versão impressa ISSN 1414-8145versão On-line ISSN 2177-9465
Esc. Anna Nery vol.22 no.1 Rio de Janeiro 2018 Epub 05-Fev-2018
http://dx.doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2017-0258
Com o aprimoramento da terapêutica, o câncer infantil tornou-se uma doença crônica, diminuindo a conotação de morte irremediável, pois, nos últimos anos, as pesquisas revelam que 70 a 80% dos casos obtém sucesso no processo de cura da doença.1-4 Não obstante, é considerado lesivo e invasivo, raro em crianças e adolescentes, quando comparado aos adultos, mas, atualmente, é considerado a primeira causa de óbito por doença em crianças com idade acima de cinco anos.5
Devido ao tratamento longo e a dificuldade de acesso da população brasileira aos serviços de saúde, inclusive àqueles especializados em câncer, as crianças com câncer e suas famílias podem se beneficiar do Programa do Tratamento Fora do Domicílio (TFD), instituído pela portaria nº 55/99 do Ministério da Saúde, que oferece, além do tratamento, ajuda de custo para necessidades como alimentação, hospedagem e transporte ao paciente e sua família.6
Nesse contexto, foram criadas as casas de apoio aos pacientes com câncer, cujos objetivos são oferecer estadia, alimentação, transporte para o local do tratamento, apoio social e terapêutico aos pacientes e familiares, e outros serviços necessários diante das particularidades de cada criança.7
A criança com câncer se depara com a imposição de inúmeras vivências estressantes, pois o tratamento é invasivo e bastante complexo.2,8 O brincar é algo que faz parte do mundo da criança e possibilita que ela recicle suas emoções, resgate situações conflituosas, favorece a imaginação, autoconhecimento, desenvolvimento intelectual e o aprendizado de valores morais,9,10 o que não se modifica quando a criança tem câncer.
A experiência da doença e do tratamento que a criança vivencia torna imprescindível que, nesse momento, ela tenha acesso a um ambiente ideal para dar vazão aos sentimentos mobilizados pelas novas experiências.8,11 Assim, as casas de apoio para crianças com câncer são consideradas cenários que favorecem a interação social e promoção do desenvolvimento das mesmas, resgata o prazer de viver, brincar e conviver com os seus pares que vivem a mesma situação de saúde e doença.8
Sendo assim, fica clara a importância da existência das brinquedotecas nos ambientes hospitalares, de tratamento ambulatorial e nas casas de apoio. Além disto, o momento e o ambiente em que as atividades lúdicas são desenvolvidas podem se constituir em espaço terapêutico para elaboração da doença.11 Esses espaços, geralmente, contam com o apoio de equipes contratadas ou de voluntários, sendo este último o foco do presente estudo.
No Brasil, na década de 90, com o crescimento do terceiro setor, o trabalho voluntário recebeu legislação específica. O artigo 1º da lei 9.608 de 18 de fevereiro de 1998, define serviço voluntário como não remunerado, prestado por pessoa, a entidade pública e privada de fins não lucrativos, com objetivos cívicos, culturais, educacionais, científicos, recreativos ou de assistência social.12
A literatura afirma que esse tipo de trabalho favorece o contato com o sofrimento do outro, acrescentando experiências benevolentes, sendo uma via de "mão dupla", onde ambos se beneficiam da interação. Motivações diversas impulsionam uma pessoa a realizar trabalho voluntário, podendo ser tanto social quanto pessoal.13-15
Um estudo realizado com voluntários em um hospital oncológico, na Índia, afirma que as motivações dessas pessoas se encontram imbricadas na necessidade de ajudar a sociedade, atendendo aos que sofrem. Outros aspectos positivos apontados são o trabalho em equipe, a oportunidade de compartilhar experiências e oferecer conforto e alegria ao próximo.16
Famílias voluntárias que desenvolveram atividades para pessoas com doença mental severa foram motivadas por razões, como a compreensão da necessidade de ajudar ao próximo e a realização de algo bom para uma pessoa em situação vulnerável, o que gerou sentimentos de alegria e recompensa.17
Apreender a vivência dos voluntários de uma brinquedoteca de uma casa de apoio para crianças com câncer, é uma forma de valorizar as relações que perpassam o tratamento oncológico, além de evidenciar a lacuna existente sobre o trabalho voluntário com crianças doentes. Assim, acredita-se que essa compreensão possa contribuir para ampliação dos conhecimentos dos envolvidos neste processo acerca desse tipo de trabalho, mas também para que a equipe de saúde, ao conhecer as experiências dos voluntários, possam apoiá-los em suas necessidades.
