versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.23 no.10 Rio de Janeiro out. 2018
http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320182310.13482018
O cyberbullying é uma nova forma de violência sistemática que se configura como um “problema social”, constituindo tema e preocupação de diversos campos disciplinares, além de ser representado por alguns autores como uma questão de saúde pública1-5. As distintas configurações do Cyberbullying podem ser reconhecidas como atos de violência psicológica e sistemática contra crianças e adolescentes perpetrados nas ambiências das redes de sociabilidade digital, podendo ocorrer a qualquer momento e sem um espaço circunscrito e demarcado fisicamente. Essa forma de agressão é perpetrada por meios eletrônicos, sejam estes, mensagens de textos, fotos, áudios, ou vídeos, expressos nas redes sociais ou em jogos em rede, transmitidas por telefones celulares, tablets ou computadores e cujo teor tem a intencionalidade de causar dano à outra pessoa de modo repetitivo e hostil, conforme Ortega et al.(apud Brochado et al.6).
O cyberbullying tem emergência recente e sua conceituação, ainda em construção, abriga considerável polissemia em suas definições7-10. Pesquisas apontam que essa diversidade conceitual por vezes tem direcionado os estudiosos a usar termos diferentes para se referir ao mesmo conceito ou usar o mesmo termo com diferentes significados11,12 (Ybarra et al. apud Lucas-Molina et al.13).
Nota-se que a violência também se manifesta neste novo espaço, o “ciberespaço”, ou seja, nesse “lugar” de interação que se dá no contexto de uma cultura peculiar, conhecida como cultura “ciber” ou cibercultura. Vale pontuar que alguns autores questionam se o conceito de cibercultura ainda seria válido, dado o borramento das fronteiras, considerando que as relações digitais atravessam de forma onipresente o cotidiano14.
O termo sociabilidade, cunhado por Mafessoli15 faz referência aos hábitos, costumes e uma espécie de polidez presente na contemporaneidade. A socialidade digital produz um ethos que gera a necessidade de construir uma imagem social positiva. O que é postado em rede, a maneira como se é visto nesse ambiente ou ainda as máscaras que são construídas sobre si nesse espaço valoram essa teatralidade a partir daquilo que se quer ou se permite que os outros vejam15. Para crianças e adolescentes que estão em desenvolvimento, essa identidade que se constrói pode ser significativamente influenciada a partir dos padrões impostos pela rede. A necessidade de “estar conectado”, sendo sempre visto por outros vem sendo aprimorada a cada nova atualização que os aplicativos de redes sociais geram, criando e forçando novas experiências de compartilhamento para os seus usuários digitais. Bruno16 vai refletir sobre a importância do olhar do outro para constituir a imagem de si, uma imagem engendrada na perspectiva de espetáculo que contribui para a construção de uma autoestima balizada pela popularidade que se tem nas redes sociais. Observa-se, a partir da reflexão de Bruno16 que os vínculos que se estabelecem não precisam ser necessariamente fortes para influenciarem as redes sociais. Por vezes, aqueles que mais curtem e comentam um conteúdo digital são pessoas cujas vinculações sociais constituem “laços fracos”. Outra característica é a fluidez dessas relações, pois mesmo modo que novas conexões são estabelecidas, exclusões e bloqueio de pessoas podem ocorrer sem motivos relevantes17.
Ao falar sobre a “realidade social da virtualidade da internet”, Castells18 afirma que a internet foi apropriada pela prática social em toda a sua diversidade, embora ela tenha efeitos específicos sobre tais práticas. Aborda como as pessoas se comportam no ambiente virtual como esperam ser vistas pelos outros. Os jovens, por exemplo, estão nesse processo de descoberta de identidade, de desvendar quem de fato eles são ou gostariam de ser.
As relações digitais redefinem dinâmicas sociais contemporâneas, convocando aos indivíduos estarem sempre conectados através das novas tecnologias, independente da geolocalização, tempo e do quantitativo de pessoas a quem estão vinculados. Traço marcante da sociabilidade digital é a hipervisibilidade19, uma exposição constante e voluntária dos fatos e atos, cotidianos e íntimos. O privado passa a ser publicizado a partir dos compartilhamentos realizados neste mundo de informações instantâneas, em tempo real20.
