versão impressa ISSN 1414-3283versão On-line ISSN 1807-5762
Interface (Botucatu) vol.22 no.66 Botucatu jul./set. 2018
http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622017.0856
Este artículo presenta una reflexión sobre la post-epidemia del virus del Zika por medio de las narraciones de madres de niños nacidos con malformaciones neurológicas asociadas al virus en Bahia. A partir de once entrevistas semi-estructuradas con madres y padres cuyos hijos reciben atención en un centro de referencia del estado en rehabilitación y en diálogo con teorizaciones contemporáneas de tiempo y deficiencia en la antropología cultural, se propone un abordaje a la temporalidad del Zika y a sus efectos. Se destacan tres diálogos, demostrando cómo la condición imprevisible de los hijos, juntamente con las precariedades que ya viven, hacen que el futuro sea algo casi imposible de imaginar. Se subraya que, ante tanta incertidumbre, las madres crean formas alternativas de pensar sobre el niño e a interactuar con él en sus propios términos. Se sugiere que la esperanza puede incluir paradójicamente el “no esperar nada”.
Palabras-clave: Zika; Tiempo; Deficiencia; Maternidad; Antropología
A declaração do “fim” da emergência de Saúde Pública, nos âmbitos nacional e internacional, parece ter colocado um ponto final à história da epidemia do Zika Vírus. Mas as aparências enganam. Embora o Brasil tenha visto uma queda importante no número de novos casos, o nascimento de crianças com a Síndrome Congênita Associada à Infecção pelo Zika Vírus (SCAIZV) não cessou completamente. As consequências reprodutivas do Zika garantem que a sua história ainda siga por longos anos. O mosquito Aedes aegypti ainda atormenta o país, principalmente a população menos abastecida; continuam aparecendo novas infecções e novos casos de SCAIZV; e os mistérios do vírus permanecem, em grande parte, sem serem desembaraçados. As mulheres que deram à luz a crianças com a SCAIZV agora se encontram em uma luta de longo prazo para cuidar de filhos com múltiplas deficiências1.
Segundo os últimos dados informados à Organização Panamericana de Saúde, o Brasil tinha registrado quase três mil casos confirmados de SCAIZV2. O estado da Bahia teve 1.682 casos suspeitos até o último Boletim Epidemiológico da Secretaria Estadual de Saúde da Bahia3 disponível na submissão deste artigo, 23/11/2017. As crianças afetadas, ainda na primeira infância, hoje vivem com múltiplas deficiências decorrentes de infecção congênita do vírus Zika. Além da microcefalia – a manifestação mais evidente da síndrome – elas podem ter também calcificações no cérebro, epilepsias, deficiências auditivas e visuais, atrasos no desenvolvimento psicomotor, disfagia, hipertonia, ventriculomegalia e hidrocefalia. Embora ninguém possa dizer exatamente como será o seu desenvolvimento, muitas dessas crianças provavelmente precisarão de cuidados especiais pelo resto da vida.
Este artigo é uma reflexão sobre o período pós-epidemia do vírus Zika e traz narrativas de mulheres baianas mães de crianças com SCAIZV. Detenho-me especificamente nas formas nas quais elas percebem e vivenciam o tempo, demostrando como a condição imprevisível dos filhos, junto com a precariedade que já caracteriza a vida dessas mulheres, faz com que o futuro seja quase impossível de imaginar. Destaco que, diante de tamanha incerteza, criam-se formas alternativas de pensar sobre, interagir com e valorizar a criança nos seus próprios termos. Aprende-se a viver “um dia de cada vez” e a abraçar o que vier – e a soltar o que pode não vir – pela frente. A partir das falas, mostro também alguns aspectos temporais do processo de ressignificação, sugerindo que a esperança pode envolver um esforço consciente de “não esperar nada”. Em vez de generalizar as experiências dessas mães, pretendo apontar alguns caminhos possíveis de pensar as temporalidades do Zika a partir das experiências das pessoas que vivem mais intimamente o período posterior à epidemia.