Portanto, o objetivo deste estudo é compreender o significado das experiências de ser voluntário de uma brinquedoteca para crianças com câncer.
A Fenomenologia deriva dos termos gregos logos que significa 'fala que apresenta'; enquanto fenômeno, 'aquilo que se mostra por si mesmo'.18 É um método de pesquisa que propõem a compreensão do homem em sua totalidade, entendendo que apenas quem vivencia o fenômeno é capaz de descrevê-lo.19,20
O conceito de que fenômenos semelhantes são vivenciados e experimentados por indivíduos de modos singulares, vem ao encontro dos objetivos da pesquisa fenomenológica.
A Fenomenologia, enquanto escola filosófica, tem como cerne o que é dado na experiência, renunciando totalmente a ideia de formular hipóteses. O que é só pode ser por meio do discurso de quem vivencia um determinado fenômeno. Assim, o pesquisador não parte de um problema específico, mas conduz a sua pesquisa a partir de um questionamento e, por meio dos discursos dos participantes, revelam-se facetas, ou seja, modos de vivenciar um determinado fenômeno.21
Para alcançar a compreensão do fenômeno, os discursos foram analisados segundo as orientações de Martins e Bicudo:21 - leitura global do conteúdo total do discurso, de forma a apreender sua configuração global; - releitura, atentiva, de modo a identificar as afirmações significativas dos sujeitos; - diante das unidades de significados, buscou-se convergências e divergências; - a partir das convergências/divergências construiu-se categorias temáticas; - procedeu-se a uma síntese descritiva, integrando as afirmações significativas em que se constituem as categorias que expressam os significados atribuídos pelos voluntários da brinquedoteca.
O cenário da pesquisa foi uma casa de apoio à criança com câncer, localizada no interior do estado de São Paulo. O critério de inclusão dos participantes foi ser voluntário da brinquedoteca no momento da realização da pesquisa, independente do sexo, idade e tempo de atividade voluntária. Foram excluídos os voluntários que desenvolvem atividades em outras áreas dessa instituição.
Os participantes foram 11 voluntários, de ambos os sexos, com idade entre 24 e 71 anos, que estavam desenvolvendo atividades na brinquedoteca no período de abril a junho de 2014. O tempo de experiência dos voluntários variou de cinco meses a três anos. Todos os voluntários aceitaram participar do estudo.
Os voluntários da brinquedoteca foram convidados, individualmente, a participarem do estudo, ocasião em que foi apresentando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE e solicitado sua anuência, de acordo com a Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, após aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), parecer número 522.942. Foi garantido o anonimato dos voluntários e, para isso, eles foram identificados no estudo com nomes fictícios de super-heróis.
Os participantes que concordaram em participar, expondo suas experiências, foram entrevistados por meio da seguinte questão norteadora: "Como é ser voluntário de uma brinquedoteca para crianças com câncer?" As entrevistas foram realizadas na sala de reuniões da instituição, na presença apenas do pesquisador principal e do participante, com duração média de 30 minutos. Os discursos foram gravados em gravador digital, transcritos na íntegra e analisados segundo as recomendações de Martins e Bicudo.21
As entrevistas foram encerradas quando o critério de saturação teórica foi alcançado, ou seja, quando os discursos se mostraram suficientes para o pesquisador desvelar o fenômeno em questão, trazendo clareza para aquilo que se pretende compreender.22,23
Após a análise do material empírico, emergiram três categorias temáticas: - relações consigo, relações com o grupo e relações com o mundo, que foram discutidas à luz da literatura nacional e internacional.
O trabalho voluntário na brinquedoteca para crianças com câncer possibilitou aos trabalhadores voluntários estabelecerem uma relação com seu próprio eu, levando-os a repensarem o objetivo de ser voluntário, considerando valores, crenças, convicções de mundo, ou seja, tudo o que move, intimamente, o ser humano.
O estar junto das crianças com câncer significa aos voluntários uma doação: de tempo, de escuta, de afeto e até um ato de responsabilidade social.
