versão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.32 supl.2 Rio de Janeiro 2016 Epub 03-Nov-2016
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00154015
A partir da segunda metade da década dos anos 2000, as empresas de planos e seguros de saúde no Brasil assumiram feição nitidamente financeira e a presença de seus representantes nos centros de decisão governamental tornou-se frequente e visível. Certamente, o fenômeno não é singular, mantém conexões com a emergência do regime pós-fordista, globalização da produção e reflete processos de reorganização de corporações empresariais, disseminadas em diferentes contextos nacionais 1. Processos de concentração de mercado de empresas que atuam no setor de planos e seguros também não são tão recentes, ocorreram nos anos 1990 nos Estados Unidos 2. Contudo, o exame das especificidades decorrentes da inserção das empresas de planos privados no sistema nacional de saúde é relevante para subsidiar reflexões sobre as tensões entre o Sistema Único de Saúde (SUS) e o setor privado de planos e cuidados à saúde.
As relações entre as empresas de planos de saúde com os setores financeiros acompanharam a inflação persistente, que nos anos 1990 inflou atividades financeiras, tal como em diversas áreas da economia 3. Posteriormente, as empresas de planos de saúde contribuíram para a expansão dos empreendimentos financeiros. Os fundos de private equity, constituídos por gestores de fundos independentes, liderados por bancos de investimentos e fundos de pensão 4, e a abertura de ações na Bolsa de Valores brasileira viabilizaram a capitalização das empresas de planos de saúde 5.
A literatura sobre a origem e expansão de grupos de profissionais de saúde, quase sempre médicos, assinalou distintas alternativas para comercializar esquemas assistenciais de pré e pós-pagamento, inicialmente junto a empresas empregadoras e posteriormente para indivíduos e famílias. As primeiras pesquisas sublinharam mudanças na natureza empresarial e nas relações com órgãos públicos das empresas pioneiras (1960-1980) 6), (7. Trabalhos subsequentes foram dedicados a examinar aquelas que se mantiveram atuantes ou foram criadas no mesmo período de debates e início da implementação do SUS (1988-2000) 8), (9), (10. Embora os trabalhos consultados ressaltem alterações na escala territorial e aumento do número dos contratos 8, o que parece demarcar a situação atual dos planos privados é a magnitude dos negócios que os conduziram a ocupar posições entre os maiores grupos empresariais do país e o protagonismo de suas lideranças na formulação da agenda das políticas de saúde.
Considerando a necessidade de investigar as relações entre a expansão do setor privado assistencial e as políticas de saúde, este trabalho procura examinar a trajetória das empresas de planos de saúde, por meio da periodização de atributos da oferta e demanda e exame de alterações patrimoniais recentes de um dos grandes grupos do setor. Assim, o texto articula-se em torno da sistematização de estruturas societárias e inserção político-institucional pretéritas, e da análise de um caso que permite uma aproximação às estratégias de acumulação contemporâneas. Seu objetivo precípuo é situar as atuais características de empresas de planos de saúde vis-à-vis seus percursos históricos.
Os principais limites do estudo consistem nas dificuldades para adequar referenciais conceituais elaborados à apreensão de processos econômicos e contextos globais à compreensão de ocorrências singulares e à heterogeneidade dos grupos empresariais que atuam na comercialização de planos de saúde. Outras restrições decorrem das dificuldades de obtenção de informações sobre a estrutura societária das empresas. A conjugação de ambos os obstáculos dificulta objetivamente compreensão dos processos de expansão da privatização dos cuidados à saúde.
O esforço inicial para encontrar referenciais adequados ao exame de alterações nos regimes de acumulação de empresas de planos de saúde e organização de uma base empírica embrionária, não permite responder às perguntas acerca das consequências sobre o SUS da afinidade das empresas aos expedientes de financeirização. A indagação fica apenas enunciada, para ser devidamente equacionada requer a realização de pesquisas mais abrangentes.