Apresento aqui narrativas parciais de três mães que entrevistei desde maio de 2017 como parte de uma série de 11 entrevistas semiestruturadas que tenho desenvolvido com mães e pais de crianças com SCAIZV na Bahia. Os seus filhos estavam ou estão em estimulação precoce no Centro Estadual de Prevenção e Reabilitação da Pessoa com Deficiência (Cepred), em Salvador (BA). Considerado um centro de excelência, o Cepred é 100% público (SUS) e atende pessoas de todo o estado da Bahia. Depois do surto de Zika, o Cepred virou um dos principais centros de avaliação e estimulação precoce para crianças com SCAIZV, assim como fornecedor de órteses e outros equipamentos para as que precisam. O Cepred abriu também as portas à minha pesquisa e me forneceu uma sala de consulta para realizar várias das entrevistas. Nenhum membro da equipe do Cepred, no entanto, participou do recrutamento de participantes, nem da coleta e análise dos dados.
Todas as crianças das mães e pais entrevistadas fazem ou já fizeram atendimento no Cepred, seja de avaliação ou de estimulação precoce. O roteiro da entrevista abrange as vivências da gravidez, o diagnóstico da má-formação neurológica, o parto e nascimento, assim como os meses entre o nascimento e o momento da entrevista. As falas foram transcritas na íntegra; os temas que surgiram, categorizados; e as narrativas foram analisadas utilizando uma abordagem de Teoria Baseada nos Dados (Grounded Theory)4.
Este projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (CAAE 60894816.0.0000.5030), assim como o Internal Review Board da Rice University (Parecer No 702001-2) e o Núcleo de Ética em Pesquisa do Cepred (Parecer emitido em 20/09/16)(b).
Embora ainda pouco estudada na antropologia, a deficiência nos traz a oportunidade de pensar a diferença e as diversas formas como se lida com a diferença nas sociedades históricas e contemporâneas. As pessoas com deficiências são sujeitos encorpados (embodied subjects) que percebem o mundo de outras formas, que vivenciam de maneira aguda os estigmas e as desigualdades sociais e que, ao serem cuidados e ao cuidarem-se, evidenciam outras possibilidades de se relacionar com si e com os outros5,6. As ciências sociais e humanas nos trazem formas de pensar a deficiência não somente como construção social definida em contraste a um suposto “normal”, mas também como diferença encorpada que, contudo, demanda direitos iguais5,7-9. A deficiência também evidencia relações de dependência e cuidado que complicam noções liberais de individualidade e nos convidam a pensar as várias formas em que todos nós dependemos e cuidamos.
Diversas antropólogas têm destacado como as tecnologias reprodutivas modificam a vivência da gravidez, as formas de pensar o feto e as decisões tomadas frente às alterações detectadas10-12. Várias mostram como o espectro da deficiência assombra o imaginário do futuro da criança, da família e até da nação13,14. As que focam a interseção de maternidade e deficiência infantil trazem um rico leque de vivências que surgem do cuidado cotidiano de crianças com deficiências. Rayna Rapp e Faye Ginsburg mostram como, frente ao desafio de criar filhos com a síndrome de Down, as mães reconfiguram os termos do parentesco e se tornam ativistas pelos direitos das pessoas com deficiência5,15,16. Gail Landsman destaca, entre outros temas, a construção social do “bebê perfeito” e suas armadilhas, assim como as divergentes formas de saber entre mães e profissionais de saúde17. Essas e várias outras autoras das ciências sociais e humanas apontam que quem assume o cuidado de pessoas com deficiências – crianças e adultos – são na maioria mulheres18-21.
Na sua etnografia sobre mães e avós negras que cuidam de filhos com deficiências e doenças crônicas nos Estados Unidos, Cheryl Mattingly sugere que a esperança é uma prática que tem de se manter frente ao futuro incerto das crianças acometidas22,23. Aponta também como essas mulheres vêm a enxergar os filhos e a enxergarem-se de outras formas ao longo da cultivação do cuidado. Ser cuidadora de uma criança com necessidades “especiais” – ainda mais quando essa cuidadora pertence a uma população historicamente marginalizada – é, entre outras coisas, uma experiência temporal. Nas longas e ansiosas esperas em hospitais e clínicas, na reconstrução de vivências por meio de narrativas e na luta para manter a esperança diante de prognósticos graves, o tempo vem a ser outro.