É muito bom, sempre tenho meus compromissos, minhas outras coisas, mas acho que a gente sempre pode arrumar um tempinho, às vezes estou super cansada, mas vale tanto a pena [...] (Tempestade)
[...] fazer um trabalho voluntário era fazer com que essas crianças esquecessem por alguns instantes, que elas sorrissem, que elas se sentissem mais felizes nesse mundo. (Elektra)
Contudo, essa doação não é unilateral, ou seja, apenas do voluntário para a criança, pois o aspecto interacional também está presente, pois os voluntários percebem que também são beneficiados ao exercerem o trabalho voluntário, como destaca Tempestade:
Que quando você pensa no trabalho voluntário, acho que você pensa muito em ajudar outras pessoas, e acho que desses dois, dá para ver quem mais cresceu lá, eu percebi que a pessoa que mais foi ajudada fui eu. [...] você doa muito e você aprende muito e acho que você é muito recompensado, acho que quando você se relaciona com uma pessoa tem os dois lados, sabe? Eu acho que a pessoa ganha, você ganha, mas eu acho que quando você ajuda alguém e a sua ajuda está sendo positiva, acho que você ganha de novo, então é como se você ganhasse duas vezes e a pessoa que está sendo ajudada ganha só uma, que seria a sua ajuda, sabe? (Tempestade)
Em uma pesquisa realizada acerca do voluntariado na Cruz Vermelha Portuguesa, o voluntário é visto como um indivíduo capaz de promover mudanças na dinâmica social, dando apoio e melhorando as condições de vida de quem ele apoia. No entanto, esta é uma relação de duas vias, pois ao mesmo tempo em que o voluntário ajuda, também recebe, pois, o trabalho voluntário é responsável pelo aumento da sua própria qualidade de vida.24
Os voluntários percebem que a interação criança-voluntário é maximizada pelo processo terapêutico que distancia a criança de seus familiares, deixando-a mais receptiva às novas relações interpessoais em função da necessidade de se adaptar à nova realidade.
[...] são crianças que, às vezes, passam lá meses ou até mais de um ano lá na casa, então acaba fazendo com que percam um pouco o contato com os amigos, com a família e isso facilita um pouco essa aproximação do voluntário com a criança [...] É que sei lá, assim, é quase inevitável, você vai brincar, fica junto com elas, flui naturalmente [...] (Capitão América)
Embora a relação criança-voluntário seja benéfica para ambos, o envolvimento do voluntário, por vezes, extrapola o ambiente da casa de apoio, levando-o a visitar criança-família durante os períodos de hospitalização.
[...] eu costumava sempre que dava né [...] não era sempre que eu conseguia visitar as crianças no hospital porque na Casa elas ainda tinham suporte melhor, digamos assim, tem a atenção, outras crianças, as outras mães, que acabam também ficando muito próximas. (Capitão América)
No entanto, nem todos os voluntários sentem-se preparados para interagir com a criança no hospital, levando-os a um sentimento de angústia.
[...] a primeira vez que eu fui no hospital, que daí eu vi uma das crianças da Casa hospitalizada, aquilo mexeu assim demais comigo, tanto é que eu comecei evitar ir lá, porque eu vi que meu emocional ainda não tava bem preparado e depois de algum tempo comecei a me adaptar [...] (Elektra)
O sentimento de angústia emerge também quando, em função da evolução da doença da criança, a mesma adentra um caminho inexorável, o da morte. A morte da criança, além de ser compreendida pelo voluntário como perda significativa, também é uma vivência que colabora no crescimento e no amadurecimento do voluntário como pessoa.
Tem lógico o lado negativo, mas acho também é um... Apesar de ter um pouco o lado negativo, porque te entristece um pouco, eu acho que também te amadurece muito a aprender lidar com a perda, a aprender a lidar com a doença e eu vejo a morte hoje, a doença de uma forma um pouco diferente, sabe? (Tempestade)
Uma pesquisa realizada com clientes e voluntários em uma casa de apoio na Filadélfia, Estados Unidos, indicou que a sociedade percebe o trabalho voluntário com crianças com câncer como algo positivo e especial.25 Contrariamente, a experiência de um dos participantes desta pesquisa não tem essa visão. O voluntário verbaliza sentir-se desvalorizado.