Os jovens, “nativos digitais”16 estão cada vez mais cedo conectados nas redes sociais digitais através das TICs– Tecnologias de Informação e Comunicação. Segundo a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios – PNAD21, no Brasil aproximadamente 102,1 milhões de pessoas de 10 anos ou mais de idade tiveram acesso à internet no período em que a pesquisa ocorreu. Em 2015, ano da pesquisa, com relação aos grupos etários, observou-se que os adolescentes de 15 a 17 anos, bem como os de 18 e 19 anos de idade apresentaram o maior índice percentual dentre os usuários da internet (sendo 82% e 82,9% respectivamente). Brunnet et al.22 apontam um estudo americano que descreve que em média 93% dos adolescentes entre 12 e 17 anos acessam a internet e dessa população 75% possuem seu próprio celular.
O uso da internet, em especial de redes de relacionamentos favorece as práticas de violações que vão desde a invasão de contas em sites de relacionamentos, criação de falsos perfis para provocação, ameaças e até mesmo o convite ao suicídio por sites clandestinos ou comunidades23.
Assim, o Cyberbullying é uma modalidade de violência que se apresenta de forma disseminada e tem sido incluída no campo discursivo da saúde a partir das associações entre sua prática e os desfechos deletérios à saúde dos perpetradores e dos intimidados24. Estudo sobre a literatura médica identificou que o uso de internet por mais de três horas diárias aumenta em quatro vezes a chance de um jovem ser alvo de Cyberbullying25.
Embora associado ao tema do bullying, mais consolidado teoricamente, o cyberbullying tem recebido bastante atenção da comunidade científica internacional, contudo pouco estudado no Brasil.
Diante disso, o artigo tem como objetivo analisar as conceituações de Cyberbullying adotadas pela literatura nacional e internacional, produzida no Campo da Saúde e Educação, enfocando suas ênfases e “ausências”, como caracterizam suas dinâmicas relacionais e as associações que delimitam entre o fenômeno e a saúde de crianças e adolescentes.
Trata-se de revisão de literatura do tipo “revisão crítica” (critical review). Essa abordagem metodológica objetiva analisar criticamente a literatura sobre um tema, revelando fraquezas, contradições, controvérsias ou inconsistências26. A contribuição de uma revisão crítica reside na sua capacidade de destacar problemas, discrepâncias ou áreas em que o conhecimento existente sobre um tópico não é confiável27. O escopo analisado para uma revisão crítica pode ser seletivo ou estatisticamente representativo. Esse tipo de revisão raramente avalia a qualidade dos estudos selecionados, o que é considerado o seu ponto crítico. Semelhante às revisões teóricas, as revisões críticas podem aplicar diversos métodos de análise, sejam os de viés interpertativo (síntese interpretativa, análise de discurso, análise temática por exemplo) até os de cáriz mais positivista (análise de conteúdo).
Foram levantados artigos científicos nas bases de periódicos internacionais Scielo, BVS, Scopus, PubMed, APA (American Psychological Association), ERIC e ASSIA (Applied Social Sciences Index and Abstracts), durante o mês de fevereiro de 2017.
Durante a busca inicial foi empregado o termo ‘cyberbullying’ em todos os campos (all fields), resultando um acervo de 7.785 artigos. Ao buscar o termo “cyberbullying” no Medical Subject Headings (MeSH), encontrou-se somente o termo bullying (https://www.ncbi.nlm.nih.gov/mesh/?term=cyberbullying). Dentre esses milhares de artigos vários tratavam o tema do cyberbullying de modo secundário ou apenas como citação.
Visando reduzir e qualificar mais esse acervo, optamos por trabalhar apenas os estudos de revisões, sendo selecionados os textos onde o termo “cyberbullying” constava no título e “revisão” era mencionado em todos os campos. Consideramos artigos de revisão de qualquer natureza, designados pelos próprios autores e pertencentes às mais distintas modalidades: revisão bibliográfica, revisão comparativa, revisão compreensiva, revisão crítica sistemática, revisão de evidências, revisão de literatura, revisão sistemática, revisão não sistemáticas e, revisão narrativa.