O trabalho está fundamentado em aportes teóricos da área de saúde coletiva e análises recentes sobre processos de financeirização e dominância financeira internacionais e nacionais, especialmente aqueles que enfocam os reflexos da dominância financeira nas políticas sociais. Trata-se de um estudo exploratório, baseado na literatura e na sistematização de informações coletadas em fontes oficiais, empresariais e nas mídias comerciais e especializadas.
O eixo do estudo é a forma de organização societária e os processos de valorização do capital das empresas de planos de saúde em duas circunstâncias políticas e econômicas distintas. O contexto que originou as empresas durante a ditadura civil-militar e os dez primeiros anos de implementação do SUS. Para compor um quadro sobre as características das empresas em ambos os períodos, considerando oferta, demanda e legislação, recorreu-se aos conceitos mobilizados por Donnangelo 11 de propriedade/proprietário e Cordeiro 7 de empresas médicas e grupos médicos, e a outras publicações científicas, relatórios de pesquisas e levantamento das normas oficiais, inclusive tributárias, pertinentes.
Para descrever a trajetória de aceleradas mudanças no perfil do grupo empresarial foram mobilizados os conceitos de financeirização e regime de acumulação. Financeirização é um padrão de acumulação no qual os lucros provêm sobretudo de canais financeiros, conformando um regime de acumulação que nos países desenvolvidos decorre do declínio da lucratividade das atividades produtivas e combina a expansão do crédito para preservar o consumo em face da estagnação do valor real dos salários 12.
As práticas empresariais de aproximação ao regime de acumulação financeirizado incluem uma ampla gama de estratégias, tais como: a redistribuição dos lucros e dividendos entre empregados e acionistas; a introdução de medidas de performance, tais como retorno sobre o patrimônio; fusões e aquisições e terceirizações 13. Um relevante enfoque dos estudos sobre financeirização, o comportamento empresarial, o constructo discursivo, expresso em estratégias gerenciais intencionais para celebrar aquisições financeiras divulgadas como positivas 14, não foi considerado na análise realizada. Embora exista uma pesquisa que enfoca as mudanças nos discursos e valores de empresários do setor planos de saúde 15, seus resultados não poderiam ser facilmente transpostos a casos específicos.
Os critérios para selecionar a empresa de planos de saúde Amil foram sua dimensão em termos setoriais e destaque entre as maiores do país, e a adoção de algumas estratégias de financeirização consignadas na literatura. Em 2014, considerando o valor dos ativos, a Amil foi classificada como a maior empresa de planos de saúde 16 e ocupou o 22º lugar no ranking das maiores empresas brasileiras 17. Seu processo de expansão empresarial envolveu a abertura de ações na Bolsa de Valores, aquisições e aproximação com investidores estrangeiros.
Para recompor a trajetória da Amil foram consultados balanços e relatórios empresariais, informes da Bolsa de Valores, publicações especializadas, trabalhos científicos e publicações da mídia. A compilação, embora exaustiva, certamente não está completa. Os registros das empresas nas juntas comerciais são de difícil acesso, os relatórios empresariais são sintéticos e genéricos, quando voltados para a divulgação ou expostos como balanços contábeis, cuja interpretação exige conhecimentos especializados. Portanto, a busca e a forma de expressar as informações obtidas procurou equilibrar a necessidade de conferir amplitude e precisão aos resultados, tendo como referência possíveis desdobramentos sobre o sistema de saúde e não a avaliação do desempenho empresarial.
A trajetória das empresas de planos e seguros de saúde pode ser subdividida em três ciclos. O primeiro é demarcado pelas relações entre as políticas previdenciárias voltadas à proteção de trabalhadores especializados e o surgimento das empresas pioneiras entre os anos 1960 e 1980. O segundo se estende dos anos 1990 até os anos 2000, e tem como marcas a comercialização de planos empresariais e individuais no contexto de implementação do SUS. O período mais recente caracteriza-se pela presença de empresas cuja origem do capital é internacional e que desempenham atividades de intermediação financeira.
