silvia Vidal Campos,
Marcos Naoyuki Samano,
Ricardo Henrique de Oliveira Braga Teixeira

ARTIGO ORIGINAL

Jornal Brasileiro de Pneumologia

versão impressa ISSN 1806-3713versão On-line ISSN 1806-3756

J. bras. pneumol. vol.41 no.3 São Paulo maio/jun. 2015

http://dx.doi.org/10.1590/S1806-37132015000004446

Desde que o transplante pulmonar se tornou o padrão de tratamento para pacientes com doença pulmonar avançada, mais de 32.000 procedimentos foram realizados em todo o mundo.( 1 ) Em nosso instituto, 220 pacientes foram submetidos a transplante pulmonar desde o ano 2000. No entanto, a escassez de pulmões doados adequados exige que os profissionais responsáveis selecionem para receber transplante pulmonar somente os pacientes nos quais a probabilidade de sobrevida após o procedimento seja significativa.( 2 , 3 ) De fato, cerca de 17% de todos os pacientes que recebem transplante pulmonar morrem no primeiro ano após o transplante,( 2 ) o que é motivo de grande preocupação com a seleção de candidatos a transplante pulmonar, pois os médicos devem garantir que aqueles que receberem um transplante cuidarão adequadamente de seu novo órgão.

Como os candidatos a transplante pulmonar podem apresentar desequilíbrio emocional em virtude da natureza incapacitante e possivelmente mortal de sua doença,( 3 ) o aconselhamento a esses indivíduos implica uma série de questões práticas para os psicólogos. Sabe-se que a doença pulmonar crônica está associada a um aumento do risco de depressão e outros transtornos mentais. Craven( 4 ) estudou 116 pacientes aptos para transplante pulmonar e constatou que quase metade apresentava transtornos psiquiátricos diagnosticáveis, tais como transtorno depressivo maior, transtorno de ansiedade e transtorno de pânico, isoladamente ou conjuntamente. Além disso, como observaram Manzetti et al.,( 5 ) o tempo de espera por um transplante pulmonar é um período marcado por grande ansiedade, e os pacientes na lista lidam com muitos estressores relacionados com a saúde, tais como a perda da capacidade física, hospitalizações frequentes e a dependência progressiva de oxigênio.( 5 ) Em uma revisão da literatura, Barbour et al.( 3 ) constataram que candidatos a transplante pulmonar podem apresentar níveis elevados de sofrimento psíquico no momento da avaliação. Os autores constataram também que, se não tratadas, comorbidades psicológicas nesses indivíduos podem ter um efeito negativo significativo nos desfechos clínicos após o transplante.( 3 )

Há um consenso geral de que o tabagismo atual ou recente é uma contraindicação absoluta ao transplante pulmonar, assim como o são o abuso de drogas, o abuso de álcool e as doenças psiquiátricas graves, e de que a adesão adequada à prescrição médica é fundamental para alcançar um prognóstico favorável.( 6 ) Assim, a avaliação psicológica é um passo importante da avaliação pré-operatória de candidatos a transplante, pois pode identificar padrões de comportamento e estados emocionais que podem afetar o curso da doença antes e depois do transplante.( 7 ) A avaliação do grau de compreensão do paciente é outro aspecto importante do processo de avaliação, assim como o são a determinação das atitudes do paciente a respeito de sua doença e do transplante iminente e a identificação de um cuidador comprometido. A escolaridade, a competência sociocultural e a capacidade cognitiva dos candidatos a transplante pulmonar também devem ser avaliadas de perto, pois são fatores que podem influenciar sua adesão ao tratamento pós-transplante.( 3 , 7 ) Além disso, além da compreensão do processo de transplante, deve-se levar em conta o grau de motivação do paciente para se submeter ao procedimento e se envolver no processo.( 3 )

Em nosso instituto, a equipe médica e cirúrgica, juntamente com um psicólogo, um enfermeiro, um fisioterapeuta, um nutricionista e um assistente social, fazem uma avaliação pré-transplante completa de cada candidato a transplante pulmonar. Todos os casos são então discutidos em uma reunião semanal da equipe multidisciplinar, cujos membros decidem, coletivamente, quais pacientes serão incluídos na lista de espera de transplante pulmonar.