Aplicamos critérios de exclusão tais como textos incompletos, textos não disponíveis para acesso livre, capítulos de livros, acervo cinza, dissertações, monografias, resultando em 301 estudos. Depois da análise de cada artigo foram identificadas 156 artigos em duplicidade que não haviam sido identificadas pelo programa de gerenciamento de referências (MENDLEY), como nos casos de estudos registrados em escrita com caixa alta e/ou com tradução de texto para idioma inglês; quando o estudo original estava em idioma espanhol ou francês; e, quando houve subtração de autores tendo sido registrado apenas o primeiro autor seguido de et al. Avaliando o acervo de 145 artigos, novo refinamento foi realizado com recorte temporal de publicações datadas entre 2006 a 2016, visando analisar como o tema vem sendo difundido na última década. Definimos, por fim, um acervo de 72 artigos de revisão.
O acervo foi classificado em ordem alfabética com base no sobrenome de referência dos autores, por ano de publicação e por título (Tabela 1). Os artigos foram lidos na íntegra e seus conteúdos foram identificados e interpretados via análise temática a partir das seguintes categorias por nós definidas como centrais aos propósitos do estudo: conceituações do cyberbullying, dinâmicas, personagens e implicações à saúde.
Tabela 1 Categorização do acervo segundo ano de publicação, nacionalidade e idioma.
Publicações | 2016 | 2015 | 2014 | 2013 | 2012 | 2011 | 2010 | 2009 | 2008 | 2007 | 2006 |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Número de publicações | 8 | 21 | 12 | 11 | 7 | 6 | 1 | 2 | 1 | 2 | 1 |
Nacioalidade do estudo | EUA, Reino Unido, Austrália, Portugual, Belgica, Espanha e Grécia | EUA, Singapura, Grécia, Itália, Brasil, China, Canadá, França, Austrália, Reino Unido e Espanha | França, EUA, Itália, Turkia e Reino Unido | EUA, Canadá e Brasil | Suécia, Alemanha, Suíça, Reino Unido, EUA e Colômbia | EUA, Espanha, México, Austrália | EUA | Austrália | EUA | EUA | Canadá |
Idioma | Inglês (7) e Espanhol (1) | Inglês (18), Português (2) e Francês (1) | Francês (1), Inglês (10) e Português (1) | Inglês (10) e Português (1) | Inglês (6), Espanhol (1) | Inglês (2) e Espanhol (2) | Inglês (1) | Inglês (2) | Inglês (1) | Inglês (2) | Inglês (1) |
Observa-se uma produção crescente no período analisado (exceto 2016), com predominância de artigos americanos (27). O baixo número de publicações em 2016 pode refletir o pouco tempo entre a publicação e a sua disponibilização nas bases de indexação, pois a busca foi feita no início de 2017.
Com relação aos campos da Saúde e Educação, não houve diferenças significativas quanto ao número de publicações Saúde (26) e Educação (27), muito menos ao tipo de abordagem produzida sobre o tema. As demais publicações foram consideradas como multidisciplinar/interdisciplinar. As revistas com maior representação neste acervo foram Aggression and Violent Behavior (10) seguida da Computers in Human Behavior (5). Assim, tratamos o acervo a partir das especificidades entre os estudos e não de suas áreas de origem.
O cyberbullying possui muitas conceituações, revelando distintas interpretações adotadas pela comunidade científica. Parte dos estudos analisados não construiu uma definição para o cyberbullying, mas toma de empréstimo os conceitos de bullying, agressão e assédio, já existentes na literatura2,28-36.
Havia no acervo uma polifonia de definições para o cyberbullying, sugerindo que a comunidade científica não produziu um consenso sobre o entendimento da natureza e limites do fenômeno. Talvez por “imaturidade” ou como reflexo dessa processualidade, visto que as relações digitais são dinâmicas e influenciadas pelas novas tecnologias, constantemente incorporadas ao universo ciber. Todavia, tal polissemia, gera uma espécie de inconsistência nos dados das pesquisas e difículdades de comparação entre os estudos37.
