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Crônicas do grupo: ferramenta para análise colaborativa e melhoria da reflexão na pesquisa-ação

Crônicas do grupo: ferramenta para análise colaborativa e melhoria da reflexão na pesquisa-ação

Autores:

Taís Quevedo Marcolino,
Aline Maria de Medeiros Rodrigues Reali

ARTIGO ORIGINAL

Interface - Comunicação, Saúde, Educação

versão impressa ISSN 1414-3283versão On-line ISSN 1807-5762

Interface (Botucatu) vol.20 no.56 Botucatu jan./mar. 2016 Epub 13-Nov-2015

http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622015.0257

RESUMEN

Se analizan las funciones que la “crónica del grupo” (narrativa de los acontecimientos – verbales/no verbales – de un grupo de personas discutiendo un tema común) puede asumir en proyectos de investigación-acción relacionados a la Educación Permanente en Salud. Se entiende la práctica profesional en sus aspectos complejos y tácitos, insertada en lo social, como propone la Comunidad Práctica/CoP. Se parte de los resultados de investigación-acción que utilizó la crónica del grupo como herramienta no dialéctica. Se utilizó el análisis temático en 31 trechos de las transcripciones de encuentros presenciales entre los participantes que contenían la palabra “crónica”, identificándose cinco funciones: facilitación de la comunicación, compromiso y construcción de la identidad, memoria del grupo y continuidad del aprendizaje, toma de conciencia de los aspectos implícitos y análisis colaborativo. Esa herramienta va al encuentro de proyectos educativos-investigativos que busquen la promoción de la reflexión para la mejora de prácticas en salud y construcción de conocimiento bajo esa perspectiva.

Palabras-clave: Educación Permanente; Investigación cualitativa; Conocimiento, actitudes y prácticas en salud; Recursos humanos en salud; Narrativa

O desafio da Educação Permanente em Saúde: contribuições de pesquisa-ação e das proposições da Comunidade de Prática

Mudanças na assistência em saúde no Brasil vêm sendo alvo de políticas voltadas para humanização e trabalho em rede, demandando estratégias de formação continuada, como fomentado pela Política de Educação Permanente em Saúde/EPS brasileira. O desafio que se coloca é a transformação de práticas de formação em serviço/educação continuada encomendadas, verticalizadas, voltadas para profissionais de categoria única e centradas em processos de aprendizagem técnico-instrumental, para propostas participativas, dialógicas e que estejam voltadas para a realidade do trabalho das pessoas, na organização dos processos de trabalho, na assistência e na gestão em saúde1-5.

Para a efetivação dessas mudanças, almeja-se que a EPS se concretize em processos coletivos e crítico-reflexivos sobre o processo de trabalho4-8, compreendendo a aprendizagem como dinâmica, processual, fruto do engajamento ativo no mundo em um processo de produção de sentidos9. Além disso, a EPS demanda valorizar tanto as experiências vividas pelos profissionais e os sentidos que foram construídos a partir delas – dado o caráter tácito sobre o qual a experiência é construída8,9 –, como a reflexão sobre a experiência, que impulsiona o profissional a se tornar consciente do que é tácito, avaliar ações e redefinir significados, podendo, assim, produzir novos conhecimentos10,11.

A EPS busca enfrentar a cristalização de padrões implícitos de organização, trabalho e assistência, pois, “frequentemente, problemas aparentemente de natureza técnica podem expressar conflitos latentes nos modos de pensar e atuar dos profissionais”4 (p. 897). De modo a promover a transformação pela educação, o problema em questão precisa vir à tona, os sujeitos precisam se reconhecer na singularidade da situação e serem reconhecidos em suas necessidades e potencial criativo-transformador4.

Esses pressupostos são também preconizados pela pesquisa-ação que, na interface entre os campos da educação e da saúde, vem sendo utilizada para produção de conhecimento e de tecnologia de cuidado, assim como de formação e desenvolvimento profissional12-17. Essa modalidade de investigação qualitativa assenta-se na produção colaborativa de saberes sobre uma temática de ordem prática, incluindo todos os envolvidos (pesquisadores/autores e participantes/atores) em modos recíprocos de relação, e colocando-se subserviente à prática, voltada para seu aprimoramento, ao construir ações intencionais visando transformações18-21.

