versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.35 no.9 Rio de Janeiro 2019 Epub 09-Set-2019
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00180218
Estimates point to more than seven thousand rare diseases already identified, representing 6 to 10% of all diseases. In Brazil, a rare disease is defined as one that affects up to 65 persons per 100,000. The quantification of costs for the families of patients with such conditions and their impact on income provides information capable of supporting public policies for these youngsters. The study aimed to estimate the cost and loss of earnings, viewed from the perspective of families of children and adolescents with cystic fibrosis, mucopolysaccharidosis, and osteogenesis imperfecta. The study included 99 families of patients treated at a national referral hospital for rare diseases in Rio de Janeiro, based on the principal caregiver’s report. The descriptive data analysis showed that the median direct nonmedical cost for families was BRL 2,156.56 (USD 570) for cystic fibrosis, BRL 1,060.00 (USD 280) for mucopolysaccharidosis, and BRL 1,908.00 (USD 505) for osteogenesis imperfecta. Loss of earnings exceeded 100% for all three diseases. A total of 54% of families fail to receive any social benefits. The estimate of coping costs indicated that 69% of the families had incurred loans and that 22.5% had sold household assets to cope with the treatment costs. Catastrophic expenditures were observed in families dealing with the three diseases. The results unveil costs that are rarely estimated, and not only in the field of rare diseases. The findings point to a major burden on the families’ income. It is important to incorporate such studies in the discussion of financing, the incorporation of new technologies, and the supply of health services.
Keywords: Rare Diseases; Costs and Cost Analysis; Income
Las estimaciones apuntan que hay más de 7 mil enfermedades raras ya identificadas, que representan de un 6 a un 10% de todas las enfermedades en el mundo. En Brasil, se considera enfermedad rara a aquella que afecta hasta a 65 personas por cada 100 mil individuos. Cuantificar los costos para las familias de pacientes que las sufren, y el peso económico que representan para la renta familiar, proporciona información capaz de apoyar políticas públicas destinadas a estos pacientes. El objetivo de este estudio fue estimar el coste y la pérdida de renta desde la perspectiva de las familias de niños y adolescentes con fibrosis cística, mucopolisacaridosis y osteogénesis imperfecta. Se realizó con 99 familias de pacientes atendidos en un hospital de referencia nacional en enfermedades raras en Río de Janeiro, a través del relato del cuidador principal. El análisis descriptivo de los datos mostró que el coste medio directo no-médico para las familias fue de BRL 2.156,56 en la fibrosis cística, BRL 1.060,00 en la mucopolisacaridosis y BRL 1.908,00 en la osteogénesis imperfecta. La pérdida de renta superó el 100% en las tres condiciones analizadas. Un total de un 54% de las familias no recibe beneficios asistenciales. La estimativa de coping costs indicó que un 69% de las familias accedieron a préstamos y un 22,5% vendieron bienes para lidiar con los costos del tratamiento en curso. Se observaron gastos catastróficos para las familias de las tres enfermedades analizadas. Los resultados traen a colación un tema que desvela costos poco estimados, no solamente en el campo de las enfermedades raras. Son resultados que indican una carga importante sobre la renta de las familias. Es importante incorporar estudios de esta naturaleza en la discusión sobre la financiación, incorporación de nuevas tecnologías y oferta de servicios de salud.
Palabras-clave: Enfermedades Raras; Costos y Análisis de Costo; Renta
Estimativas apontam que há mais de 7 mil doenças raras já identificadas, que representam de 6 a 10% de todas as doenças no mundo 1. Os critérios para a definição das doenças raras variam conforme o país, ainda que haja um consenso de que são condições que afetam um pequeno número de pessoas 2. A prevalência tem sido adotada com maior frequência para essa definição 3. No Brasil, considera-se doença rara aquela que afeta até 65 pessoas em cada 100 mil indivíduos (Portaria nº 199/20144). Nos Estados Unidos, o número é de 7,5/10 mil habitantes 2 e na União Europeia a doença é rara quando há menos de 5 em 10 mil indivíduos 5.
A maioria das doenças raras está associada à elevada necessidade de saúde não satisfeita devido, destacadamente, à insuficiência de tratamentos efetivos 6,7,8. Nos últimos anos, observa-se um interesse maior em diversas vertentes, sobretudo na ampliação dos investimentos em pesquisa que têm sido alavancados pela introdução de mecanismos regulatórios e incentivos econômicos. As colaborações entre o setor público e a indústria farmacêutica, associações de pacientes e pesquisadores também têm potencializado os avanços no campo das doenças raras 3,5,6.