O presente estudo, realizado pelo Grupo de Transplante Pulmonar do Departamento de Pneumologia do Instituto do Coração, Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, em São Paulo (SP), foi uma análise retrospectiva dos registros das reuniões semanais da equipe multidisciplinar realizadas entre maio de 2009 e maio de 2014, com foco na avaliação das questões psicológicas. Nosso objetivo foi avaliar as causas psicológicas da exclusão da lista de espera para transplante pulmonar em um programa de referência. As opiniões expressas pelo Serviço de Psicologia do Instituto do Coração foram analisadas, e os problemas considerados causas possíveis de complicações pós-transplante foram categorizados de acordo com os critérios para a indicação e a contraindicação de transplante, estabelecidos em diretrizes internacionais para a seleção de candidatos a transplante pulmonar.( 8 )

Foram analisados os dados relativos a 345 casos apresentados nas reuniões semanais da equipe multidisciplinar. A idade dos pacientes variou de 12 a 67 anos, e 176 (51%) eram do sexo feminino. Membros do Serviço de Psicologia identificaram contraindicações (relativas ou absolutas) de transplante em 117 (33,91%) dos 345 pacientes (Tabela 1): dependência química nos últimos seis meses, em 4 pacientes; limitações cognitivas associadas à falta de apoio social adequado, em 3 pacientes; adesão inadequada ao tratamento, em 24 pacientes; a falta de um cuidador ou ausência de apoio social, em 43 pacientes; qualquer transtorno psicológico que pudesse prejudicar a assistência (especialmente depressão), em 34 pacientes; falta de conhecimento da doença subjacente e do programa de transplante, em 16 pacientes; incerteza quanto à decisão de se submeter ao transplante, em 11 pacientes; recusa absoluta do paciente a se submeter ao transplante, em 14 pacientes. É digno de nota que alguns dos pacientes apresentavam mais de um fator complicador.

Tabela 1. Contraindicações do transplante pulmonar. 

Contraindicação n = 345
Recusa do paciente a se submeter ao transplante, n (%) 14 (4,05)
Dependência química nos últimos 6 meses, n (%) 4 (1,15)
Adesão inadequada ao tratamento, n (%) 24 (6,95)
Qualquer transtorno psicológico que pudesse prejudicar a assistência (especialmente depressão), n (%) 34 (9,86)
Limitações cognitivas associadas a apoio social inadequado, n (%) 3 (0,86)
Falta de conhecimento, por parte do paciente, da doença subjacente e do procedimento de transplante, n (%) 16 (4,63)
Falta de um cuidador ou ausência de apoio social, n (%) 43 (12,46)
Incerteza quanto à decisão de se submeter ao transplante, n (%) 11 (3,18)
Total, n (%) 117 (33,91)

Dos 117 pacientes com contraindicações psicológicas, 76 (64%) foram encaminhados para acompanhamento psicológico e reavaliação posterior. Após as avaliações psicológicas, os pacientes foram informados a respeito de todos os complicadores observados e receberam orientações sobre a melhor forma de resolvê-los. Todos foram orientados a procurar apoio psicológico no hospital do qual haviam sido encaminhados ou em um serviço de saúde próximo às suas residências. Dos 76 pacientes que foram reavaliados, 45 (59%) foram posteriormente colocados na lista de espera para transplante pulmonar. No momento em que este texto foi redigido, 17 desses pacientes haviam sido submetidos a transplante e 21 aguardavam a cirurgia. Sete dos 45 morreram enquanto estavam na lista de espera.

