versão impressa ISSN 1806-3713versão On-line ISSN 1806-3756
J. bras. pneumol. vol.46 no.2 São Paulo 2020 Epub 02-Mar-2020
http://dx.doi.org/10.36416/1806-3756/e20190308
Estamos passando por um período emocionante de avanços científicos na assistência ao paciente. O advento da medicina de precisão nos permitiu sonhar com a capacidade de tratar um grande número de doenças em sua raiz. Na fibrose cística (FC), a recente integração da medicina de precisão na rotina de assistência ao paciente permitiu o manejo da expressão da proteína CFTR e trouxe esperança para o tratamento da doença, com melhor qualidade de vida e maior expectativa de vida.
Na FC, a medicina de precisão emprega três medicamentos aprovados pela agência norte-americana Food and Drug Administration: ORKAMBI® (lumacaftor/ivacaftor), SYMDEKO® (tezacaftor/ivacaftor e ivacaftor) e KALYDECO® (ivacaftor), todos eles fabricados pela Vertex Pharmaceuticals, Inc. (Boston, MA, EUA). Benefícios clínicos substanciais foram obtidos com uma nova associação medicamentosa (VX-659-tezacaftor-ivacaftor) em comparação com placebo, com mudança de 14 pontos percentuais no VEF1 em porcentagem do previsto (VEF1%) em indivíduos com uma mutação F508del e uma mutação de função mínima, além de uma mudança de 10 pontos percentuais no VEF1% em indivíduos com duas mutações F508del tratados inicialmente com tezacaftor-ivacaftor e, em seguida, com tezacaftor-ivacaftor mais VX-659. Além disso, o tratamento com a associação medicamentosa tripla de VX-455-tezacaftor-ivacaftor foi testado em ensaios clínicos de fase I e II, com melhora significativa no VEF1%.1-5
Os desfechos de ensaios clínicos de FC têm sido notáveis. Embora os resultados iniciais de ensaios clínicos com medicamentos de precisão tenham demonstrado apenas uma ligeira melhora no VEF1% (< 2-4 pontos percentuais), estudos recentes mostraram melhora significativa na qualidade de vida e expectativa de vida de pacientes com FC. No entanto, a dimensão econômica da medicina de precisão, incluindo o alto custo de desenvolvimento de medicamentos e realização de ensaios, é uma barreira ao uso e implantação de novas terapias. Desde a descoberta de uma nova molécula até a aplicação clínica de um novo medicamento, os custos envolvidos são altos. Na FC, o custo final de novos medicamentos de precisão depende do alto custo dos ensaios clínicos, de cronogramas longos, de dificuldades em recrutar participantes (porque o genótipo do CFTR precisa ser identificado), da capacidade limitada de pesquisa clínica, de normas rigorosas, de barreiras administrativas, da coleta e interpretação de dados e de dificuldades em manter e monitorar a segurança. Além disso, os custos de cuidados de saúde aumentam exponencialmente quando se emprega a medicina de precisão.
Embora a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) seja responsável pela aprovação e regulamentação de medicamentos, os serviços públicos de saúde precisam de mais autorização para distribuir medicamentos gratuitamente à população. Em 2018, o governo brasileiro aprovou o primeiro medicamento de precisão para uso em pacientes com FC no Brasil. No entanto, o paciente é que deve arcar com os custos. O próximo passo seria o apoio do sistema público de saúde para que o medicamento seja fornecido gratuitamente a todos os pacientes com FC com base no genótipo do CFTR. No entanto, isso levanta uma questão controversa: de quanto dinheiro dispomos?