Alguns projetos de pesquisa-ação no campo da saúde têm se referenciado na Comunidade de Prática e Identidade (CoP)9 por apresentar uma estrutura teórico-metodológica que favorece a combinação dessas características22-28. A CoP implica a participação ativa de seus membros, construindo e moldando o conhecimento no diálogo consigo mesmo e com os demais, encorajando os participantes a: refletirem, pesquisarem, analisarem e avaliarem coletivamente suas próprias ações, valores e conhecimentos. Seu eixo condutor é a negociação de significados, ao compartilhar e produzir: repertórios, conhecimentos, modos de fazer, instrumentos, histórias.

A CoP oferece uma estrutura que fomenta a continuidade da aprendizagem na interação entre a participação dos indivíduos e a reificação (o que é produzido pela participação) para organizar ações e interações, de modo a produzir novos sentidos e novas formas de participação, sempre com o foco na prática. A reificação dos processos de aprendizagem se dá em diferentes materiais (protocolos, cartazes, quaisquer elementos reais da mudança organizacional de um serviço), e cria marcos externos que favorecem a percepção e a consciência do que foi produzido, além de servirem como pontos de apoio para novas reflexões, em torno dos quais a negociação pode ser organizada9.

Nessa direção, Toledo et al.20identificaram que pesquisas-ações metodologicamente estruturadas de modo a oferecer ferramentas reflexivas, nomeadas de dialéticas, e ferramentas não dialéticas, que apresentam análises e resultados para os participantes, proporcionam maior implicação de todos os envolvidos na pesquisa, reciprocidade nas relações entre pesquisadores e atores19,29 e participação no projeto:

Ao serem discutidos com os participantes os resultados destes instrumentos, são fornecidas respostas às indagações, favorecendo, inclusive, a credibilidade para com a metodologia (diminuindo a resistência) e contribuindo para a compreensão dos envolvidos sobre a relevância da problemática em foco.20 (p. 639)

O uso da crônica do grupo como elemento não dialético em pesquisa-ação

Em nosso estudo30 também encontramos resultados similares aos de Jacobi, Giatti e Toledo20. Nossa pesquisa-ação estava interessada em compreender o desenvolvimento profissional de terapeutas ocupacionais em início de carreira, e contribuir para o aumento da reflexividade sobre a prática e melhoria do raciocínio clínico. As seis profissionais participantes cursavam o segundo ano de Residência em Terapia Ocupacional em Saúde Mental, e a pesquisa-ação foi ofertada como uma atividade de extensão. Nessa pesquisa-ação, os elementos dialéticos foram: a participação quinzenal em um grupo de reflexão presencial, com uma hora e meia de duração, ao longo de dez meses, e a escrita de diários reflexivos por cada uma das participantes, com feedback da pesquisadora, em comunicação por endereço eletrônico31. Os elementos não dialéticos que fizeram parte do desenho metodológico foram: a crônica do grupo, a devolutiva da análise preliminar dos primeiros seis encontros e a devolutiva da análise final dos dados.

A crônica do grupo caracteriza-se por ser uma narrativa dos acontecimentos (verbais e não verbais) de um encontro de um grupo de pessoas voltado para a discussão de um tema comum, contendo a interpretação do que foi discutido pelo grupo e excertos exemplificadores dessas interpretações. Essa ferramenta insere-se teórica e metodologicamente na teoria dos grupos operativos de Pichón-Rivière32,33, que valoriza a comunicação como elemento-chave para a aprendizagem. No grupo operativo, além da presença do coordenador do grupo, que é responsável por facilitar a comunicação, também existe o observador, que não participa das discussões, mas se mantém presente fazendo anotações sobre a comunicação verbal e não verbal. O observador e o coordenador são responsáveis por elaborarem a crônica do grupo com base no relato descritivo feito pelo observador, considerando: o que aconteceu antes da reunião e na reunião em si, o tema principal e os conteúdos mais relevantes discutidos no grupo, temas não compreendidos e incômodos percebidos.