[...] eu sofria um pouco de quando eu falava disso para outras pessoas; eu sou voluntário de uma brinquedoteca com crianças com câncer. Mas daí as pessoas falavam: voluntário? Você fica em um lugar que não é dos mais legais e você está com crianças debilitadas e você é voluntário? Você não ganha nada? (Homem de Ferro)
A desvalorização quanto ao trabalho voluntário pode se dar em função do não conhecimento acerca das tarefas que serão realizadas e da falta de clareza da importância do trabalho voluntário para a comunidade que o recebe. Mas com o passar do tempo e a construção de uma relação interpessoal entre voluntários, a perspectiva de como ser útil ao outro pode se modificar.
[...] no começo eu realmente me sentia muito inútil aqui. Verdade, eu ia embora entristecida porque eu não sentia que eu estava fazendo alguma coisa boa para alguém, porque eu não tinha experiência. Eu achava assim que ia ser uma coisa mais produtiva, então eu esperava um outro tipo de serviço [...] Daí eu conversei com uma voluntária, ela falou "É assim mesmo". (Mulher Maravilha)
Há voluntários que idealizam o trabalho de acordo com sua formação acadêmica, traçando metas a serem atingidas sem considerar a idade/vontade das crianças e a experiência de adoecimento.
No discurso de Capitã Marvel, emerge a percepção de não ter suas expectativas atendidas em relação ao trabalho voluntário e revela que para alguns trabalhadores voluntários os objetivos pessoais podem ser distintos dos objetivos da instituição:
[...] eu acho que isso assim eu, eu vou te falar a verdade eu, eu ainda não encontrei um caminho assim, sabe? Que eu preciso, que eu entrei pensando nesse caminho [...] Caminho de leitura e de contar história, mas história é besteira por que, eles não se interessam muito [...] na verdade eu entrei aqui para contar história, mas é um pouco difícil por questões como a idade diferente. Não diria assim que está todo mundo querendo, umas querem, outras não querem, então a gente está pretendendo dividir, mas é difícil porque os pequenos, às vezes, estão ouvindo a história e, de repente, ele pega, sai correndo e vai embora [...] (Capitã Marvel)
É importante que o trabalho voluntário seja coordenado por indivíduos, voluntários ou não, que percebam as características dos trabalhadores e, que incentivem o trabalho em equipe, que é conceituado como a realização de atividades sob liderança e orientação de um coordenador, juntamente com trabalhadores que se ajudem e que possuam capacidade de se ajustarem ao ambiente.26,27
Voluntários de uma casa de apoio demonstraram-se gratos pela oportunidade de poderem exercer as atividades e satisfeitos quanto às tarefas exercidas.28 No que diz respeito aos voluntários deste estudo, as expectativas seriam mais próximas da realidade se esses voluntários pudessem passar por um treinamento, elucidando as atividades que competem aos voluntários. Esse treinamento, se realizado por profissionais com formação em saúde e saúde mental, como o enfermeiro, poderia colaborar na adaptação dos voluntários ao trabalho voluntário.
A categoria relações com o grupo - profissionais, voluntários e acompanhantes, fez emergir, nos discursos dos voluntários, a capacidade de se colocar no lugar do outro, além dos diversos relacionamentos que ser voluntário em uma casa de apoio possibilitam.
Os voluntários mostram-se empáticos não só com as crianças com câncer, mas também com os familiares acompanhantes, pois compreendem que o adoecimento da criança não afeta apenas o indivíduo doente, mas sim toda a estrutura familiar.
A gente sabe que quando uma criança adoece não é só ela que fica doente, mas toda a família adoece junto, porque participa do processo terapêutico a família junto, né? [...] A gente ouve muitas histórias com elas, delas. Tudo como é que foi a descoberta da doença ou como é que está sendo o tratamento. Então acaba sendo um ambiente de muita cumplicidade, né? (She-Ra)
Colocar-se no lugar de outrem, pode gerar, desde a possibilidade de identificação, até a necessidade de afastamento,29 dependendo das características pessoais de cada voluntário. Nos discursos dos voluntários deste estudo, foi possível perceber que há uma significativa identificação com os familiares, por meio da solidariedade aos acompanhantes, pois consideram que estes vivenciam momentos difíceis durante o tratamento.