Vale ressaltar que, muito embora as referências utilizadas ressaltem a locução “doenças raras” - como o próprio campo acadêmico e o político reconhecem, inclusive na narrativa das associações que militam nesse contexto -, ousa este trabalho se referir mais a essas crianças e adolescentes como pessoas vivendo com condições de saúde raras e complexas, a fim de retomar o componente da vida, da saúde e da sua complexidade de cuidado, que necessariamente demanda uma referência de base familiar. Dialogando com a Organização Mundial da Saúde (OMS) 9, mas especificando aquilo que o documento não explicita, reivindica-se assumir a ideia de condições raras e complexas de saúde como fundamentais para reconhecer de quem se fala e destacar que: (1) não são quaisquer pessoas, mas crianças e adolescentes, e por isso existem questões de dependências de cuidados, organização de referências familiares, apoios para construção de autonomia que as fazem diferentes de adultos ou idosos; (2) diferentemente de outras condições de saúde crônicas mais frequentes, e que não carecem de visibilidade pelo Estado, a qualidade de serem “raras” e complexas contribui para refletir sobre linhas de cuidados para esse grupo de crianças e adolescentes 10 e o ativismo político de suas famílias 11. Nesse contexto, como lembram Rabeharisoa et al. 12, as associações de familiares se apresentam interessadas em imprimir sentido às suas experiências e melhorar a sua vida, em questionar o papel da medicina e conhecimento médico juntamente com outras áreas de especialização e na elaboração de respostas a questões relacionadas às suas condições. Nessa direção, faz total sentido iluminar as questões referentes aos custos dessas condições de saúde raras na vida das famílias de crianças e adolescentes.
A Portaria nº 199/20144, ao instituir a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras (PNAI-PDR) e aprovar as Diretrizes para Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), estabeleceu responsabilidades entre os entes federativos para o funcionamento dos serviços de saúde, bem como a estruturação de uma linha de cuidado da atenção. Ademais, define valores absolutos de incentivos financeiros para as equipes dos centros de referência habilitados. Tal formalização do cuidado integrado nos níveis de atenção do SUS inclui ainda ações para ampliar a autonomia dos pacientes e de seus familiares, por meio da avaliação de suas vulnerabilidades. Se, no Brasil, o direito à saúde está fundamentado na Constituição Federal e garantido pelo SUS, o acesso e, por consequência, as necessidades de saúde para serem atendidas dependem de fatores muitas vezes não considerados na operacionalização dessa política, como a capacidade de um indivíduo procurar os serviços de saúde e a disponibilidade de meios para garantir seu acesso.
Se o contexto atual remete às discussões de operacionalização da PNAI-PDR, do custo da atenção à saúde, notadamente do financiamento de medicamentos e seu impacto orçamentário no SUS, além da disponibilidade e alocação de recursos de saúde, aqui se opta por revelar a perspectiva das famílias de pacientes com fibrose cística, mucopolissacaridoses e osteogênese imperfeita. Destaca-se que a perspectiva da família ou do paciente é pouco estudada em pesquisas de avaliação econômica no Brasil 13. As diretrizes nacionais para a realização desses estudos recomendam aos demandantes de novas tecnologias a serem incorporadas que adotem a perspectiva do SUS como órgão comprador de serviços de saúde. A perspectiva da sociedade que inclui os custos com atenção à saúde, custos para os pacientes e famílias e os custos por causa da perda de produtividade por morte prematura ou incapacidade é uma recomendação adicional 14. Assim, o foco das avaliações econômicas está concentrado na clínica e no desempenho da tecnologia, ou seja, se ela é segura, eficaz, eficiente, efetiva e custo-efetiva, que são critérios de extrema relevância, porém pouco conectados às questões de acesso e às repercussões econômicas da doença para o paciente e sua família. Nesse sentido, concorda-se com Aureliano 15, ao apontar que as doenças raras, antes de ser uma condição clínica, são uma questão de família.
Esta pesquisa estimou o custo sob a perspectiva das famílias de crianças e adolescentes com fibrose cística, mucopolissacaridoses e osteogênese imperfeita. A fibrose cística é uma doença genética autossômica recessiva e suas repercussões clínicas estão associadas a diferentes órgãos e sistemas, especialmente ao aparelho respiratório 16,17. As mucopolissacaridoses são doenças metabólicas causadas pela deficiência de uma das enzimas lisossômicas responsáveis por uma etapa específica na degradação dos glicosaminoglicanos. As manifestações clínicas são específicas para cada um dos seis tipos de mucopolissacaridoses já identificados 18. A osteogênese imperfeita se caracteriza pela fragilidade óssea, fraturas recorrentes com deformidades secundárias, surdez precoce, escleras azuladas e dentinogênese imperfeita 19.