As traduções de definições propostas em inglês e apropriadas por estudos de língua latina podem também variar semanticamente e levar a compreensões diferenciadas, como no exemplo dos sentidos entre cyberbullying e acosso digital. Estudos alemães, usam o termo ciber-mobbing. Tais termos retraduzidos ao português produzem ênfases diferenciadas. No caso da tradução de acosso se evidencia o caráter de perseguição sistemática, característica não necessariamente presente no fenômeno do cyberbullying.
Aboujaoude et al.37 identificaram diferentes designações para o cyberbullying, como cyberstalking, agressão on-line, assédio cibernético, assédio na Internet, bullying na Internet e vitimização cibernética ou cybervitimização. A natureza hostil do ato e a intenção de causar sofrimento foram considerados pela maioria dos estudiosos como cruciais para a definição de cyberbullying.
Como avalia Smith38 caracterizar o cyberbullying apenas como uma forma de “bullying digital” tem sido uma tendência e, após analisarem diversos estudos, concluem que existe um debate sobre o uso de uma definição generalista (bullying) ou a necessidade de substituí-la por outra mais específica.
Considerando o acervo analisado, as principais definições adotadas podem ser divididas em dois blocos: as que reconhecem o cyberbullying como uma (nova) forma de bullying, apontando diferenças e similaridades; e, as que tratam o cyberbullying como um fenômeno de outra natureza, diferente do bullying. Analisaremos a seguir os argumentos que tratam das especificidades que aproximariam e que distinguiriam o bullying e o cyberbullying.
No primeiro bloco de estudos, a maioria do acervo reconhece o cyberbullying como o bullying por meio digital e/ou uma variação do bullying.
Dentre os autores que percebem o cyberbullying como uma variação de bullying alguns defendem a importância de contextualizar a violência digital e sua expressão nos comportamentos agressivos39-43. A revisão de Allison e Bussey43 apresenta o cyberbullying como “agressão intencional por meio eletrônico”, que ocorre de várias formas como: insultos, ameaças, divulgação de fotos embaraçosas e pode ser perpetrado através de diversas mídias, sem a necessidade da presença física dos envolvidos. Os autores se basearam em extensa literatura de bullying e ao compará-lo ao cyberbullying, constataram que são diferentes em muitos aspectos, tais como: anonimato, maior impacto, uma maior audiência de espectadores, individualidade na prática de perpetrar, ser dispensável a presença física dos envolvidos e a vítima ser atingida em qualquer lugar e a qualquer momento44-46. Para alguns, o caráter repetitivo não estaria necessariamente presente no cyberbullying2,47-49, pois apenas uma postagem depreciativa leva o conteúdo a ficar permanentemente exposto. Já a capacidade de anonimato é apontada como a principal/única diferença entre os dois fenômenos31,36,43.
Algumas revisões37,40,50-52 revelaram que não há consenso se a repetição das ações e o desequilíbrio de poder seriam dinâmicas do cyberbullying, mas certamente ocorrem nos casos do bullying. O desequilíbrio de poder foi associado diversas vezes como suposta incapacidade de resposta por parte da pessoa alvo do cyberbullying, ou ainda por falta de habilidades tecnológicas que permitiriam uma melhor resposta no meio digital. Para Faucher et al.53 esse exercício de poder estaria associado ao quão vulnerável estão os conteúdos privados da pessoa alvo ou ainda por divulgar tais informações sem levar em conta as consequências de uma exposição nas redes sociais54.
Em relação às similaridades, grande parte dos estudos aponta o caráter de repetição, o uso das palavras ferinas, o desequilíbrio de poder e o dano intencional5,9,22,29,31,42,48,52,55-61. Thomas et al.46 afirmam que os ataques de bullying e de cyberbullying são mais parecidos que diferentes, e muitas vezes concorrem.