No contexto da pesquisa, Lucchese e Barros34 sugerem que a crônica do grupo possa ser utilizada como um diário de campo e, mesmo, como uma etapa da análise de dados, por contar com a colaboração conjunta do coordenador e do observador.

Em nossa pesquisa-ação, não contamos com a participação de um observador. Assim, os encontros presenciais foram gravados em áudio e transcritos, e, a partir dessa transcrição, a crônica era elaborada. Líamos cada trecho da transcrição, buscando identificar o assunto em pauta, tanto em termos temporais (uma coisa depois da outra) como causais (uma coisa por causa da outra), como pode ser visto no Quadro 1. Essa estratégia foi pensada, inicialmente, tanto para que alguma participante que tivesse faltado pudesse saber o que havia sido discutido, como para servir de base para outras discussões, como material reificado9. Depois de elaborada, a crônica era enviada por correio eletrônico a todas as integrantes, as quais tinham o compromisso de a ler antes do próximo encontro do grupo.

Quadro 1 Trecho da crônica do décimo quarto encontro da CoP30

“[...] O grupo validou as colocações da pesquisadora e da colaboradora e colocou a questão sob o ponto de vista do CRESCIMENTO PROFISSIONAL, do quanto a maturidade pode levar a uma maior tranquilidade no que se refere à ESPECIFICIDADE PROFISSIONAL, a partir das experiências vividas e refletidas.
‘[...] que é isso, não está longe do nosso pensamento isso que a gente está conversando hoje, faz total sentido o que você está falando, o que todo mundo está falando, então se faz sentido é porque tem algo dentro de mim que diz isso, mas por que é que quando eu estou na prática isso me pega de um jeito que parece que é um vírus, que você dá uma respirada você já se contaminou? – Mas não é terapia ocupacional, por que ela quer dar argila para ela? Ela é psicóloga, vai dar argila – [...] eu acho que talvez com a experiência [...] a gente se sente mais tranquilo em relação à nossa prática, [...] não sei se a gente está num momento de descobrir, e a gente está em vários espaços diferentes, e as pessoas cobram coisas diferentes a partir da compreensão que elas têm do que a gente pode fazer, e aí a gente fica muito perdida, [...] eu acho que é uma imaturidade profissional assim, pelo menos é como eu me sinto, porque faz total sentido [...]’
‘[...] acho que essa diferença que você está trazendo que faz um sentido, [...] entre alguma coisa que é, é vivenciado, refletido, vivenciado de novo, refletido e vivenciado de novo, que é a construção da experiência e da maturidade profissional que permite que isso venha com mais tranquilidade, o que você está dizendo é que talvez por enquanto eu precise de uma cola de vez em quando para poder me lembrar disso, mas daqui um tempo isso vai vir naturalmente, com a experiência você vai estar, não, eu acredito.’
‘[...] eu assim tenho acreditado cada vez mais que as pessoas que mais se incomodam com a sua prática é quem cresce.’
[...]”

Assim, por se tratar de um processo contínuo (18 encontros em grupo), no qual a devolutiva oferecida pela crônica do grupo referente ao encontro passado era um elemento constante, observamos uma profícua relação estabelecida entre o elemento reificado não dialético (a crônica do grupo) e a participação nos encontros.

Trabalhos que discutem o uso da narrativa no processo de pesquisa-ação de avaliação qualitativa destacam a capacidade da narrativa para dar voz à multiplicidade de sujeitos de maneira ampla e encadeada, coerente, de modo a se aproximar o melhor possível da realidade vivida, assim como do que foi produzido pelos participantes13,15,35,36. Além disso, indicam a pouca exploração da capacidade da narrativa como dispositivo de comunicação, no contexto da pesquisa-ação, como possibilidade de os sujeitos retornarem a narrações anteriores em um círculo de construção de sentidos10, justamente o que observamos em nossa pesquisa-ação, essa característica da crônica do grupo como potência comunicativa.