Ainda que muitas tecnologias para diagnóstico e tratamento dessas condições de saúde raras estejam bem estabelecidas na literatura e nos centros de referência em doenças raras do SUS, adicionar a perspectiva do paciente e das famílias nas pesquisas que discutem acesso, necessidades de saúde e avaliação de tecnologias de saúde pode vir a ampliar o debate acerca das consequências que a condição de saúde rara pode trazer sob o ponto de vista econômico para esses grupos. Diante de uma produção incipiente no país de estudos dessa natureza, a consequência é a ausência de divulgação de dados importantes, como: (1) despesas do próprio bolso (out-of-pocket costs, como alimentação, transporte, medicamentos, materiais, uso de serviços privados de fisioterapia, fonoaudiologia, nutrição, educação física, órteses e próteses, remuneração de cuidador, dentre outros); (2) custos indiretos estimados pela perda de renda da família no curso do tratamento como consequência da redução do tempo de trabalho do cuidador, de sua saída do mercado do trabalho ou de nunca ter se inserido nele e também associados à perda de produtividade por conta da morte prematura ou a incapacidade geradas pela doença 20; e (3) coping costs associados ao termo coping strategies que são os mecanismos ou atividades de enfrentamento dos membros das famílias a fim de auxiliá-los na sobrevivência diária em determinada situação 21. Nesta pesquisa, considera-se como tais mecanismos a venda de patrimônio e a busca por empréstimos para arcar com as despesas relacionadas à condição de saúde rara. Assim, parece ser senso comum que esses custos existem, mas como não são mensurados; desconhece-se a sua magnitude. O mesmo é encontrado em países europeus, onde há escassez de pesquisas que estimem o custo para a sociedade 6.
Agrava-se a situação se se considerar que esses custos muitas vezes podem se tornar catastróficos e repercutir sob diferentes aspectos na vida das famílias 22. Estudos nacionais já indicaram que o gasto privado em saúde em geral é elevado e comprometem uma parte importante da renda 23,24. Como consequência, pode ocorrer a redução do consumo de bens e serviços essenciais à vida, expondo esses sujeitos à situação de vulnerabilidade social 23.
Neste artigo, ilumina-se a vertente da pesquisa matriz Como São Raras Essas Crianças e Adolescentes? Interlocuções entre Associações de Familiares de Pessoas com Doenças Raras e a Promoção do Direito à Saúde de Crianças e Adolescentes com Condições Crônicas, Raras e Complexas de Saúde no que se refere ao custo para as famílias, mediante relato do cuidador principal. Desse modo, agregaram-se, nesta análise descritiva de custo, famílias que possuem a autoridade do conhecimento adquirido pela experiência pessoal 11. No caso, essa autoridade se encontra referida à dimensão associativa, que operou como critério de inclusão de três associações civis que são referências no campo da pesquisa para famílias e profissionais de saúde. Portanto, para base desta escolha está não a centralidade da doença rara, mas critérios que estão privilegiando famílias que frequentam o hospital e dialogam com o campo de pertencimento e ligação ao associativismo político. Essas três condições de saúde, mais que patologias, integram a complexidade da vida com a cronicidade de base rara, na articulação associativa e de ativismo político organizado em esferas públicas de decisão - citam-se aqui os conselhos municipal e estadual de saúde do Rio de Janeiro e o Comitê Estadual de Defesa dos Direitos Humanos das Pessoas com Doenças Raras do Estado do Rio de Janeiro, como lugares onde atuam. Além dessa interface relevante de organização de advocacy, elas operam como referências de apoio para famílias de crianças e adolescentes vivendo com condições de saúde raras, grupo populacional que se deseja iluminar na investigação que subsidia o artigo, não só no Estado do Rio de Janeiro, mas nacionalmente.
A realização desta pesquisa se fortalece na justificativa de dar visibilidade a outras questões importantes para além da oferta de tecnologias de diagnóstico e tratamento no sistema de saúde. Nesse sentido, ressalta-se que o cuidado e os custos se prolongam muitas vezes por um longo horizonte temporal e permanecem durante todo o curso da condição de saúde rara, repercutindo no cotidiano das famílias. Logo, espera-se que além de apresentar resultados associados diretamente com a unidade de análise “família”, este estudo contribua para que mais pesquisas incluam essa perspectiva como elemento relevante para a tomada de decisão na área da saúde e apoie o debate no âmbito das diferentes políticas públicas que se relacionam com as condições de saúde raras.