Para Yang e Grinshteyn5, o fechamento de uma acepção conceitual não seria benéfico, pois uma definição delimitada e concisa poderia excluir grande quantidade de comportamentos potencialmente nocivos. Além disso, uma definição que inclui elementos descritivos da prática de cyberbullying especificando certos tipos de dispositivos eletrônicos com o passar do tempo pode se tornar obsoleta após o lançamento de novas tecnologias.
No segundo bloco estão os autores que afirmam que cyberbullying é uma nova forma de agressão, que apresenta diferenças significativas em relação ao bullying, todavia muitos deles não se dedicaram a produzir uma teoria ou definição específica6,59,60,62-64.
Considerando a argumentação sobre a natureza inédita do fenômeno, aponta-se o papel da audiência no contexto da perpetração38,64. A audiência do cyberbullying é concedida em larga escala pelas plataformas digitais, propagando esse conteúdo depreciativo para milhares de pessoas, tanto no ato da transmissão da mensagem, vídeo ao vivo ou em outro momento, além da possibilidade de baixar o conteúdo para acesso off-line. Logo, a capacidade exponencial de compartilhamento desse conteúdo não pode ser dimensionada pelo perpetrador, e, mesmo que a intenção de propagação do conteúdo seja para um grupo menor de pessoas, o intimidador passa a não ter mais domínio sobre esse conteúdo. Quanto mais vizualizado e/ou compartilhado a audiência aumenta significativamente, diferente do bullying, cuja audiência é limitada ao público que estava presente no momento do ataque. No caso bullying, mesmo que a cada novo ataque o grupo de espectadores cresça, não se compara ao número de pessoas que terão acesso a um conteúdo hostil na internet.
Brown et al.1 alertam que o ambiente virtual favorece a desinibição, mencionando o caso de pessoas que sofrem com o bullying e que utilizam a internet para se vingar daquele que praticou tal bullying, já que a internet lhes oferta a possibilidade de anonitamato através de identidade alternativa (uso de perfis falsos) para assediar. Assim, em alguns casos quem sofre bullying pode ser um perpetrador de cyberbullying contra seu algoz de bullying face a face, principalmente quando essa“revanche” não seria possível acontecer, como entre sujeitos com diferença de padrões físicos.
Cabe mencionar que parte dos estudos corrobora acerca de suposta inconsistência nas definições encontradas na literatura48,49,65 e que falta consenso entre os estudiosos que investigam o tema, seja com relação às conceituações e termos ou sobre os aspectos de semelhança e diferença entre o cyberbullying e bullying. Conforme esse arcabouço teórico se expande, é provável que novas discordâncias científicas perpassem por esse campo em construção.
As dinâmicas de cyberbullying dependem das ações e representações de cada pessoa envolvida nesse círculo de violência. Neste cenário atuam os perpetradores – os que praticam a violência, os acometidos (chamados de vítimas), os espectadores (aqueles que assistem e compartilham o conteúdo que viola outrem), os educadores e pais, que por vezes são os últimos a tomar conhecimento do abuso.
Houve diferenças significativas sobre as descrições das dinâmicas do cyberbullying e os motivos prováveis estariam associados ao período em que os estudos foram publicados, pois algumas formas de cyberbullying ainda não eram reconhecidas anteriormente e os tipos de dispositivos tecnológicos e as formas de conversação/comunicação e compartilhamento de conteúdo online disponíveis também mudaram rapidamente. Há algum tempo, o e-mail e as mensagens de texto eram as formas mais disseminadas, atualmente as interações através das redes sociais ganharam maior espaço entre os jovens (transmissão ao vivo, vídeos chamadas, compartilhamentos em massa, jogos online em grupo etc.).