O tempo, como os diversos conceitos de deficiência, é um artefato cultural, social e histórico24. O viver no tempo é um aspecto fundamental da experiência humana, embora banalizado. Antropólogos culturais têm se debruçado crescentemente sobre as formas nas quais as pessoas pensam e vivenciam o tempo em diferentes lugares do mundo, particularmente no momento atual fortemente marcado pelos ritmos capitalistas e neoliberais25. Em tempos de crise e precariedade, apontam, o futuro se torna difícil de enxergar26, a vida é marcada por idas e vindas do mercado laboral27 e as pessoas experimentam com formas de cuidar umas das outras28-30. Nesses tempos precários, a deficiência traz outras camadas e reorientações ao futuro.
Em um ensaio sobre a própria experiência de deficiência, Ellen Samuels escreve que “[o] tempo de deficiência [crip time](c) é viajar no tempo”. Continua:
A deficiência e a doença têm o poder de nos extrair do tempo linear e progressivo com os seus estágios de vida normativos e nos lançar no buraco de minhoca de aceleração para trás e para frente, paradas e começos espasmódicos, intervalos de tédios e finais abruptos. […] Nós que ocupamos os corpos do tempo de deficiência [crip time] sabemos que nunca somos lineares…31 (parágrafo 5; tradução livre)
Corpos que demandam cuidados especializados e seguem outros ritmos não conformam a uma idealizada marcha progressiva de tempo. O tempo da deficiência também complica, assim, a ideia de progresso linear embutida na reabilitação e no desenvolvimento infantil19. Zoë Wool descreve o tempo vivido em espaços de reabilitação como uma “faixa de Möbius” (p. 26, tradução livre), na qual o corpo permanece em uma espécie de loop temporal em que o próprio tratamento pode atrasar ou complicar o processo de cura32. Aqui, “[o] telos simples do corpo em processo de cura [dá] lugar aos fatos materiais de corpos precários” (p. 26, tradução livre)32. Esse tempo circular e constantemente interrompido é característico do que Wool e Livingston chamam de “pós-mundos colaterais” (collateral afterworlds) – “locais de insatisfação [disaffection] e estase na sombra de forças políticas e econômicas de grande escala” (p. 3, tradução livre), que são “marcados especialmente pela temporalidade de um presente difícil no qual a vida é desengonçada da difusa esperança de um amanhã melhor” (p. 2, tradução livre)33.
O tempo, para pessoas com deficiências e doenças crônicas, também é regido por horários de atendimentos, exames e remédios. Santos et al. mostram, por exemplo, como pessoas com insuficiência renal vivem suas vidas em torno das sessões de hemodiálise, sessões que em si duram horas, várias vezes por semana, quitando tempo precioso da vida ao mesmo tempo que a prolongam34. Nas sessões, o tempo passa lentamente, engendrando ansiedade, agitação e resignação (p. 135-136). O presente muitas vezes se torna quase insuportável. Por outro lado, os “renais” cultivam uma valorização do presente, pois, devido à sua condição de saúde, não sabem quanto mais tempo de vida terão.
O “presente difícil”, porém, é sentido não somente pela pessoa com deficiência, mas também por quem a cuida. De certa forma, para Barbosa et al.35, “embora somente um membro da família seja deficiente, todos os demais são afetados e, até certo ponto, incapacitados por ela [a deficiência]” (p. 47). Mas ninguém vivencia essa “incapacitação” indireta mais do que as mulheres; mais especificamente as mães, sobre quem recai a grande maioria do trabalho de cuidar5,17,20-23. Em certo sentido, na sua proximidade e quase constante contato com a criança, as mães também vivenciam o crip time. Veem como o “progresso” dos seus filhos dá voltas, repete-se e parece até ficar parado. As suas vidas cotidianas são reorganizadas para encaixar as agendas clínicas e farmacêuticas dos filhos. Esse tempo não linear, o tempo “faixa de Möbius”, leva as mães a adotarem outra orientação a um futuro difícil de enxergar, tal como a mãe de um filho com deficiência mental relatou, no estudo de Bastos e Deslandes: “Ah! Olha eu […] eu não estou nem pensando no futuro dele”18 (p. 2146).