As análises foram baseadas em um questionário aplicado em pesquisas anteriores 13 e ajustado para atender às especificidades das condições de saúde raras analisadas. O respondente nesta pesquisa foi o cuidador principal, caracterizado como a pessoa responsável pelo acompanhamento e assistência de longa permanência ao paciente em sua rotina de cuidados diários. A entrevista se iniciava com o entrevistador informando ao acompanhante do paciente sobre a pesquisa e perguntando se ele ou ela era o cuidador principal. Em caso afirmativo, convidava-o a responder ao questionário e se responsabilizava por completá-lo com base nas respostas fornecidas, pois ele não era autoaplicável. Esse instrumento incluiu perguntas sobre o perfil socioeconômico, demográfico, acesso aos benefícios assistenciais, inserção em associações de pacientes e estimativa dos custos para as famílias no curso da condição de saúde rara (custo direto não médico e coping costs), além da perda de renda antes e depois da investigação diagnóstica e o tempo dispendido do cuidador principal com o cuidado do paciente. O custo direto não médico se refere aos recursos e insumos que não estão diretamente associados ao consumo em saúde, mas que apoiam o tratamento no curso da doença 10. O custo mediano anual para as famílias incluiu a alimentação, transporte, estacionamento, medicamentos e serviços de saúde de apoio ao tratamento, como órteses, próteses, e consultas com profissionais de saúde. Estimou-se também o custo de adaptações na residência (como obras, melhorias em instalações elétricas, água, dentre outros) para melhorar a rotina de cuidados do paciente pelo cuidador e atender às necessidades do seu dia a dia, como mobilidade, alimentação, cuidados pessoais, bem como facilitar o manejo da rotina diária de cuidado.
Para descrição da renda e dos custos, foram apresentados os valores medianos e os percentis 25 e 75. As variáveis categóricas foram apresentadas em frequências absolutas e percentuais. Para a análise da renda antes e depois da investigação diagnóstica, considerou-se a renda exclusiva do trabalho do cuidador, declarada no momento da entrevista, excluindo-se os benefícios assistenciais por não serem renda do trabalho. Foi perguntado ao entrevistado se estava cadastrado no Programa Bolsa Família (Lei nº 10.836/200425), destinado à transferência de renda às unidades familiares, e se recebiam o Benefício de Prestação Continuada (BPC), instituído pela Lei Orgânica da Assistência Social (Lei nº 8.742/199326). O BPC tem o valor de um salário mínimo e se destina às pessoas com deficiência e também aos idosos com idade a partir de 65 anos. São elegíveis os indivíduos com renda familiar mensal per capita inferior a 1/4 do salário mínimo. A disponibilização do Tratamento Fora do Domicílio (TFD) também foi perguntada aos cuidadores. Este instrumento deve garantir o acesso aos serviços de saúde às pessoas domiciliadas em municípios ou estados que distam mais de 50km do local de tratamento (Portaria nº 55/199927). O ajuste da renda salarial no momento da investigação diagnóstica foi feito pelo uso do Índice Nacional de Preços ao Consumidor - INPC (http://www.ibge.gov.br). Os resultados estão apresentados em reais (R$) de 2017, e o horizonte temporal para estimar os custos e a perda de renda levou em conta o momento anterior e posterior à investigação diagnóstica. Para a comparação da renda nos períodos supracitados, foram considerados todos os cuidadores, inclusive aqueles que não trabalhavam no momento da investigação diagnóstica e/ou na data da entrevista, levando-se em conta nesses casos uma renda de R$ 0,00. Para estimar se houve gastos catastróficos para as famílias, definiu-se um limiar de, no mínimo, 10% do custo direto não médico anual em relação à renda anual das famílias 28.
O estudo foi realizado em um hospital de referência nacional em doenças raras localizado no Estado do Rio de Janeiro e aprovado pelo Comité de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz - IFF/Fiocruz (parecer nº 45682215.9.0000.5269).
Foram entrevistados cuidadores de 99 famílias, perfazendo um número total de 106 entrevistas. A amostra continha cinco famílias com dois pacientes e uma com três pacientes em tratamento. Esses cuidadores responderam a um questionário para cada criança. Dentre os cuidadores, havia 62 (58%) de crianças e adolescentes com fibrose cística, 16 (15%) de mucopolissacaridoses e 28 (27%) de osteogênese imperfeita.