Essa e outras características observadas, como a capacidade da ferramenta de promover a participação na pesquisa e favorecer o reconhecimento dos reais problemas a serem trabalhados na CoP27, levaram-nos a buscar sistematizar essa experiência e compreender quais aspectos circundaram a utilização da crônica do grupo como ferramenta formativa e investigativa no processo de pesquisa-ação.

Metodologia

De modo a compreender quais aspectos circundaram a utilização da crônica do grupo na pesquisa-ação desenvolvida, localizamos a palavra “crônica” em todas as transcrições das conversas dos encontros presenciais da CoP, com a ferramenta de localização de palavras em software editor de texto. A palavra foi encontrada 32 vezes. Ao analisar o contexto em que se inseriam, bem como seu significado, somente um aparecimento continha sentido diferente de “crônica do grupo” (crônica como gênero literário). Esses excertos (a palavra no contexto da conversa) foram submetidos à análise temática37, buscando-se desvelar seus núcleos de sentido, a constância e a importância de sua repetição para elucidar a que a ferramenta estava se prestando.

Resultados

Foram identificados cinco núcleos de sentido para as conversas das participantes da CoP nos encontros presenciais que continham a palavra “crônica”. A análise dos temas elucidou cinco funções que essa ferramenta exerceu ao longo do desenvolvimento da CoP, favorecendo a participação grupal, a aprendizagem colaborativa e a validação das interpretações da pesquisadora dos eventos ocorridos em encontros anteriores: 1 facilitar a comunicação; 2 favorecer engajamento e construção da identidade grupal; 3 garantir a memória do grupo e a continuidade da aprendizagem; 4 possibilitar a tomada de consciência dos aspectos implícitos; 5 possibilitar análise colaborativa pela avaliação da interpretação.

1 Facilitar a comunicação

Parte das vezes em que a palavra “crônica” apareceu nas conversas da CoP teve a função de: dar início à conversa, nomear seu foco, chamar as demais participantes para a discussão, oferecer direcionamentos, diminuir a ansiedade diante do desconhecido – sobretudo, nos primeiros encontros do grupo, na medida em que apresentava a produção anterior do grupo. Essa função foi bastante utilizada pela coordenadora/pesquisadora, parecendo ter a intenção de facilitar a comunicação e propiciar que as pessoas se envolvessem na conversa e participassem.

“[...] lendo a crônica, relendo a nossa história no grupo passado, […] uma das coisas que mais apareceu […] foi esse interjogo e eu [...] o quanto que isso [...] é sofrido por ambos os lados, [...]”. (pesquisadora, quarto encontro)

“[...] eu fiz uma cópia para cada uma, […] queria saber se vocês topam essa proposta de resgatar um pouco... [...]”. (pesquisadora, quinto encontro)

”[...] eu fico lembrando da crônica, num momento que alguém fala assim: [...]”. (Mariana, segundo encontro)

“Acho que só para retomar […] a crônica do último encontro, […] a gente começou a escolher temas que o grupo […] se interessa a discutir [...]”. (pesquisadora, sexto encontro)

“Acho que eu vou chegar um pouco perdida e quando eu li fui me acalmando [...]”. (Mariana, segundo encontro)

2 Favorecer engajamento e construção da identidade grupal

Nestes excertos, a palavra “crônica” esteve inserida na conversa das participantes da CoP quando elas se identificavam com o que havia sido dito, e, muitas vezes, percebendo-se nos excertos das falas. Esse movimento pareceu ir ao encontro da proposição da construção da identidade e do engajamento em participar do empreendimento9, ou, mesmo, nas proposições da pesquisa-ação18, favorecendo a implicação no trabalho colaborativo, como nos trechos a seguir:

“Eu achei interessante a gente ver a nossa fala […] escrita: nossa, fui eu que falei! Você lê e daí depois você pensa: é, fui eu que falei isso [...]”. (Marisa, terceiro encontro)

“[…] eram coisas que eu também sentia, mas algumas delas eu não coloquei no diário, então foi muito familiar para mim o que foi discutido”. (Mariana, terceiro encontro)