Destacam-se quatro estudos que exemplificam as dinâmicas de cyberbullying. Julia Wilkins et al.66 descrevem, fundamentados no texto que institui o Programa Anti-Bullying de Londres sete tipos de cyberbullying e Suzuki et al.54 também identificam as mesmas modalidades, a seguir compiladas: 1. Por mensagem de texto - enviada via telefone celular com a intenção de causar desconforto e ameaça; 2. Imagem/video-clipe - quando as imagens das vítimas são enviandas para outras pessoas no intuito de ameaçar ou constranger; 3. Intimidação por chamada telefônica - por meio de chamadas silenciosas ou por mensagens abusivas ou quando o celular da vítima é roubado e usado para perseguir outros culpando o proprietário do telefone; 4. intimidação por e-mail: quando são enviados conteúdos, muitas vezes usando um pseudônimo ou o nome de outra pessoa para fazer com que essa pessoa se pareça com o perpetrador (modalidade desatualizada); 5. chat room bullying - respostas agressivas e intimidadoras em sala de bate papos (também mais desatualizada) 6. intimidação através de mensagens instantâneas 7. bullying através de websites – com uso de blogs difamatórios, sites pessoais, sites de pesquisa pessoais online e sites de redes sociais (por exemplo, MySpace), além da criação de fóruns.
Entre as dinâmicas do cyberbullyng destacadas na literatura estariam: “namecalling” (apelidar alguém de modo rude), propagação de rumores, “flamings” (discussões calorosas online), ameaças, fingir ser outra pessoa online (fakenames), envio de fotos indesejadas ou mensagens de texto; (sexting) postar e/ou compartilhar imagens e vídeos com conteúdo íntimo de outra pessoa sem consentimento desta2, excluir uma pessoa de um circulo social online de forma intencional31. Além das redes sociais, o cyberbulling também se manifestaria em jogos MMOGs - jogos onlines com múltiplos jogadores (multiplayers games), um jogador poderoso pode “trollar” (zombar, humilhar) alguém, roubando itens do jogo como: recompensas, invadindo a conta, formar gangues e bloquear pessoas em uma rede social; fazendo piadas com a imagem de uma pessoa e controlando remotamente a câmera/computador de uma pessoa sem o consentimento desta59.
A revisão de Kowalski et al.44 ratifica as formas já mencionadas e reconhece outras formas de perpetração, entre elas: harassament (envio de mensagens repetitivas e com conteúdo ofensivo), bloqueio online, solicitar informação online de conteúdo pessoal e posteriormente compartilhar a terceiros sem consentimento; cyber-stalking (usar comunicação eletrônica para perseguir outra pessoa) e postar informação inapropriada ou de cunho depreciativo se passando por outra pessoa.
Mehari et al.63 refletem que os comportamentos agressivos nas relações sociais na internet têm baixo controle social e são menos recriminados se comparados aos perpetrados nas relações face a face. Outro aspecto apontado na revisão de Mehari et al.63 é a falta ou escassez de indícios verbais, que aumentaria a probabilidade de desentendimentos e interpretações errôneas. Assim, o que um jovem pretende como uma brincadeira, interação amigável pode rapidamente tornar-se uma interação mutuamente agressiva se a outra pessoa interpreta o comentário como um insulto ou uma ameaça. A falta de sugestões não verbais também pode reduzir a empatia, que serve como um controle natural do comportamento dos adolescentes.
Arsene e Raynaud25 destacam que o cyberbullying que ocorre por meios visuais (foto ou vídeo) é mais prejudicial e mais negativo do que os que envolvem mensagens por (SMS) e de texto na Internet. As consequências seriam mais graves, as vítimas mais afetadas do que em outras formas de cyberbullying e o risco de sofrimento psicossocial teria maior potencial. Na revisão desses autores25 as fotos ou videoclipes tiveram impacto mais negativo do que no assédio tradicional (interpetrado como bullying).
Os principais personagens do cyberbullying são os praticantes e as pessoas escolhidas como alvo (as denominadas vítimas). Poucos estudos como os Allison e Bulsey43 e Desmet et al.67 analisaram a figura dos espectadores (testemunhas) e seu papel na manutenção do ciclo de violência e propagação do cyberbullying. Allison e Bulsey43 identificaram quais os fatores que influenciam as respostas das testemunhas aos atos de cyberbullying. Concluiram que os espectadores são importantes no cyberbullying, pois eles tem “o pontecial de alterar a situação ao intervir, mas a maioria das testemunhas permanece passiva”. Outro estudo indica que os espectadores seriam capazes de determinar qual o potencial de extensão que um episódio de cyberbullying pode ter ao compartilhar, curtir, comentar um ato de violência nestes moldes68.