Outra coisa que eu aprendi na Casa, eu tinha uma noção diferente das pessoas que estavam de acompanhante. Hoje a minha visão quanto a essas pessoas é de muito amor, que não é fácil mãe ou mesmo pai ficar 24 horas só convivendo e vivenciando uma situação que é monótona, dia após dia e noite [...] (Mulher Maravilha)
Nesse contexto de sofrimento, as diversas relações que se dão com todos os que rodeiam a casa de apoio, são percebidas pelos voluntários como relevantes e essenciais para o trabalho, pois colaboram na adaptação dos mesmos ao trabalho voluntário.
[...] tem os outros voluntários também que a gente sempre aprende um pouquinho com a experiência de cada um. Eu não sei se uma é certa, ou se uma é errada, mas a gente vai aprendendo as coisas, né? A gente vai separando, o que é bom a gente guarda, o que é ruim a gente deleta [...] (Fênix)
Voluntários de um estudo que desenvolveu atividades com pessoas em cuidados paliativos relataram que continuam participando do trabalho voluntário porque a atmosfera do grupo é boa e porque se sentem como parte deste grupo.30 Homem de Ferro também percebe o grupo de voluntários como uma família.
[...] os voluntários que eu conhecia, a gente acabou desenvolvendo uma amizade [...]. Enfim, alguma festa beneficente ou não, ou festa de comemoração de alguma data especial e a gente se encontrava lá, [...] a gente passa a se sentir um pouco pertencente a uma família. (Homem de Ferro)
Voluntários de um serviço de entrega de refeições para idosos relataram que, o sentimento de satisfação pelo trabalho, está intimamente ligado às relações humanas com os outros voluntários e com os funcionários profissionais que supervisionam o serviço.31
Dessa forma, é possível evidenciar a importância dos relacionamentos interpessoais para os trabalhadores voluntários, oportunizando a construção de vínculos significativos. Mas o trabalho voluntário vai além dessas relações interpessoais, possibilitando que os indivíduos adquiram conhecimentos e reflitam sobre seus valores e o mundo em que habitam, permitindo novas relações.
A categoria Relações com o mundo desvelou novas facetas do ser voluntário. À priori, para desenvolver atividades em uma brinquedoteca é preciso gostar de brincar com as crianças. Todavia, não é apenas isso, pois por meio das relações com as crianças, surgem novas demandas que permitem produzir conhecimentos diversos. E essa produção, consequentemente, possibilita a autorreflexão, que retroalimenta o trabalho voluntário na brinquedoteca.
Os voluntários produzem conhecimentos a partir da experiência e da convivência com o outro. Ao conviver com crianças, as quais estão com uma afecção crônica, em tratamento e distantes da família, algumas características são apreendidas. Ao mesmo tempo em que percebem as crianças sadias e as crianças com câncer de forma semelhante, há características advindas da doença e do tratamento que as diferem. No discurso abaixo, Mulan ressalta características similares das crianças.
Eu acho que a criança doente ela é criança do mesmo jeito, quando elas não estão com dor ou sob efeito de qualquer medicação que altera o comportamento, eles são crianças iguais as outras: alegres. Brincam, participam do mesmo jeito. (Mulan)
Uma pesquisa que comparou crianças sadias e doentes, da mesma idade, não observou diferenças no que diz a respeito ao desenvolvimento psicológico, o que sugeriu adaptação, sendo que as mais saudavelmente adaptadas foram as crianças com câncer dentre outras doenças consideradas crônicas.32
Considerando que crianças sadias e crianças com câncer tem as mesmas necessidades de desenvolvimento, manter algum controle sobre o cotidiano possibilita que a criança se sinta acolhida no ambiente que a circunda. She-Ra, em seu discurso, evidencia que a criança com câncer perde o controle de sua vida, em função do tratamento:
[...] eu percebo assim, que essa questão do não controle, não controle da situação, do tratamento dela, não controle até do próprio corpo, né? Uma injeção que tem que tomar, é a quimio que tem que tomar, às vezes, dá náusea, dá mucosite, enfim tudo que acontece no tratamento, elas não têm controle. (She-Ra)
Emergem, então, diferenças entre as crianças sadias e as crianças com câncer. Outra diferença é a utilização de termos técnicos pelas crianças. Os voluntários percebem que o aprendizado da criança sobre a doença, ocorre também por meio da utilização dos termos técnicos, isto é, a doença perpassa a vida da criança, possibilitando um conhecimento que as crianças sadias não possuem. Em função disso, alguns voluntários acreditam que a criança com câncer perde, em algum grau, a pureza da infância.