A Tabela 1 mostra que metade dos pacientes era do sexo masculino, 50% eram pretos e pardos, 41% tinham 11 anos ou mais e a mãe era a principal cuidadora (72%). Um total de 59% dos pacientes não possuía plano de saúde. A maioria dos cuidadores (51%) tinha entre 20 e 39 anos de idade e 40% reportaram ter até 9 anos de estudo representados pelos níveis educacionais fundamental completo ou incompleto. A maioria residia fora do Município do Rio de Janeiro (67%) e 7% eram de outros estados, especificamente São Paulo (2) e Pará (3). Mais da metade dos cuidadores (54%) estava desempregada e 43% trabalhavam no momento da entrevista. A maioria das famílias (83%) participava das associações que a representam (Tabela 2). Dentre as famílias que estavam organizadas em associações, 99% residiam no Estado do Rio de Janeiro. Em relação aos benefícios assistenciais concedidos pelo poder público, 54% das famílias não recebiam o BPC e 65% tinham acesso ao TFD. Um total de 11 famílias (19,3%) de pacientes com fibrose cística relatou não ter renda proveniente do trabalho e o mesmo foi observado para três famílias (20%) e cinco famílias de pacientes com mucopolissacaridoses e osteogênese imperfeita, respectivamente.
Tabela 1 Características das crianças e adolescentes com fibrose cística, mucopolissacaridoses e osteogênese imperfeita. Rio de Janeiro, Brasil, 2017 (n = 106).
Características | n | % |
---|---|---|
Sexo | ||
Masculino | 53 | 50 |
Feminino | 53 | 50 |
Faixa etária (anos) | ||
0-5 | 21 | 20 |
6-10 | 42 | 39 |
11-15 | 22 | 21 |
Acima de 15 | 21 | 20 |
Raça | ||
Branca | 43 | 41 |
Parda | 39 | 37 |
Preta | 14 | 13 |
Sem informação | 10 | 9 |
Parentesco com o cuidador | ||
Mãe | 77 | 72 |
Pai | 19 | 18 |
Avó/Avô | 4 | 4 |
Outro | 6 | 6 |
Plano de saúde | ||
Possui | 42 | 40 |
Não possui | 63 | 59 |
Sem informação | 1 | 1 |
Tabela 2 Características dos cuidadores de pacientes com fibrose cística, mucopolissacaridoses e osteogênese imperfeita. Rio de Janeiro, Brasil, 2017 (n = 99).
Características | n | % |
---|---|---|
Faixa etária (anos) | ||
20-29 | 12 | 12 |
30-39 | 38 | 39 |
40-49 | 20 | 20 |
50-59 | 14 | 14 |
Acima de 60 | 5 | 5 |
Sem informação | 10 | 10 |
Escolaridade | ||
Fundamental 1 incompleto | 9 | 9 |
Fundamental 1 completo | 19 | 19 |
Fundamental 2 completo | 12 | 12 |
Ensino Médio completo | 41 | 41 |
Superior completo | 17 | 18 |
Sem informação | 1 | 1 |
Ocupação atual | ||
Trabalha | 43 | 43 |
Estudante | 2 | 2 |
Desempregado | 53 | 54 |
Aposentado | 1 | 1 |
Município de residência | ||
Residem no Município do Rio de Janeiro | 33 | 33 |
Residem fora do Município do Rio de Janeiro | 66 | 67 |
Participação em associação | ||
Participam | 82 | 83 |
Não participam | 16 | 16 |
Sem informação | 1 | 1 |
Verificou-se também a necessidade de as famílias lançarem mecanismos de enfrentamento (coping strategies) para lidar com coping costs, já que 69% delas precisaram fazer empréstimo e 22,5% tiveram que vender algum bem de seu patrimônio ao longo do curso da condição de saúde rara. Tais empréstimos podem ter sido feitos em instituições financeiras ou por intermédio de outros mecanismos informais, nos quais incidem juros que elevam a dívida. Um total de 39% dos entrevistados relatou que foram realizadas adaptações na residência e, desse total, 65% informaram que o custo das benfeitorias foi em média de R$ 2.000,00.
A rotina do cuidador era intensa e ao medi-la em tempo despendido, encontrou-se que a maioria (72%) dedica mais de 13 horas diárias ao paciente, o que inclui os cuidados de saúde, afazeres domésticos e deslocamentos para acessar os serviços de saúde. Uma parcela importante (57%) informou que disponibiliza de 18 a 24 horas diárias de sua rotina aos cuidados da criança ou adolescente. Dentre as dificuldades mencionadas no cuidado cotidiano ao paciente com condição de saúde rara, a maior delas foi dedicar o tempo ao trabalho (68%), ainda que outras atividades também tenham sido destacadas, como estudar, cuidar das outras crianças da casa e realizar as atividades domésticas (Figura 1).
Figura 1 Dificuldades na rotina diária relatadas por cuidadores de pacientes com fibrose cística, mucopolissacaridoses e osteogênese imperfeita, 2017.