Para as cuidadoras também, o tempo vem a ser outro. Cheryl Mattingly escreve que para pessoas “na crise de vida,” como mães de crianças com deficiências e doenças potencialmente fatais, “o tempo há mudado a sua velocidade; há virado concentrado, portentoso. Pode ser ou rápido demais ou devagar demais, mas nunca é luxuoso” (p. 2; tradução livre)22. As cuidadoras também vivem entre eternas esperas e crises repentinas, entre a esperança e a sua falta. “A esperança mora em um lugar incerto,” diz Mattingly, “em uma espécie de sala de espera temporal. Ela nos aponta para um futuro que só podemos imaginar” (p. 15; tradução livre)22. A esperança, embora presente, está suspensa, esperando o futuro se desdobrar.
Veremos nos relatos das mães a seguir que o tempo é vivenciado como uma questão de profunda incerteza. É um tempo precário no qual não se sabe o que esperar, ou mesmo “se” esperar. É também um tempo paradoxal que parece passar, simultaneamente, rápido demais e lento demais, um presente cheio de “paradas e começos”, de loops que interrompem e complicam uma suposta progressão linear de desenvolvimento, um “presente difícil” que obscurece o futuro.
Cuidar de um filho com SCAIZV é muita correria. As mães percorrem a cidade “pra cima e pra baixo”, “correndo atrás” dos vários atendimentos, exames e remédios dos filhos. O ritmo da vida é, nesse sentido, frenético. Do nascimento até os três anos de idade, o Ministério da Saúde recomenda que a criança nascida com deficiência faça estimulação precoce, “buscando o melhor desenvolvimento possível” (p. 5)36. Os primeiros três anos compõem “a fase em que o cérebro se desenvolve mais rápidamente, constituindo uma janela de oportunidades para o estabelecimento das funções que repercutirão em uma boa saúde e produtividade ótima no futuro” (p. 9-10)36. Para muitas das crianças com SCAIZV em Salvador, falta menos de um ano até esse limite. Nesse sentido, as mães e seus filhos estão em uma corrida contra o tempo, tentando tirar o máximo proveito das terapias até o terceiro aniversário.
Apesar das tentativas de assegurar um progresso linear, porém, não é só uma questão de vontade. Os corpos dos filhos rebelam, adoecem, dão crises convulsivas, não conformam com os planos terapêuticos traçados. Outros aspectos da vida cotidiana também interrompem o progresso linear, trazendo “imprevistos” e “contratempos” que problematizam o seguimento da reabilitação. Alguns imprevistos são positivos, como um sorriso cobiçado ou o levantar da cabeça sozinho. Muitos outros, porém, geram crises que desestabilizam o desenvolvimento da criança e a vida da mãe.
Para Míriam, uma mulher negra(d) de 33 anos que mora em um bairro periférico de Salvador e cria sozinha o filho Bruno, “Tudo é muito incerto. Você nunca tem uma garantia de que ele vai estar bem a semana toda, sem apresentar uma coisa nova. Não existe isso. Sempre tem algo novo, pra bom e pra ruim. […] Tudo vai surgindo muito, pros pais, muito de repente.” Ela continua:
Agora as crianças, eu acho que, ainda é muito incógnita. A gente não sabe… é uma coisa toda tão… não sei se é porque pra gente tudo é novo, ou se é por conta dessa condição deles que tudo é muito novo, toda hora aparece uma coisa… […] Tá bem, não tá dando crise, daqui a pouco começa a dar crise. Não tá tomando remédio, daqui a pouco começa a tomar, e daqui a pouco faz isso, o menino tá bem, aí daqui a pouco bota uma gastro [sonda gástrica], bota uma traqueo [sonda traqueal]. É uma loucura, uma loucura!