No Brasil, aproximadamente 140 pacientes em um centro de referência para o tratamento da FC estão aptos para receber tratamento com medicamento de precisão, com custo total de US$ 40.308.420 por ano. A classificação das mutações do gene CFTR não foi levada em consideração porque a Food and Drug Administration não aprovou o uso de medicamentos de precisão para todas as mutações do CFTR (Tabela 1),6 e os custos foram calculados com base no mercado dos EUA a fim de fornecer uma visão geral internacional do preço do medicamento. Nem nossa instituição nem o sistema público de saúde podem arcar com custos tão altos para tratar uma única doença. Um apoio financeiro de US$ 123.710.785,70 cobriria os custos de todos os procedimentos hospitalares, inclusive de todas as consultas médicas de rotina. Além disso, o custo do tratamento de pacientes com FC corresponde a cerca de um terço do custo total da manutenção das atividades hospitalares.
Tabela 1 Medicamentos de precisão aprovados para uso no tratamento da fibrose cística em um centro de referência no Brasil, além de uma visão geral do hospital onde se encontra o centro de referência.a
Medicamentob | n | Custo mensal/paciente | Custo anual/paciente | Custo anual total |
---|---|---|---|---|
ORKAMBI® ou SYMDEKO®c | 57 | US$ 26.880 | US$ 322.560 | US$ 18.385.920 |
ORKAMBI® | 76 | US$ 21.583 | US$ 259.000 | US$ 19.884,000 |
KALYDECO® | 5 | US$ 28.675 | US$ 344.100 | US$ 1.720.500 |
ORKAMBI® ou KALYDECO®d | 2 | US$ 21.583 | US$ 259.000 | US$ 518.000 |
Total | US$ 40.308.420 | |||
Visão geral do hospital onde se encontra o centro de referência | ||||
Apoio financeiro (universidade e sistema de saúde) | US$ 123.710.785,70 (R$ 460.000.000,00)e | |||
Número de leitos | 419 | |||
Número de leitos na UTI de adultos | 409 | |||
Número de leitos na UTI pediátrica | 56 | |||
Ocupação de leitos | 85% | |||
Número de internações | 14.442 por ano | |||
Número de especialidades | 47 (580 subespecialidades) | |||
Número de pacientes tratados no pronto-socorro | 69.573 por ano | |||
Número de pacientes tratados no ambulatório | 373.574 por ano | |||
Área de cobertura | ~100 cidades (~5.000.000 habitantes) | |||
Número de pessoas que circulam pelo hospital | ~10.000 por dia | |||
Número de centros cirúrgicos | 16 | |||
Número de procedimentos cirúrgicos | 15.509 por ano | |||
Número de transplantes | 485 por anof | |||
Número de prontuários médicos desde o primeiro ano de atividade | 1.000.000 | |||
Número de novos prontuários | ~150 por dia | |||
Número de exames laboratoriais | 2.529.209 por ano (mais de 300 tipos diferentes de exames) | |||
Número de exames radiológicos | 146.375 por ano | |||
Número de exames de medicina nuclear | 9.532 por ano | |||
Número de sessões de radioterapia | 47.906 por ano | |||
Farmácia hospitalar | 2.313.771 unidades de medicamentos + 843.265 frascos de soro fisiológico | |||
Número de bolsas de sangue usadas | 6.730 por mês | |||
Número de luvas cirúrgicas usadas | 2.500,000 por ano | |||
Número de termômetros usados | 60 por mês | |||
Quantidade de água consumida | 9.227 m3 por mês | |||
Quantidade de oxigênio consumido | 35.715 m3 por mês | |||
Número de lençóis usados | 2.000 por dia |