Dentre os cuidadores que trabalhavam antes da investigação diagnóstica, houve uma redução de 22% e um aumento de 35% para 54% para aqueles que não estudavam ou não trabalhavam. Entre os que não trabalhavam, cerca de 86% declararam que o motivo foi a condição de saúde rara do filho/filha.
A Tabela 3 mostra os resultados do custo e da renda antes e depois da investigação diagnóstica. O custo mediano direto não médico totalizou R$ 2.156,56 (R$ 961,00-R$ 7.345,82) para fibrose cística, R$ 1.060,00 (R$ 720,00-R$ 9.744,00) para as mucopolissacaridoses e R$ 1.908,00 (R$ 537,60-R$ 4.524,00) para osteogênese imperfeita. Entre os pacientes que internaram, o custo mediano direto não médico por internação alcançou R$ 300,00 (R$ 110,00-R$ 806,51) para fibrose cística, R$ 292,00 (R$ 213,00-R$ 600,00) para as mucopolissacaridoses e R$ 555,00 (R$ 242,20-R$ 1.353,60) para osteogênese imperfeita. A renda das famílias antes da investigação diagnóstica variou negativamente para as três condições analisadas, com perdas superiores a 100%. As famílias experimentaram gastos catastróficos e o comprometimento da renda variou entre 12% para as mucopolissacaridoses e 31% para osteogênese imperfeita (Figura 2).
Tabela 3 Custo mediano direto não médico e renda mediana da família de pacientes com fibrose cística, mucopolissacaridoses e osteogênese imperfeita, antes e após a investigação diagnóstica, 2017.
Condição de saúde rara | Custo mediano R$ (Percentil 25-75) | Renda mediana R$ (Percentil 25-75) | ||
---|---|---|---|---|
Rotina de tratamento | Internação * | Antes da investigação diagnóstica | Após a investigação diagnóstica | |
Fibrose cística | 2.156,56 (961,00-7.345,82) | 300,00 (110,00-806,51) | 882,98 (0,00-2.327,12) | 400,00 (0,00-1.800,00) |
Mucopolissacaridoses | 1.060,00 (720,00-9.744,00) | 292,00 (213,00-600,00) | 1.346,25 (780,12-2.492,10) | 500,00 (0,00-1.874,00) |
Osteogênese imperfeita | 1.908,00 (537,60-4.524,00) | 555,00 (242,20-1.353,60) | 660,70 (0,00-1.532,92) | 0,00 (0,00-937,00) |
* Entre os que internam.
Os resultados desta pesquisa trazem à tona uma realidade ainda pouco explorada no Brasil. Além de identificar variáveis que possibilitaram delinear o perfil social das famílias de crianças e adolescentes com fibrose cística, mucopolissacaridoses e osteogênese imperfeita antes e depois da investigação diagnóstica, conseguiu-se estimar diferentes tipos de custos sob uma perspectiva entendida como importante no campo da avaliação econômica em saúde. Cabe ressaltar que estudos dessa natureza são relevantes para outras doenças, já que muitas vezes se verificou que frente a uma oferta de serviços de saúde ainda aquém do desejado, e muito concentrada nos grandes centros especializados e nas regiões Sul e Sudeste, a demanda é restringida em razão das dificuldades de orçamento das famílias para acessarem tais serviços.
Caso se parta de uma análise conjunta do total das categorias de custo aqui analisadas, como o custo direto não médico da rotina de cuidado e da internação sobre a renda e os coping costs, verificar-se-á que um percentual importante desses custos incide sobre a renda da família, sobretudo, para osteogênese imperfeita. Esse resultado pode estar relacionado com a necessidade de internação para a administração dos medicamentos, demandando do cuidador maiores gastos com transporte, estacionamento, alimentação de familiares que o acompanham e pagamento de outras pessoas para cuidarem da casa e das outras crianças, quando o cuidador está com o paciente no hospital. Particularmente, a osteogênese imperfeita e as mucopolissacaridoses são duas condições de saúde raras que cursam com deficiências físicas e marcas corporais variadas de acordo com o grau de gravidade que acomete a pessoa. No caso desta pesquisa, teve-se acesso maior às famílias de crianças e adolescentes com osteogênese imperfeita que de mucopolissacaridoses. Por isso, os dados referentes aos coping costs de famílias de pacientes acometidos pela osteogênese imperfeita sobressaem principalmente se comparados aos de mucopolissacaridoses. Crianças e adolescentes com osteogênese imperfeita provavelmente são extremamente dependentes dos cuidadores, pelas marcas físicas imputadas pela doença, assim como as mucopolissacaridoses, e por esse motivo a maioria deles não tem renda do trabalho. Ademais, há em determinadas situações, a necessidade de lançar mão de mecanismos para lidar com a doença, como os empréstimos que podem ter a incidência de juros e a venda de patrimônio, além das adaptações físicas no ambiente da casa, ampliando as repercussões financeiras da doença sobre as famílias.