Há divergência na literatura analisada com relação ao recorte de gênero que perpassa o cyberbullying. A maioria reduz o debate à variável “sexo”, buscando saber se meninos ou meninas são maiores vítimas ou agressoras, ou quais deles sofreriam mais as consequências do cyberbullying32,48. Bauman32 identificaram na literatura casos de pessoas do sexo masculino que ao mesmo tempo eram praticantes de cyberbullying e de bullying. Para outros estudos, pessoas do sexo feminino estariam mais envolvidas em cyberbullying e os meninos em situações de bullying. Isso sem considerar a orientação sexual desses indivíduos ou sua posição de gênero. Bailey31 alega haver dissenso sobre os rapazes serem os maiores causadores de cyberbullying.
Por outro lado, muitos autores acabam por reforçar estereótipos de gênero de forma acrítica. No estudo Dooley et al.69, as garotas teriam maior interesse com a aparência, saúde, enquanto garotos estariam mais implicados com jogos on-line. Tal texto reproduz uma leitura de gênero onde meninas tendem a ter laços de amizades mais intensos, compartilhando conteúdos íntimos e segredos pessoais, principalmente através de mensagens de texto, já meninos socializam nas redes sociais em maiores grupos e compartilham menos detalhes pessoais. Chibbaro42 destaca estudo que afirma que a maioria (53%) das meninas sofreram cyberbullying de conhecidos como colega da escola, seguido de amigo e em um número menor, o irmão foi o causador do ato. Alim24, baseado no site NoBullying.com, afirma que as meninas são duas vezes mais causadoras de Cyberbullying do que os meninos porque meninos seriam mais agressivos, em termos físicos, enquanto que meninas tendem a ser mais “silenciosas” quando querem atingir alguém, por vezes quando intimidam o fazem em série. Na mesma linha sexista, estudos como de Chan e Wong60 alegam que garotos são os maiores perpetradores por serem mais hábeis no uso de tecnologias do que as garotas.
Com relação à faixa etária também houve dissenso. A maior incidência está entre os adolescentes e os casos diminuem na fase universitária51. Segundo Suzuky et al.54 as meninas seriam as maiores acometidas, porém entre 15 e 17 anos a incidência é muito maior do que entre jovens de 12 e 14 anos. Para Hamn et al.70 o fator idade não é determinante para ser alvo de Cybebullying.
Para Alim24 haveria um recorte de condição social, pois os que mais sofreriam seriam pessoas oriundas dos estratos de baixa renda.
Da mesma forma não há uma concordância na literatura sobre o recorte étnico/racial. Estudantes brancos são considerados maiores perpetradores do que outras categorias étnicas70,71. O estudo de Peterson e Peterson71 foi o único que objetivou examinar possíveis ligações entre comportamentos de cyberbullying e grupos étnicos específicos. Essa lacuna parece evidenciar que se desconsidera que a discriminação por etnia/cor da pele pode gerar experiências de cyberbullying. Para Peterson e Peterson71 alguns aspectos precisam ser analisados, tais como: o perfil populacional das pessoas que utilizam TICs; a escassez de estudos que analisam especificamente o quesito raça/cor, bem como o território em que esses estudos estão sendo produzidos e onde esses dados de amostras estão sendo coletas.
As psicopatologias estão entre as principais implicações à saúde dos envolvidos nas práticas de cyberbullying25,72-75.
Os principais agravos listados para os que sofrem foram insônia, depressão, baixo rendimento escolar ou baixa concentração76. Brunnet et al.22 apresenta estudos que afirmam que pessoas que sofrem Cyberbullying tem menos horas de sono e menos apetite do que pessoas que sofreram outras formas de violência. Bailey31 ao analisar a Child Behavior Checklist (CBC) inclusa em um dos estudos verificados, indicou que aqueles assediados por conhecidos também eram “mais propensos a relatar maiores conflitos com os pais, casos de abuso físico ou sexual, vitimização interpessoal off-line e comportamento agressivo além de outros problemas sociais”.