“Eu fiquei pensando: nossa, incrível! Eu falei: meu, deus, queria estar lá e foi dando muito uma sensação gostosa, sabe! Nossa, eu não estou sozinha nas minhas angústias, nas minhas dúvidas! [...] foi incrível […] ver que todo mundo passa por essas angústias, por essas dúvidas. Foi emocionante também, as falas, como foi colocado, o que as pessoas traziam”. (Fernanda, 15º encontro)

3 Garantir a memória do grupo e a continuidade da aprendizagem

Os trechos dessa categoria demonstram que a crônica do grupo foi utilizada como reificação da produção grupal, permitindo acesso à informação para quem faltou e resgate de temas já discutidos. Essa função propiciou que o processo de aprendizagem não sofresse paralisações, desencontros ou desentendimentos.

“Eu que não estava aqui, acho que foi muito bom, gostei muito de poder ter esse acesso, [...]”. (Mariana, terceiro encontro)

“Ter esse recurso, […] a memória do grupo”. (Marisa, terceiro encontro)

“[…] poder ler essa sétima crônica, que vários temas já tinham aparecido antes, de outras maneiras, essa coisa da responsabilidade já tinha aparecido antes, num outro contexto, mas às vezes os temas voltam. Voltou de novo agora”. (pesquisadora, oitavo encontro)

“Então acho que também foi confortável, é um cuidado, são falas, mas deste grupo, como é que a gente foi construindo, e aqui está uma coisa construída mesmo. Não só o que cada um foi falando na outra semana, no outro encontro”. (Cecília, terceiro encontro)

4 Possibilitar a tomada de consciência dos aspectos implícitos

Dado o caráter tácito sobre o qual a experiência é construída, e sua importância para a prática profissional diária, os excertos constituintes desse tema revelam esse caráter implícito, e revisitar o que foi conversado no grupo tornou possível escolher novos caminhos, tornar-se mais consciente dos conflitos, avaliar ações e redefinir significados. Os momentos de maior impacto na CoP, no sentido de redirecionar o trabalho colaborativo e elaborar tensões, foram caracterizados pela tomada de consciência de aspectos até então desconhecidos27.

“Nossa, eu não tinha ideia! […] Eu não tinha ideia que tinha falado de outras coisas, [...]”. (Fernanda, quinto encontro)

“Eu tive uma impressão que estava muito fora da proposta do grupo na outra semana e aí lendo, eu fiquei: tem muito a ver com o que é ser um terapeuta, no sentido iniciante do que a gente está questionando [...]”. (Isadora, quinto encontro)

“Sempre quando eu vou ler: quanta coisa! Parece que a gente não tem a dimensão de tudo que a gente falou, de tudo que foi dito. Eu fico com essa sensação, e é bom olhar depois que a gente viveu, poder olhar e ver tudo que [...] aconteceu”. (Marisa, oitavo encontro)

5 Possibilitar análise colaborativa pela avaliação da interpretação

Embora boa parte da validação das interpretações da pesquisadora seja visível nos excertos relativos às outras funções, alguns excertos, em menor quantidade no bojo de todos os encontros, estiveram diretamente relacionados à apreciação das participantes sobre a forma e os conteúdos da crônica, assim como da pesquisadora em convidar as participantes a essa apreciação.

“E aí [...]? Eu tinha pedido para vocês darem uma olhada na crônica, e o que vocês acharam [...]?”. (pesquisadora, oitavo encontro)

“[...] muito legal essa ideia de você compartilhar com a gente também o que você foi pensando […]’. (Mariana, terceiro encontro)

“E eu achei também que foi interessante saber de que forma que você vai fazer esse relato. Eu achei interessante ter acesso também a essa coisa que você faz [...]”. (Tatiane, terceiro encontro)

“É bem... Está bem legal assim”. (Tatiane, oitavo encontro)

Discussão

A primeira e a segunda categorias destacam a função da crônica para facilitar a comunicação do grupo, bem como a participação e a construção da identidade na CoP. A participação ativa, implicada, pode ser considerada o elemento motivador de uma pesquisa-ação17, indispensável para garantir a qualidade e efetividade do projeto, na medida em que todos os sujeitos envolvidos constroem um sentido de pertencimento21.