É relevante ainda mencionar como o termo “catástrofe” pode ser incorporado à discussão. No campo da saúde, este é um tema recorrente diante da necessidade de as famílias comprometerem parte expressiva da renda para arcar com os custos 23,24, mesmo quando a saúde é estabelecida como um direito fundamental e constitucional. Os gastos catastróficos foram um desfecho importante no estudo. Como não há consenso na literatura sobre o limiar a ser adotado, foi utilizado o padrão de 10%, conforme estabelecido em estudos prévios 28. Contudo, existem pesquisas que adotaram limiares de 20% 29 e acima de 40% 30 para a análise de gastos catastróficos em países de alta e média rendas. Esse é um tema que deverá ser mais explorado no campo das condições de saúde raras. Ainda que sejam oferecidas medidas de proteção financeira (transferência de renda por programas sociais e o próprio tratamento no SUS), outras ações deveriam ser fortalecidas para que essas famílias minimizem suas perdas, como o financiamento subsidiado para obras, compra de itens específicos que o paciente demanda (por exemplo, órteses e próteses) e inserção dos familiares no mercado de trabalho.
Na análise dos benefícios assistenciais, optou-se por considerá-los como transferência de renda, como já observado em outros estudos 31. Portanto, a renda nesta pesquisa representou os ganhos auferidos com o trabalho. Quando se analisam esses benefícios, especificamente o TFD, constata-se que 65% dos pacientes tinham acesso no momento da entrevista. Ressalta-se que, dentre os critérios que restringem a sua concessão no Estado do Rio de Janeiro, estão: (1) a moradia do paciente se localizar a mais de 50km da unidade de saúde; e (2) ele residir na Região Metropolitana (Resolução nº 171/201132, da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro). Identificaram-se pacientes que moram em municípios da Região Metropolitana e, consequentemente, não tinham esse direito. No entanto, 8% dos pacientes teriam direito ao TFD, mas não o utilizavam. Assim sendo, retoma-se a importância de identificar quais as medidas de proteção financeira que podem beneficiar cada família, de acordo com a realidade individual de cada uma.
Outro aspecto relevante se refere à ocupação, uma vez que houve uma queda importante entre aqueles que trabalhavam antes e após a investigação diagnóstica. O elevado número de cuidadores fora do mercado do trabalho (54%) no momento da entrevista talvez esteja diretamente relacionado ao fato de ele não estar inserido no mercado de trabalho por causa da condição de saúde rara do filho. Porém, há de se considerar o contexto da crise econômica iniciada no Brasil no segundo trimestre de 2014, e, destacadamente, a situação do Estado do Rio de Janeiro, cuja taxa de desocupação que já era elevada, aumentou 4% (http://www.ibge.gov.br) em 2017, período de realização das entrevistas.
Importa ressaltar o papel dos cuidadores sob dois aspectos: o primeiro se refere à rotina diária, intensiva em tempo dedicado ao cuidado do paciente (72% dos entrevistados relataram que mais da metade do dia estava comprometida com os cuidados ao paciente) e o segundo, ao papel da mulher como principal cuidadora. Alves & Bueno 33, ao estudarem o perfil dos cuidadores dos pacientes pediátricos com fibrose cística, identificaram que 98,7% eram do sexo feminino, com média de 37,3 anos de idade. Como aponta Aureliano 15, a carga moral, econômica e emocional relacionada ao cuidado do paciente recai especialmente sobre as mulheres que são mães, esposas, irmãs ou filhas. Neste estudo, tal papel está centrado na mãe, a principal cuidadora (72% dos entrevistados). Ainda segundo Alves & Bueno 33 (p. 1455), “Frequentemente, à medida que a doença do paciente se agrava, o cuidador negligencia o cuidado com a própria saúde. O que pode ser observado neste estudo, no qual, de 32% das famílias que possuem tratamento medicamentoso contínuo, em 46%, o tratamento era realizado pelo principal cuidador (91% a mãe do paciente). É sabido que a presença da FC [fibrose cística] afeta não só a criança e o adolescente a ser cuidado, mas também a saúde do seu cuidador”.