Aquele que é intimidado com cyberbullying teria aproximadamente oito vezes mais chances de levar uma arma para escola do que outros estudantes que não tiveram essa experiência22. Grande parte dos estudos considera ainda que o cyberbullying estaria associado à depressão, uso de drogas, ideação suicida e suicídio, estresse, solidão e ansiedade61,77,78, com consequências psiquiátricas que afetam a saúde mental e o desenvolvimento escolar2, principalmente dos adolescentes que são alvo. A busca por experiências de risco, “vício no uso de internet”, solidão e o suicídio são alguns dos fatores psicológicos para ambos os personagens (vítimas e agressores), sendo que para os que praticam os fatores estariam interligados entre si24. Não encontramos subsídios que fundamente os impactos da saúde dos espectadores.
A escassez de estudos que refletem sobre a contextualização do cyberbullying na cibercultura10,14,41,79 e nos seus modos de socialidade foi o aspecto mais marcante nesta revisão de revisões. Como discutir um fenômeno sem relacionar ao seu contexto sociocultural de produção e reprodução? É preciso reconhecer que a juventude que vivencia o cyberbullying é em boa parte “nativa digital”, implicando o domínio de comportamentos e gramáticas próprias, além desse espaço de convivência ser estratégico às afirmações identitária desse segmento1,80.
Percebe-se que apesar da redundância conceitual houve um avanço expressivo na busca por aprofundar as especificidades características do Cyberbullying. Salienta-se ainda a peculiaridade no cyberbullying da expansão exponencial do público de expectadores no que tange à disseminação do conteúdo ofensivo e por tempo indeterminado - elementos que desafiam o trabalho de promoção de resiliência aos que sofreram tais práticas. Uma pessoa pode ser estigmatizada por um longo período à medida que esse conteúdo não pode ser apagado facilmente, como nos casos de sexting em que o conteúdo fica disponível em buscadores associados ao nome da pessoa que sofreu a violência. Uma vez que o Cyberbullying pode ocorrer em qualquer tempo e território e se dispõe de mecanismos de ocultação de conteúdos e torna mais difícil a detecção prévia por parte dos adultos e responsávies.
Em relação aos aspectos de gênero, destacamos a revisão de Chan e Wong60 que analisou as taxas de prevalência de bullying e cyberbullying a respeito das características dos praticantes e intimidados e em que circunstâncias a ações eram descritas na China, Taiwan, Hong Kong e Macau. Percebemos um discurso sexista quando os autores fazem um recorte de gênero em sua análise e como exemplos mencionam no estudo que em Taiwan um dos fatos de meninos serem os maiores intimidadores se justificaria por uma maior habilidade no uso de tecnologias. Apesar da questão cultural ser evidente, favorece a interpretações de que as adolescentes do sexo feminino não teriam habilidades com tecnologias se comparadas aos adolescentes do sexo masculino, não refletindo sobre o tipo de acesso que as meninas possuem aos meios tecnológicos, culturais e educacionais em países onde o homem é considerado superior. Outro registro sexista aparece no estudo de Chisholm59 que defende que meninas tendem a se envolver em agressão indireta, social e relacional, como no cyberbullying, para excluir pessoas em redes sociais e espalhar rumores. A natureza “competitiva” das mulheres foi um aspecto destacado por Wingate et al.58 ao corroborar a ideia que as garotas estariam mais envolvidas com práticas de cyberbullying relacionais.
Por fim, notamos também que é consensual o reconhecimento de impactos na saúde psíquica e no cotidiano escolar dos intimidados e apenas um pequeno grupo reconhece que existem impactos entre os intimidadores. No contexto da Saúde o tema ainda é recente e pouco disseminado, anunciando um longo percurso a ser percorrido no sentido de sua compreensão e de posicionamento do campo. Já no contexto da Educação, o tema começou a ser discutido anteriormente, o que pode ser atribuído à recorrente correlação com o bullying que perpassa o cotidiano da escola.