Apontam-se9 relações entre participação e identidade, na medida em que a construção de uma identidade passa pela negociação de sentidos da experiência de ser membro em comunidades sociais. Assim, a prática sob o aspecto da identidade pode ser compreendida como um campo de negociação das formas de “ser uma pessoa” nesse contexto, em um processo de constituição mútua entre indivíduo e comunidade, considerando as tensões decorrentes do conflito inerente entre individual e coletivo.

A crônica do grupo pareceu favorecer o “tornar-se membro” de uma CoP, na medida em que, ao explicitar o reconhecimento desse pertencimento, pelas falas imersas no texto, demarcava a participação de cada uma no todo construído. Assim, chamava as participantes para lidarem com a identidade que aquele grupo estava produzindo e a negociarem a sua identidade diante dessa nova comunidade.

A construção da identidade é processual e temporal9. Assim, o que se objetiva em uma pesquisa-ação é que os participantes negociem significados e atinjam clareza do que valorizam como importante ou não para determinado tema e determinada prática, o que contribui para a identidade dessa comunidade e o que pode ser deixado na marginalidade.

Desse modo, as funções da crônica de facilitar a comunicação, favorecer o engajamento e a construção da identidade em um processo indivíduo-comunidade parecem favorecer a identificação do problema a ser enfrentado/discutido/negociado e aumentar a percepção dos participantes sobre sua implicação na pesquisa-ação, de modo a estabelecer processos de negociação de identidade entre o que desejam e o que a comunidade almeja. Essas características propiciam o trabalho grupal sobre as tensões geradas em direção à construção de conhecimento, tendo em vista que essa modalidade de pesquisa é totalmente dependente da participação dos sujeitos18,29.

A pesquisa-ação demanda um processo de transformação de atores em autores19,29. Em uma perspectiva do profissional reflexivo, trata-se de transformar profissionais em investigadores da própria prática, no contexto no qual ela ocorre10. Para a efetivação de mudanças nas práticas de cuidado, o processo de reflexão – considerado um pensamento atrelado à ação e que demanda uma ação diferente da rotineira – amplia a compreensão das relações com outras experiências e ideias, criando condições para a continuidade da aprendizagem38,39.

O processo de reflexão tem o potencial de trazer à tona os aspectos implícitos da prática10. Assim, a crônica do grupo, ao se colocar como objeto reificado da participação dos sujeitos na CoP, agiu como um marco externo, favorecendo a consciência do que o grupo produziu e de aspectos tácitos não percebidos anteriormente, o que favoreceu novas reflexões, em torno dos quais a negociação pode ser organizada9.

Gostaríamos de destacar que a crônica foi a ferramenta utilizada para fixar o discurso das participantes, sendo o discurso em si uma forma de reificação, porém tão efêmera que parece participação. Ao ser reificado em forma de narrativa, o discurso ganha independência do sujeito9, e a narrativa passa a mediar discurso e ação13. Assim, a crônica do grupo não trata apenas do passado, mas pode ser utilizada para mudar o foco, possibilitar novas maneiras de compreensão e de se estabelecer novas relações. Nesse contexto, o que é novo pode ser transformado em conhecimento, que é o contexto ideal para a aprendizagem e criação de conhecimento9.

Em nosso estudo, a crônica do grupo foi utilizada não somente como elemento não dialético, na perspectiva de devolver as interpretações/resultados da equipe de pesquisa para os participantes em um único momento, mas se inseriu em um processo ampliado (dez meses, em encontros quinzenais), retomando o que foi produzido anteriormente como base para uma nova produção. Essa característica de continuidade da narrativa/crônica também demonstrou sua capacidade para fomentar a comunicação de modo fluente e poroso13, alimentando tanto o processo de aprendizagem como da pesquisa.

Assim, ao validarem as interpretações da pesquisadora a respeito do discurso do encontro anterior, as participantes também propiciavam que a análise dos dados da pesquisa fosse contínua e sendo preliminarmente feita e validada (quinta categoria). A crônica do grupo favoreceu o processo de sistematização e de objetivação dos dados, na medida em que elucidava o tema em foco na discussão, garantindo o que foi nomeado de visibilidade construída14.