[...] as crianças brincam de médico, então elas são médicos, então elas podem dar anestesia em você, elas operam, elas colocam cateter em você também. Então é um momento muito lúdico, é um tempo muito lúdico e elas passam até o próprio problema delas, o próprio câncer, elas levam na brincadeira. Tipo "Ai eu sou o médico agora e vou te dar uma injeção" ou "Vou colher teu líquor", eles falam como se fossem muito adultos, mini médicos de 4, 5 anos [...] eles podem ser médicos, eles podem ser enfermeiros, professores, adultos de verdade, que não tem doença, eles se transformam em outras pessoas. Eu acho que isso é muito divertido de ver, muito engraçado, você participa muito. (Tempestade)
Os voluntários admitem que a criança adquire, durante o tratamento oncológico, conhecimentos diversos sobre a doença. Contudo, o adoecimento interfere, sobremaneira, na educação formal, pois brincam com crianças que, embora estejam em idade escolar, não frequentam a escola e, portanto, não são alfabetizadas. Participar do mundo escolar durante o tratamento oncológico, pode se transformar numa tarefa árdua.
[...] crianças que a doença atrapalhou alfabetização, atrapalhou a frequência na escola [...] Então, assim, a gente logo no começo, eu partia do princípio, do senso comum, que a criança tem 10 anos, então são crianças alfabetizadas, que sabem ler, escrever e fazer conta. Isso não é verdade! [...] e a doença impediu que eles frequentassem escola. (Mulan)
Além das características do desenvolvimento infantil, a dor é uma constante no discurso dos voluntários da brinquedoteca, assim como os efeitos adversos dos medicamentos. A dor emerge como um fator impeditivo para a presença da criança na brinquedoteca, entretanto os voluntários apreendem a brincadeira como uma medida que pode modificar/diminuir a sensação dolorosa.
Crianças que tinham tomado plaquetas, e que não estavam muito legal. Vieram para cá e só a interação com as outras crianças, interação com as tias, elas saíram daqui com um sorrisinho melhor no rosto, mais animadinhas, né? Por que muitas delas vem brincar com dor mesmo, né? Eu não sei se é a dor que passa ou a percepção da dor que diminui. (She-Ra)
Enfermeiras norte-americanas que trabalham com crianças com câncer descreveram que parte significativa da carga horária de trabalho é utilizada na prestação de suporte emocional à criança, principalmente no que diz respeito à dor. Os cuidados para diminuir as sensações dolorosas incluem: esclarecer o procedimento para a criança e a distração por meio de brinquedos, músicas e assistir aos desenhos na televisão.25
Assim, trabalhar com esse público subentende-se o respeito às características das crianças com câncer, que se concentram no momento presente, pois lidam com o adoecimento, na maioria das vezes, de forma positiva.31
Para os voluntários da brinquedoteca, o aprendizado vai além das características físicas e psicológicas da criança. Há também a possibilidade de ampliar os conhecimentos em várias áreas do saber, além do desenvolvimento de novas habilidades. No discurso abaixo, evidencia-se o contato com novas culturas, o que demanda a necessidade de aprender a se relacionar e a respeitar pessoas diferentes.
Eu acho que é um aprendizado mútuo muito grande, de ambas as partes! Eu aprendi muito nesse tempo que eu vou lá, em todos os aspectos, tanto pessoal, como aprender a lidar com criança, aprender a lidar com as pessoas, aprendi outras culturas, outros jeitos de ser, aprendi a respeitar isso [...] (Tempestade)
Assim, os voluntários, ao estabelecerem relações com as crianças, os acompanhantes, os profissionais da casa de apoio e o próprio grupo de voluntários, vão construindo sua singularidade.33 Nessa construção, os voluntários podem se deparar com um contexto desconhecido e adverso ao vivido por ele, o que possibilita a autorreflexão contínua.
Entende-se o indivíduo como um ser que está intimamente ligado ao ambiente em que vive, consequentemente, é importante o contexto na compreensão do ser humano e do seu sofrimento.33 Os voluntários observam como as crianças lidam com toda a experiência do adoecimento e, a maneira como se adaptam, é, para os voluntários, uma grande descoberta e um mecanismo que dá início ao processo de autorreflexão.