aCom base em Pereira.6) bORKAMBI®: lumacaftor/ivacaftor em grânulos de 100 mg/125 mg e 150 mg/188 mg para crianças com idade ≥ 2 anos ou em comprimidos de 100 mg/125 mg e 200 mg/125 mg para crianças com idade ≥ 6 anos; SYMDEKO®: tezacaftor 50 mg/ivacaftor 75 mg e ivacaftor 75 mg para pacientes com idade ≥ 12 anos e genótipo F508del/F508del; KALYDECO®: ivacaftor 150 mg, aprovado para uso em indivíduos com idade ≥ 2 anos e pelo menos uma cópia de uma variante da classe III (E56K, G178R, S549R, K1060T, G1244E, P67L, E193K, G551D, A1067T, S1251N, R74W, L206W, G551S, G1069R, S1255P, D110E, R347H, D579G, R1070Q, D1270N, D110H, R352Q, S945L, R1070W, G1349D, R117C, A455E, S977F, F1074L, R117H, S549N, F1052V ou D1152H). Os preços dos medicamentos foram estipulados pelo fabricante (Vertex Pharmaceuticals, Inc., Boston, MA, EUA). cValores referentes ao SYMDEKO®. dValores referentes ao ORKAMBI®. eCom base na taxa de câmbio em 27/07/18 (US$ 1,00 = R$ 3,718). fNenhum transplante de pulmão foi realizado durante o período. Observação: Até o momento em que esta carta fora redigida, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) ainda não havia aprovado o uso do medicamento SYMDEKO® no país. Portanto, utilizamos como critério os medicamentos aprovados pela agência norte-americana Food and Drug Administration e sua recomendação para o uso dos medicamentos de acordo com a idade a fim de facilitar a comparação de nossos achados com os de outros estudos.
Alguns insights podem ajudar a resolver a controvérsia a respeito do custo (estimado) do tratamento de uma doença e de atribuir um preço a algo que não tem preço: a melhoria da saúde. Primeiro, um novo medicamento deve ser prescrito apenas para pacientes que realmente se beneficiarão dele, principalmente com base na resposta individual a medicamentos para FC em culturas de células nasais (de pacientes com variantes dos genes CFTR e modificadores).7-10 Segundo, todos os genótipos do CFTR devem ser identificados para determinar se a medicina de precisão é viável. Terceiro, o governo e a indústria farmacêutica devem discutir custos, benefícios e uma parceria para benefício mútuo. Quarto, as sociedades médicas, os pacientes e suas famílias, organizações não governamentais e pesquisadores devem discutir as possibilidades da medicina de precisão, implantando políticas de adesão aos medicamentos e reduzindo os custos de terapias de longo prazo. Finalmente, a medicina de precisão deve ser empregada no tratamento de outras doenças. Por exemplo, o atalureno é um medicamento cujo uso no tratamento da FC foi suspenso, embora ainda seja prescrito para o tratamento da distrofia muscular de Duchenne e de Becker causadas por mutações sem sentido no gene DMD.
A medicina de precisão nos dá esperança, e as ferramentas de edição do genoma estão sendo investigadas para o tratamento da FC. Em longo prazo, a terapia gênica será usada como modelo de tratamento da FC.
A medicina de precisão é eficaz em relação ao custo? O investimento inicial pesado é legítimo? Qual é o custo total da inovação: desenvolver e lançar um novo medicamento e a questão moral do preço e lucro? Esta carta é uma reflexão sobre a aplicação de novas terapias (usando a FC como modelo) e seu impacto financeiro nos sistemas de saúde. Além disso, esta carta convida pacientes, sociedade civil, autoridades governamentais e a indústria farmacêutica a discutir os principais desfechos de novas terapias e marcadores, inclusive anos de vida ajustados pela qualidade.
O gene CFTR foi descrito como sendo a causa da FC em 1989. Desde então, sonhamos em tratar a doença em sua raiz. Fizemos um progresso notável com pesquisas sobre variabilidade fenotípica, variantes do CFTR e genes modificadores, e devemos continuar a pesquisar e traduzir esses achados em novos métodos diagnósticos e terapias. Embora os altos custos possam ser uma barreira, eles podem ser superados por meio da colaboração de todos os envolvidos. Acreditamos na promessa da medicina de precisão para melhorar a qualidade de vida e a expectativa de vida, e nossos esforços devem estar voltados para permitir que a medicina de precisão cumpra todas as expectativas.