Ao abrirem espaços para elementos até então desconhecidos, as crônicas trabalharam para tensionar discurso e ação, gerando elementos profícuos para a pesquisa-ação e dando visibilidade ao que é subjetivo e particular, difícil de ser acessado em metodologias de pesquisa mais pontuais, e que não dependa tanto da participação ativa dos sujeitos/atores.

Considerações finais

Neste artigo, procuramos elucidar aspectos relativos ao uso da ferramenta “crônica do grupo”, tanto para promoção da reflexão como para análise colaborativa em um processo de pesquisa-ação. Desse modo, foi possível desvelar que tal ferramenta pode contribuir para favorecer a comunicação em processos grupais, fomentar a participação dos sujeitos/atores na pesquisa-ação, e favorecer a negociação/construção de identidade no projeto.

A interação entre a participação dos sujeitos e o resultado dessa participação, como a crônica do grupo, favoreceu a ampliação do conhecimento sobre o tema/problema em questão14, contribuindo para a produção de conhecimento e cuidado em saúde que, na maioria das vezes, abarca problemas de natureza complexa, de desafios transdisciplinares com vistas a intervenções bem-sucedidas12,17,20.

A crônica do grupo também propiciou um processo de produção colaborativa de saberes, na medida em que se ofereceu como dispositivo de resgate da produção anterior (memória) e que, sobretudo, serviu como dispositivo independente do sujeito9, para que novas reflexões fossem elaboradas, em um processo contínuo.

Os referenciais utilizados para a construção de nossa pesquisa30, como a Comunidade de Prática e Identidade9, a Epistemologia da Racionalidade Prática10,11 e os referenciais da pesquisa-ação18,29, foram os mesmos para a análise dos resultados desse estudo; e foi possível estabelecer relações positivas entre diferentes temas complementares: fomento de mudanças na prática, no nosso caso, do cuidado na saúde; aprendizagem profissional e aprendizagem colaborativa; a natureza da prática e a reflexão sobre ela como mecanismo de construção de conhecimento; a participação dos sujeitos/atores para construção de conhecimento sobre a prática e voltada para sua melhoria; e pesquisa-ação.

Do ponto de vista da EPS, tanto esses referenciais como a ferramenta “crônica do grupo” parecem se ajustar aos objetivos de uma educação para o Sistema Único de Saúde a partir do tensionamento dos processos de trabalho, organização e gestão1-8. Além disso, levando-se em consideração que a participação dos sujeitos é o fator de garantia de qualidade de qualquer processo formativo, a crônica do grupo pode ser utilizada como uma estratégia a mais, que favoreça a construção da identidade de uma comunidade de prática que busca mudanças na Saúde.

Entretanto, caso o processo de EPS não se insira em uma pesquisa-ação formal, tendo em vista o grande tempo demandado para a realização de transcrições e elaboração da crônica, outras estratégias podem ser pensadas, como a presença de um observador do grupo, ou, mesmo, de membros participantes que, em determinados encontros, assumam a tarefa de registro e construção da narrativa/crônica.

Como pesquisadoras, gostaríamos de ressaltar que o exercício de elaboração da crônica do grupo favoreceu que estivéssemos, constantemente, imersas na pesquisa, identificando questões, levantando hipóteses, refletindo sobre quais possíveis ações se ajustariam melhor para determinada situação. Foi um processo de retroalimentação entre intervenção e pesquisa, de fomento da reflexividade na equipe de pesquisa, e de ampliação das questões relativas ao projeto, registradas no diário de campo.

Em relação aos limites deste artigo, reconhecemos que nossa análise pautou-se em uma única experiência, e, assim, nosso objetivo limitou-se ao de elucidar alguns aspectos relativos ao uso desse tipo de ferramenta.

Diante disso, destacamos a funcionalidade da crônica do grupo como uma ferramenta que vai ao encontro de projetos educacionais e investigativos que busquem a promoção da reflexão para melhoria de práticas de cuidado em saúde; e projetos de pesquisa-ação interessados em compreender aspectos da prática à luz de como os profissionais a compreendem, e construir conhecimento nesse contexto.

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