Embora o filho não apresente microcefalia, os resultados da ultrassonografia e, depois, da tomografia, mostraram que ele tinha númeras calcificações no cérebro e ventriculomegalia (dilatação dos ventrículos laterais cerebrais). Nasceu prematuro com o canal arterial aberto, corrigido depois com uma cirurgia. Uns cinco meses depois de nascer, Bruno deu as primeiras crises convulsivas. O anticonvulsivante (fenobarbital) que ele passou a tomar funcionou até demais: ele parou não somente de dar crises, mas, segundo Míriam: “[…] ele parou total. Tudo que ele fazia, sustentava a cabeça, ele olhava, ele fixava, ele dava risada – tudo que ele fazia ele parou de fazer.” Ela tem certeza que foi por causa da medicação, pois “foi muito instantâneo, assim, parou de fazer. Parou de chorar também. Parou de tudo. Parou de tudo.” A resolução de um problema acabou desdobrando em outros, fazendo Bruno dar voltas, ou mesmo parar, no tempo.
De forma paralela, como cuidadora principal e única de Bruno, a vida de Míriam também dá voltas. Algumas semanas antes da nossa entrevista, Míriam tinha saído do emprego que conseguiu depois do primeiro aniversário do filho. Para poder voltar a trabalhar como vendedora, atividade que desenvolvia antes de ser obrigada a sair durante a gravidez por ameaça de parto prematuro, ela tinha colocado Bruno na creche municipal perto de casa. Porém, durante os poucos meses que o filho ficou na creche, ele teve que ser internado com pneumonia duas vezes. Míriam desconfiava que foi devido à falta de conhecimento dos cuidadores de como alimentar uma criança com disfagia (dificuldade de engolir). Às vezes ela achava comida dentro do nariz do pequeno ao buscá-lo, o que a fazia achar que ele tinha engasgado na hora de comer. A comida presa nas passagens nasais poderia ter levado à infecção respiratória. Novamente, uma solução causou outros problemas. Tirou Bruno da creche e saiu do trabalho para depender exclusivamente do Benefício de Prestação Continuada do filho(e).
O tempo de Bruno é, como Samuels descreve31, um tempo de paradas e (re)começos, um tempo precário, às vezes quase circular. Não é linear, nem uma série de passos sucessivos: é uma série de “paradas e começos espasmódicos”, um tempo “faixa de Möbius”31,32. Novidades estão sempre aparecendo sem aviso prévio. Muito por conta dos imprevistos que surgem em relação ao filho, Míriam também vive um tempo precário. Tentou, mas não conseguiu se reinserir no mercado laboral – coisa que, para muitas mães da classe trabalhadora, seria a progressão normativa. Acompanhou Bruno nas internações e voltou a se dedicar exclusivamente ao cuidado dele. Não sabe quando irá poder trabalhar novamente, do jeito que as coisas estão.
Se a chegada de um filho com múltiplas deficiências era um fator desestabilizador na vida dessas mulheres, era mais um em uma vida já repleta de incertezas. Nas suas narrativas, surgiu uma sensação de viver um eterno presente, lidando com o que aparecia, tentando não pensar muito no que vinha pela frente, embora ocupasse seu tempo cuidando desse futuro. As suas preocupações, no entanto, revelam uma série de precariedades já presentes nas suas vidas antes mesmo do nascimento do filho com SCAIZV.
Apesar das tentativas de afastá-lo, o futuro assombrava os pensamentos das mães, vindo à tona em momentos frágeis. Duas delas, quando lhes perguntei como achavam que ia ser o futuro dos seus filhos, falaram da possibilidade da própria morte e a falta que isso faria para as crianças. Falavam em “não ter tempo” de ajudar os filhos a serem autossuficientes e de não ter com quem deixá-los na sua ausência.