Os convênios-empresa, estabelecidos entre a Previdência Social e empresas empregadoras, a partir de 1965, percebidos como expedientes patronais para diminuir o tempo de não trabalho devido ao adoecimento, estimularam o surgimento de duas modalidades de empresas de planos de saúde: medicinas de grupo e cooperativas médicas 7. As primeiras também foram predominantemente conformadas por organizações não lucrativas. Consequentemente, a natureza jurídica, embora formalmente distinta, não as caracterizava adequadamente. A principal diferença era o local de origem dos médicos (serviços de saúde do trabalhador, hospitais geralmente públicos ou entidades profissionais) e a associação de médicos com vendedores de títulos de hospitais filantrópicos.
As polêmicas em torno da abrangência dos direitos promulgados pela Constituição Federal de 1988 18, dificuldades objetivas de implementação do SUS 19, e incentivos governamentais indiretos, como deduções e subsídios fiscais, e, diretos, como financiamento de planos privados para servidores públicos e empregados de estatais, propiciaram a expansão de algumas empresas pioneiras, bem como o ingresso de proprietários de hospitais privados no mercado de planos de saúde. No inicio dos anos 1990, as seguradoras, ou seja, instituições do setor financeiro, passaram a atuar no ramo saúde.
As Tabelas 1 e 2 sistematizam as características da organização das demandas e da oferta de planos de saúde nos dois primeiros ciclos. As principais diferenças entre o perfil empresarial são relacionadas com o regime de financiamento tanto da demanda quanto da oferta, aquisição ou ampliação de estabelecimentos hospitalares e diversificação de atividades, ainda que no âmbito de benefícios a trabalhadores (como o vale alimentação) ou créditos voltados precipuamente para médicos.
Tabela 1: Características das empresas de planos e seguros de saúde no Brasil entre os anos 1960 e 1980.
Tabela 2: Características das empresas de planos e seguros de saúde no Brasil entre os anos 1980 a 2000.
Os convênios-empresa foram firmados concomitantemente à repressão da participação política e sindical, e expressaram uma política de transferência dupla ao setor privado de atribuições da Previdência Social: as empresas empregadoras tornaram-se responsáveis pela atenção à saúde e estas, especialmente as localizadas em São Paulo e no Rio de Janeiro, delegaram a empresas médicas as atribuições do atendimento.
Proprietários de empresas pioneiras assessoraram a formulação da legislação de privatização da assistência médica previdenciária 7. Políticas específicas para os trabalhadores especializados, considerados como um asset a ser estabilizado 20, visaram a responder à percepção negativa sobre os problemas de acesso e qualidade da assistência médica da Previdência Social, especialmente após a unificação dos institutos de aposentadoria e pensões, e a convicção dos dirigentes nomeados pela ditadura civil-militar sobre a ineficiência dos serviços públicos 21.
As empresas pioneiras basearam sua organização no autofinanciamento, na cotização de médicos e expandiram clientelas impulsionadas por repasses fixos (per capita) da Previdência Social. Foram criadas com base em estruturas físicas ambulatoriais ou, já nos anos 1970, hospitalares, por médicos-proprietários 11, muitos dos quais também exerciam a prática assalariada em diversos institutos de aposentadoria e pensões, e tiveram de reorganizar sua inserção profissional diante da redução do número de vínculos empregatícios decorrente da unificação.
As clientelas das empresas pioneiras eram constituídas exclusivamente por trabalhadores formais de empresas de setores modernos, as coberturas, frequentemente, excluíam os dependentes diretos. Embora os convênios-empresa tenham se disseminado, não foram adotados por todas as empresas empregadoras. Existiam "convênios" empresa-empresa sem a intermediação da Previdência Social, concretizados mediante a retenção dos recursos públicos previstos para assistência médica usados na organização de esquemas assistenciais próprios 6.
O II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), concebido para imprimir um novo rumo ao desenvolvimento, priorizou o aumento da capacidade energética e da produção de insumos básicos e de bens de capital, procurando deslocar o modelo anterior, vigente durante o período do "milagre" de 1968-1973, cuja prioridade residia nos bens de consumo duráveis. As repercussões das premissas do II PND na saúde foram contraditórias. Os recursos para o Ministério da Saúde aumentaram por referência aos períodos anteriores, e houve incentivos para a criação de espaços institucionais públicos para o planejamento de políticas sociais e execução de projetos de pesquisa 22. Entretanto, os empréstimos a juros subsidiados por meio do Fundo de Apoio Social (FAS) financiaram a ampliação da capacidade instalada hospitalar privada e alavancaram empresas de planos de saúde. Um dos exemplos de expansão empresarial estimulada por investimentos governamentais é o da criação da Amil, a partir da junção de um conjunto de hospitais, que entre 1974 e 1978 quintuplicou o número de leitos 8.