A comparação direta dos resultados de custo do presente estudo com outras pesquisas é possível, ainda que limitações relacionadas à heterogeneidade dos métodos adotados e das especificidades da estrutura do sistema de saúde e do acesso aos benefícios assistenciais de cada país possam restringir tais comparações. Um estudo realizado na Alemanha 34, que estimou o custo da fibrose cística sob a perspectiva da sociedade, verificou que o custo direto não médico representou menos de 1%. Entretanto, essa proporção foi considerada na comparação com todas as categorias de custo direto, ou seja, da prestação da assistência à saúde que frequentemente é de alto custo no caso das doenças raras, o que pode não ter refletido o custo real para o paciente e suas famílias. Resultados diferentes foram apresentados no Reino Unido ao registrarem em aproximadamente 44% o montante de custos diretos não médicos 8. No que se refere à osteogênese imperfeita, uma pesquisa realizada em Toronto (Canadá) 35 mostrou um consumo intensivo de recursos, expresso nas visitas aos serviços de saúde, incluindo consultas e internações. Chama a atenção uma similaridade com o Brasil: mesmo o sistema de saúde sendo prioritariamente de acesso universal, as famílias vivenciaram uma carga econômica importante. A carga da doença também pode ser constatada entre as famílias de pacientes adultos e crianças com diagnóstico de mucopolissacaridoses. Estudo realizado em vários países europeus mostrou que o tempo médio dedicado aos cuidados com crianças foi de 51 horas por semana. Os resultados desta pesquisa também apontaram para uma rotina diária de muitas horas dedicadas ao paciente. Já os custos médicos não diretos ao ano e que incluíram transporte e remuneração de cuidadores variaram de 13,562 Euros (R$ 54.300,00) por paciente na Hungria a 53,179 Euros (R$ 212.800,00) na Alemanha 36.
O presente estudo apresenta algumas limitações. Foi realizado em um único hospital terciário, o que significa que não é possível generalizar os resultados, restringindo sua comparação com outros contextos. Todavia, é um hospital público federal especializado em assistência pediátrica, localizado no Município do Rio de Janeiro, com abrangência em todo o estado e que recebe casos de outras regiões do Brasil por sua qualificação como referência para doenças raras em crianças e adolescentes. Por conseguinte, os resultados podem ser uma aproximação da realidade dessas famílias, pelo menos, no Estado do Rio de Janeiro. Uma segunda limitação se refere ao período anterior à investigação diagnóstica. É importante registrar que o levantamento desse tipo de informação pode levar ao viés de informação (memória), hipótese não descartada nos resultados aqui apresentados. A terceira limitação se refere à descrição do tempo gasto pelo cuidador. Esta pergunta foi aberta e o entrevistado descrevia detalhadamente a sua rotina diária, fornecendo uma estimativa média de horas ao dia. Alguns responderam “o dia todo” e “24 horas”. Em razão disso, a informação de que 57% dedicavam de 18 a 24 horas diárias deve ser analisada cuidadosamente, ainda que se haja optado por manter este resultado como um indicativo da expressão de um cotidiano do cuidador com várias atividades que demandam boa parte de seu tempo. Também se reconhece que tanto as mucopolissacaridoses quanto à osteogênese imperfeita são condições de saúde raras com diferentes tipos e gravidade, com manifestações clínicas que podem comprometer mais ou menos a qualidade de vida e a utilização de recursos de saúde. Porém, não foi possível estratificar os pacientes nesses tipos porque reduziria o tamanho da amostra, tornando os resultados menos robustos. Essa limitação pode ter gerado viés nos resultados, pois o grau de gravidade é importante na demanda por recursos de saúde e na estimativa do custo, por consequência. Portanto, ao se agrupar por condição, apresentou-se uma primeira proxy para estudos futuros e que possam considerar a inclusão de mais famílias. Finalmente, o custo de produtividade não foi medido. Sugere-se que esse custo seja incluído em outras pesquisas sob a perspectiva da sociedade, posto que a rotina de cuidados é intensa e a maior dificuldade relatada pelo cuidador foi não ter tempo suficiente para se dedicar ao trabalho. Assim, sugere-se que o custo indireto da perda de horas ou dias de trabalho bem como a não inserção dos cuidadores no mercado e dos próprios pacientes, seja estimado futuramente a fim de apresentar todas as repercussões econômicas associadas às doenças raras aqui estudadas.
Os resultados desta pesquisa estão agrupados com base em uma amostra, medidos numericamente, seguindo o que estabelece os métodos quantitativos. Todavia, cada família aponta contextos diferenciados, em um nível micro, muito pouco descortinado em meio à discussão do financiamento, da incorporação de novas tecnologias e da oferta de serviços de saúde pelo SUS.
Acredita-se que tais resultados possam subsidiar os atores envolvidos no debate das condições de saúde raras nesta pesquisa estudadas ao trazerem à tona a abordagem das famílias aqui acionadas, famílias que deram o privilégio de conhecer suas realidades e individualidades.