Uma delas foi Amanda, mulher negra de 35 anos, residente de um bairro periférico na região metropolitana de Salvador. Convive com o marido e a filha do casal, Melissa, que tinha um ano e sete meses na data da entrevista. Quando perguntei a Amanda sobre o futuro, ela disse:
Eu falo assim, se a Melissa não andar, que se torne independente, que ela consiga me chamar, que ela consiga ir na geladeira e pegar uma água só. Mesmo que eu tenha que adaptar a casa pra isso, mas que ela consiga fazer tudo sozinha, pra que… [a voz diminui e Amanda para]. No caso, imagine, ela só tem a mim. Ela só tem a mim, entre aspas. Eu tenho 35 anos. Não sou uma pessoa que tá boa de saúde. E se eu faltar para ela? O que vai ser dela? Minha preocupação toda é essa.
Amanda me contou que alguns dias antes da nossa entrevista, ela teve uma consulta médica em que lhe foi recomendado fazer uma cirurgia para tirar um tumor benigno. Apesar da insistência da médica, Amanda sabia que não podia se submeter à operação: “Eu não vou fazer a cirurgia”, disse, “Quem vai ficar com minha filha?” Quando soube que a recuperação a obrigaria a ficar sem falar e sem pegar peso, ela teria respondido: “Não vou poder pegar peso? Eu tenho que levar minha filha pra terapia. Quem vai conversar com minha filha nesse período que eu tô [recuperando]? Não posso fazer.” Dias depois, Amanda fez um preventivo cujo resultado a deixou em lágrimas. “Imagine se isso se agravar, se eu ficar doente,” Amanda disse, “Quem vai ficar com minha filha? […] Eu fico assim, desesperada. Imagine se eu não conseguir chegar ao tempo de deixar minha filha independente”. O seu medo maior, disse-me, era “não ter tempo para ver ela de maior e independente.”
A preocupação de Amanda é de ver a filha “independente”, mas teme a possibilidade de “não ter tempo” para chegar junto. Corre contra o relógio para fazer com que a filha possa cuidar de si mesma, podendo, por exemplo, “ir na geladeira e pegar uma água só”, porque prevê a dificuldade de alguém cuidar da menina na sua ausência. Tudo tem que ser feito agora para preparar Melissa para um futuro incerto. Uma cirurgia que possa prevenir maiores problemas de saúde para Amanda se torna uma impossibilidade, frente aos cuidados que ela tem que assumir na falta de qualquer outra pessoa que os faça – levar ela nas terapias, falar com ela, “ficar com ela” em geral. Assim, Amanda se encontra em um grande dilema: não pode cuidar da saúde porque tem que cuidar da filha, mas se os seus problemas de saúde se agravarem, podem chegar a tirar-lhe a vida, deixando a menina sozinha no mundo.
Entre as linhas dessa preocupação é a tácita presunção de que o companheiro, o pai de Melissa, não tomaria conta da menina. Embora tenham 14 anos de relacionamento, ele era, Amanda me disse, “uma pessoa de fases”, que “na mesma hora que tá aqui, arruma a mochila e vai embora. […] Quem me garante que ele não vai, né?”. Ela vive em um estado constante de incerteza em relação ao companheiro. A “pessoa de fases” do seu lado é imprevisível, não permitindo que ela confíe na sua presença amanhã, sem falar no longo prazo. Amanda falou dessa inconsistência com uma certa naturalidade, quase resignação. Para ela, tal instabilidade era um aspecto de vida banalizado, esperado. Paradoxalmente, a imprevisibilidade é esperada.
A condição de saúde da criança aparece como um fator que desestabiliza o tempo, tanto para a criança quanto para a mãe. Essa desestabilização é uma questão de cuidado: Amanda sacrificou os cuidados com a própria saúde para cuidar de Melissa. Míriam saiu do trabalho e abriu mão de uma fonte de renda para poder se dedicar em tempo integral a Bruno. Cuidar do futuro do filho com SCAIZV, para elas, é fazer sacrifícios no presente. Os cuidados, embora orientados ao futuro, ajudam a compor um “presente difícil” que obscurece esse futuro. Na próxima seção, veremos também como a incerteza do futuro gera reorientações para o tempo do presente.