As tensões entre a redemocratização, a promulgação pela Constituição Federal de 1988 de direitos sociais abrangentes, e as pressões por ajuste fiscal e redução dos gastos públicos, em um contexto de desaceleração do crescimento econômico, dificultaram, entre outras consequências, a efetivação do SUS constitucional. A segunda explosão dos preços do petróleo, a decisão dos Estados Unidos, em 1979, de elevar as taxas de juros e fechar o mercado financeiro aos países endividados, bem como a crescente hegemonia do pensamento neoliberal no plano internacional 23, reabriram o debate sobre o papel do Estado e as políticas públicas no Brasil.
O programa de ajuste do Presidente Collor, cujo mandato iniciou em 1990, seguiu os preceitos do tripé: desestatização, desregulamentação e liberalização de preços e salários. Seu discurso de posse explicitou: "O Estado deve ser apto, permanentemente apto a garantir o acesso das pessoas de baixa renda a determinados bens vitais. Deve prover o acesso à moradia, à alimentação, à saúde, à educação e ao transporte coletivo a quantos dele dependam (...)"24.
As críticas à ineficiência dos serviços públicos 25, o racionamento do acesso e os problemas de qualidade da rede pública de cuidados à saúde 26, impulsionaram a oferta de planos e seguros e as demandas de associações de trabalhadores, inclusive de servidores públicos, pela continuidade e extensão das coberturas privadas.
Durante as denominadas décadas perdidas 27, as demandas por planos e seguros de saúde se estenderam das grandes empresas empregadoras às de médio porte, e ainda às associações e sindicatos de servidores públicos e profissionais liberais, e famílias e indivíduos de segmentos de maior renda. O crescimento e a diversificação das atividades das empresas de planos atraíram investidores e investimentos nacionais, e algumas seguradoras internacionais. Contudo, o predomínio do capital de origem nacional foi preservado. A experiência de aquisição da Golden Cross pela empresa americana Cigna não foi bem-sucedida, gerou prejuízos de mais de US$ 400 milhões em função dos problemas da empresa brasileira com o acúmulo de dívidas tributárias e disputas judiciais 28.
A legislação estimulou a ampliação dos planos e seguros privados de saúde. No que se refere aos incentivos para a demanda, houve a substituição do repasse direto de recursos públicos às empresas, uma marca do primeiro ciclo, pelos subsídios indiretos e pagamento de planos de servidores públicos. Ou seja, a mobilização de políticas fiscais conjugada com normas administrativas e inscrição das despesas com planos privados nos orçamentos públicos. Pelo lado da oferta, as principais normas voltaram-se à redução de alíquotas ou isenção de impostos como Imposto sobre Serviços (ISS) 29, contribuições como Programa de Integração Social-Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PIS-Pasep) e Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Confins) 30 e equiparação das seguradoras com as empresas de planos comerciais, no que concerne ao relacionamento com a rede de serviços.
O início da concessão de créditos e empréstimos de longo prazo por bancos estatais a hospitais filantrópicos e privados 15 definiu contornos de um setor com formato capitalista amadurecido. No final dos anos 1990, diversas empresas de planos passaram a nuclear grupos empresariais e as seguradoras ingressaram não apenas no mercado saúde, como também nele se apresentaram como interlocutores relevantes para a formulação de políticas regulamentadoras no processo de debates e aprovação da Lei nº 9.656 de 1998 31. As mudanças na escala de operação de empresas de planos de saúde credenciaram-nas para intermediar as relações entre demanda e os prestadores de serviços de saúde, em condições distintas daquelas vigentes no regime de acumulação baseado no autofinanciamento.