[...] como tem força as crianças. Talvez, por elas não compreenderem exatamente pelo que elas estão passando, pelo qual a gravidade da situação dela. Isso falando de criança até sete anos mais ou menos, porque as que já são um pouquinho mais velhas já começam a entender, né? Com dez, 11 anos, do que é de fato a doença. Mas, elas se tornam exemplos de superação, de como lidar com situações adversas na vida. (Homem de Ferro)
As reflexões feitas pelos voluntários levam a questionamentos variados. No discurso de Mulher Maravilha, emerge a temática vida-morte como intrínseco ao processo de viver, que é experienciado pela criança de uma forma mais natural, quando comparada ao adulto.
Você começa a ver outro sentido da vida, que é o que a gente nasce, cada um tem seu fardo, cada um tem a sua limitação, e de uma maneira ou de outra, a gente vai deixar esse mundo um dia, e aqui me trouxe essa certeza de como é lidar com a vida e a morte tão junto, sem aquela coisa, aquela lamúria, aquela lamentação. E é incrível, uma criança passa isso para você ao invés de um adulto, que só reclama, né? (Mulher Maravilha)
A partir da autorreflexão, os voluntários olham para si mesmos, repensando crenças, valores e princípios. Estudo realizado com voluntários chineses e americanos evidenciou que independente do trabalho em si, há diferenças culturais, pois, os voluntários chineses preocupavam-se mais com as demandas coletivas, enquanto os americanos com as demandas individuais.34
Nesse movimento de olhar para dentro de si, os voluntários percebem o outro que sofre, como as mães das crianças com câncer, que vivem um período singular, permeado de sofrimento e medo.
[...] essa observação de comportamento e tudo me ajudou muito a entender o mundo. Como as pessoas se comportam nesse tipo de situação, que é o extremo se pensar assim, porque você é mãe e tem um, muitas vezes, neném, quantas vezes vi! Neném de seis meses, três meses com câncer e acaba tendo que amputar um braço ou uma perna. Eu não consigo nem imaginar qual é essa dor que deve ser enorme, mas assim como ela reage frente a isso, observar o comportamento das pessoas, isso também foi muito interessante durante meu trabalho. (Elektra)
Embora as pesquisas com voluntários evidenciem o caráter altruísta do trabalho, pouco se fala sobre o processo de autorreflexão dos voluntários. Estudantes de medicina que exerceram algum tipo de trabalho voluntário em um hospital de cuidados paliativos referiram que o trabalho os transformou intimamente,35 o que sugere um processo de autorreflexão.
Ao retomar o objetivo deste estudo - compreender o significado de ser voluntário de uma brinquedoteca para crianças com câncer - os resultados, evidenciaram os caminhos que os voluntários percorrem ao desenvolverem suas atividades, indo da doação à autorreflexão, abarcando relações diversas que contribuem para o autoconhecimento do indivíduo, possibilitando rever conceitos, crenças, valores, de acordo com os novos tempos em que vivemos.
É possível afirmar que o trabalho voluntário transforma o íntimo de cada voluntário. Porém, esse movimento interno não é acompanhado por profissionais, na instituição que esta pesquisa foi realizada. Nesse sentido, o enfermeiro tem papel fundamental, uma vez que sua formação envolve, como princípio, a integralidade do cuidado, que busca apreender as necessidades de saúde de um determinado grupo, por meio do diálogo entre os envolvidos.
Diante disso, emergiu a necessidade de (re)pensar o processo de acolhimento dos voluntários, principalmente no que diz respeito à capacitação necessária para o desenvolvimento do trabalho voluntário e ao suporte necessário para realizá-lo, pois o trabalhador, quando empregado, a empresa tem responsabilidade sobre sua saúde física e mental.
Os voluntários da brinquedoteca para crianças com câncer deste estudo, não possuem qualquer suporte da instituição, estando em risco de sofrimento emocional advindo do contato com o processo de adoecer e morrer. Sugere-se, aos voluntários, um acompanhamento profissional, de modo a identificar qualquer necessidade. Recomenda-se que o trabalho voluntário seja acompanhado por profissionais da área de saúde mental.
As vivências dos participantes deste estudo, voluntários da brinquedoteca, revelaram uma das facetas do trabalho voluntário com crianças com câncer. Entretanto, a instituição acolhe outros voluntários que desenvolvem atividades em outras áreas, nem sempre em contato direto com as crianças, o que sugere novas pesquisas com voluntários.