“Viver um dia de cada vez.” Esse é o lema de Jéssica, uma das poucas entrevistadas da classe média baiana. Uma mulher parda, 35 anos, residente em um bairro nobre de Salvador, divide o cuidado da filha, Giovanni, com o marido e uma babá. Giovanni, como Melissa, tem microcefalia e várias outras alterações neurológicas. Jéssica me contou do processo recursivo de ressignificação que vem trabalhando desde o diagnóstico na gravidez:
Quando ela nasceu eu recebi muita orientação de ressignificar, né. “Ó, agora você tem que ressignificar o que é ter um filho que é tal, criar uma outra forma.” E eu, tipo, desconstruí tudo que eu tinha construído e entreguei, né. Viver um dia de cada vez, e… e isso tem sido meu lema: viver um dia de cada vez… e desconstruir tudo. Então assim, eu desconstruí tudo, e cada coisa que vem é nova, né, é uma novidade, é uma coisa boa, não esperar. Então passei a não esperar nada, então o que vier, né, receber com… né, com gratidão.
Explicou que teve que “desconstruir o filho que […] eu sonhava quando eu engravidei”, que ela “não imaginava, nem queria” que viesse “com diversas limitações”. Se antes de saber das más-formações Jéssica pensava em um futuro normativo para Giovanni – um futuro em que ela brincaria com a irmã mais velha e iria para a escolinha, por exemplo – depois, ela teve que “desconstruir tudo isso e me parar, e me exercitar a não ter expectativa nenhuma”. Isso é um “exercício que eu vou fazendo já”, disse, “não esperar nada em troca”.
Havia vários marcos (expectativas convencionais em relação ao crescimento e desenvolvimento) que Jéssica conscientemente parou de tomar como medidas apropriadas para a sua filha. Nas primeiras consultas de Giovanni, a neuropediatra lhe aconselhou a “esquecer” o mapa de acompanhamento de desenvolvimento infantil típico:
A curva, ela nem entra, né. Porque a gente tem a primeira carteirinha de vacinação – a carteirinha que o Ministério da Saúde dá, de acompanhamento – crescimento, peso, altura, não sei que. Não existe nada pra ela. Então eu já fui me preparando… esqueça isso, esqueça. Porque não adianta ficar lá olhando e me frustrando, que não vai ter o tamanho – nem tem o tamanho da cabeça que ela nasceu; não tem […] na tabela.
Segundo a Caderneta da Criança, os pais devem monitorar com cuidado o desenvolvimento dos seus filhos (p. 36)37. Nas suas páginas há um checklist de habilidades que a criança deveria adquirir em um tempo mais ou menos linear, um passo atrás do outro, como uma escada: “Observa um rosto”; “Reage ao som”; “Eleva a cabeça”; “Sorriso social quando estimulada” (p. 44) – estes são alguns dos desenvolvimentos esperados nos primeiros meses e anos de vida de uma criança dita “típica”37. Como Giovanni não tinha como acompanhar essa progressão, documentos como a Caderneta e a carteira de vacinação se tornaram artefatos de fracasso.
Jéssica ficava angustiada quando comparava o desenvolvimento da filha ao desenvolvimento previsto para crianças sem alterações neurológicas. Enxergada nesses termos, a filha sempre iria “fracassar”, ficando atrás e fora das curvas convencionais. Em vez de continuar se sujeitando ao tormento emocional da comparação, ela e a neuropediatra fabricaram uma curva só para Giovanni. Vão registrando as conquistas em “tempo real”, no tempo que acontecem – o mexer de uma mão, o levantar da cabeça, o “sorriso social” em reação às cosquinhas na nuca – e não no tempo que “deveriam” acontecer. Assim, criam junto com Giovanni um tempo que é unicamente dela, aprendendo a entender e a valorizar a menina nos seus próprios termos.