O presente estudo é um retrato interessante dos problemas psicológicos que afetam pacientes avaliados para receber transplante pulmonar em um único centro. O transplante de órgãos, especialmente o transplante de pulmão, é um processo árduo, com passos difíceis que apresentam muitos desafios psicológicos, e essas dificuldades persistem durante toda a vida do receptor.( 9 , 10 ) Portanto, os pacientes devem estar emocionalmente estáveis e ser capazes de lidar com as frustrações individuais, e a avaliação psicológica pré-operatória deve ser capaz de identificar aqueles que não estão preparados para a cirurgia, impedindo-os de passar por um procedimento potencialmente danoso e malsucedido. No entanto, em virtude de seu desejo de ganhar a aceitação da equipe de transplante, alguns pacientes podem ser reservados ou minimizar suas preocupações.( 3 ) A avaliação psicológica deve, portanto, destinar-se a estabelecer empatia, proporcionando aos pacientes a oportunidade de compartilhar suas preocupações com um profissional treinado, e deve ser capaz de identificar problemas modificáveis ou contraindicações absolutas nesse grupo de indivíduos.

Para o receptor do transplante, o alívio do sofrimento que acompanha uma doença pulmonar incapacitante, crônica, tem um preço - as provações relativas à adesão a um tratamento a longo prazo( 6 ) - e a estabilidade psicológica é fundamental para enfrentar esse desafio. É essencial que os pacientes reconheçam e considerem essas questões antes do transplante, pois transtornos psicológicos comórbidos, tais como ansiedade e depressão, relacionam-se com más práticas de saúde ao longo de todo o processo de transplante e com desfechos pós-transplante desfavoráveis. Após o transplante, as preocupações psicossociais tendem a girar em torno da adaptação a um novo estilo de vida, o que também deve ser uma questão de grande preocupação para a equipe de saúde. Assim, o transplante pulmonar apresenta aos psicólogos muitos aspectos que exigem avaliação e intervenção. Consequentemente, os psicólogos são membros fundamentais da equipe multidisciplinar e são indispensáveis na avaliação pré-operatória de candidatos a transplante pulmonar, pois certos fatores psicossociais podem identificar pacientes que não devem ser submetidos ao procedimento. Questões como comportamentos relacionados com um estilo de vida insalubre, o descumprimento do tratamento e a falta de um cuidador confiável (todas as quais foram observadas na população estudada) são significativos fatores de risco de desfechos pós-transplante desfavoráveis e devem ser resolvidas antes de incluir o paciente na lista de espera de transplante.( 3 ) A presença de um cuidador inadequado é uma grande preocupação em nosso instituto. Nossa tarefa é identificar tais problemas e evitar que pacientes de alto risco sejam submetidos ao procedimento cirúrgico, o que nos permite garantir que os pacientes selecionados sejam aqueles com maior probabilidade de colher todos os benefícios do transplante pulmonar. Devemos tentar ajudar os pacientes que apresentem problemas psicológicos a resolver esses problemas e preencher os critérios de inclusão na lista de espera.

REFERÊNCIAS

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Barbour KA, Blumenthal JA, Palmer SM. Psychosocial issues in the assessment and management of patients undergoing lung transplantation. Chest. 2006;129(5):1367-74.
Craven J. Psychiatric aspects of lung transplant. The Toronto Lung Transplant Group. Can J Psychiatry. 1990;35(9):759-64.
Manzetti JD, Ankeny R, Miller D. Psychosocial and ethical issues in surgical approaches to end-stage lung disease. Clin Chest Med. 1997;18(2):383-90.
Costa AN, Hojaij EM, Mello LS, Melo FX, Camargo, PC, Campos SV, et al. Nonadherence to treatment in lung transplant recipients: a matter of life and death. J Bras Pneumol. 2015;41(1):95-7.
Dobbels F, Verleden G, Dupont L, Vanhaecke J, DeGeest S. To transplant or not? The importance of psychosocial and behavioural factors before lung transplantation. Chron Respir Dis. 2006;3(1):39-47.
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Tavares, EM. A vida depois da vida: reabilitação psicológica e social na transplantação de órgãos. Análise Psicológica. 2004;22(4):765-77.
Biagi AU, Sugano CF. Transplante de órgãos. In: Romano BW, editor. Manual de Psicologia Clínica para Hospitais. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2008. p. 145-208.