A ressignificação, processo comum entre mães e pais de filhos com deficiências18, é também uma ressignificação do tempo da criança. “Esquecer” normas de desenvolvimento infantil e “desconstruir” ideias prévias de como a criança iria ser são formas ativas de se reorientar ao filho do jeito que veio. Esse processo envolve um esforço consciente não só de reformular as expectativas, mas, no caso de Jéssica, de se desfazer totalmente delas. Paradoxalmente, talvez, a esperança que faz as mães seguirem lutando, “correndo atrás” do que os filhos precisam, pode envolver “não esperar nada”. A esperança não está ausente, senão “desengonçada da difusa esperança de um amanhã melhor” (p. 2)33.
No cuidado do filho com SCAIZV, as mães vivem um “presente difícil”33 que oculta as possibilidades do futuro. Esse presente é condicionado pelas precariedades com que muitas já vivem – representadas, por exemplo, por relacionamentos instáveis e empregos efêmeros e mal remunerados –, mas que é fortemente impactado pelo cuidado da criança que, com seu corpo precário e seu tempo não linear, traz uma outra camada de incerteza. Dadas as dificuldades e incertezas, as mães aprendem a viver o agora, atendendo ao que tem que ser feito para cuidar do futuro da criança, sem se deter muito nesse futuro. Esforçam-se – conscientemente até – para “não ter expectativa nenhuma”.
Se as preocupações sobre a própria morte precoce nos surpreendem, devemos lembrar que muitas dessas mães pertencem a setores da população brasileira que vivem, desde sempre, infinitas incertezas, inclusive em relação à própria vida38. Por serem na sua maioria negras39, têm uma expectativa de vida menor do que as mulheres brancas40,41, fruto do racismo estrutural que se reflete em menos acesso aos serviços de saúde e na violência nas suas comunidades – incluindo a violência do Estado40,42-45. Por serem mulheres negras das classes menos abastecidas, as precariedades econômicas e laborais – que particularmente após o golpe parlamentar só têm aumentado a cada dia – nunca estão longe46. Além disso, por serem mulheres, enfrentam o machismo enraizado na sociedade brasileira, que relega o cuidado dos filhos e todas as outras tarefas “domésticas” exclusivamente às mulheres35,47-50. As duas entrevistadas que expressaram fortes dúvidas sobre a possibilidade de o pai cuidar do filho na sua ausência eram (e são, até esta redação) casadas há vários anos. Mesmo assim, imaginavam futuros em que os companheiros não cuidariam da criança, ou não cuidariam da forma apropriada. Nesse conjunto de precariedades intersecionais, a pergunta “Quem vai ficar com minha filha?” tem bastante sentido. Essa pergunta, enfim, tem gênero, classe e cor.
Paradoxalmente, a esperança se expressa justamente em não esperar nada – fazendo parte da “prática da esperança” que Mattingly propõe22. A esperança dialoga constantemente com a incerteza, moldando uma orientação ao futuro que descarta qualquer garantia, e mesmo assim persiste. Dessa maneira, a esperança é algo vivido, não na potencialidade do futuro, mas no presente, em “o que vier”. No processo de ressignificar a criança e seu tempo não linear, descartam-se as tabelas e curvas de desenvolvimento infantil, construindo trajetos temporais que se conformam à criança, e não ao contrário. A criança, com a ajuda dos pais e dos profissionais de saúde que a atendem, cria o seu próprio tempo.
Como outros desastres antropogênicos dos nossos tempos, o vírus Zika lança uma longa sombra sobre as vidas das pessoas afetadas, seja diretamente ou indiretamente. Embora o fim da epidemia já tenha sido oficialmente declarado, os seus efeitos posteriores persistem, requerendo uma atenção permanente das políticas públicas e de nós das ciências sociais, que almejamos avançar no conhecimento do lado “social” do vírus. As temporalidades vividas na pós-epidemia do Zika nos convidam a engajar criticamente as formas nas quais a epidemia se leva para o presente e o futuro.