No início do século XXI, foram renovadas as esperanças de recuperação do crescimento e de rearticulação entre as políticas sociais e econômicas em torno de um padrão de desenvolvimento inclusivo. Havia indícios de que condições macroeconômicas mínimas para se viabilizar a expansão sustentada tivessem sido restabelecidas. O aumento dos empregos formais e a distribuição de renda sinalizaram a recuperação da capacidade produtiva e as perspectivas de geração de progresso técnico endógeno 32 e bem-estar social.
Contudo, a crise sistêmica aberta no final dos anos 2000, terminou impondo exigências fiscais e afastamento das funções de dinamizar a demanda efetiva e os lucros produtivos, assim as políticas econômicas tornaram-se vetores fundamentais para a reprodução macroeconômica da riqueza financeira 33. Portanto, os avanços no acesso e uso de cuidados propiciados pelo SUS não limitaram o crescimento do setor privado, inclusive a concorrência por recursos humanos e financeiros públicos 34.
As políticas voltadas à ampliação do consumo dinamizaram não apenas o segmento de crédito popular, como também a comercialização de planos de saúde para os segmentos de renda C e D, a denominada "nova classe média" 35 ou "classe média emergente" 36. Em 2010, a Caixa Econômica Federal anunciou a possibilidade de vender seguro saúde para os segmentos C e D 37. E em 2013, segundo pesquisas realizadas pelo Meireles 38, entre as pessoas vinculadas a planos privados de saúde havia uma correspondência entre o menor tempo de contratação e a menor renda.
A trajetória da empresa Amil, entre 2002 até a venda para a americana UnitedHealth, sugere que a adesão às formas de capitalização, via aquisições, foi uma estratégia que precedeu e manteve-se ativa após a abertura de parte de seu capital na Bolsa de Valores (Tabela 3).
Apesar das mudanças no formato das estruturas societárias, o controle familiar da Amil foi preservado. As mudanças no regime de acumulação da empresa, incluindo a abertura das ações de parte do capital e as aquisições a valorizaram. Entre 2007 e 2012, o número de clientes da principal empresa do grupo, a Amil Assistência Médica Internacional, aumentou de 1.222.617 para 3.496.774 35. No entanto, a ampliação do capital foi bastante superior ao incremento do número de contratos. Em 2012, a Amil foi comprada pela UnitedHealth, a empresa foi avaliada em R$ 10 bilhões ou US$ 6,4 bilhões, e o pagamento correspondeu a 60% do capital de propriedade dos controladores e RS 3,4 bilhões pelas ações na Bovespa 36.
A Tabela 4 apresenta os valores envolvidos na aquisição da Amil pela UnitedHealth, evidenciando o processo veloz de valorização do capital do grupo brasileiro, que pode ser dimensionado tanto em relação ao aumento das ações nominais e especialmente na multiplicação do capital da empresa em moeda nacional e em dólares americanos.
Atualmente, a Amil é uma empresa com capital de origem estrangeira. Seu ex-proprietário continua à frente de empreendimentos na saúde no Brasil. Sete hospitais entre os quais o Hospital 9 de julho em São Paulo, o Hospital de Clínicas de Niterói, a Casa de Saúde Santa Lúcia, no Rio de Janeiro, entre outros, e o DASA pertencem, majoritariamente à família que organizou a Amil. Mantém ainda o cargo de diretor-presidente e presidente do Conselho de Administração da Amil até 2017 e tornou-se o maior acionista individual da UnitedHealth.
Ao contrário do que ocorreu com outros grupos empresariais de planos de saúde, inclusive alguns adquiridos pela própria Amil, as alterações em sua estrutura societária formal não implicaram a retirada dos antigos proprietários da atuação em negócios na saúde. A influência de seu mais destacado líder e fundador parece ter amplificado, como pode ser constatado por sua presença na denominada reunião do "PIB nacional" com o Ministro da Fazenda 39. Embora, o escopo do trabalho não admita avaliações sobre o sucesso ou fracasso dos processos de financeirização, parece plausível inferir que a valorização do capital da empresa tenha aberto circuitos políticos seletos ao grupo empresarial.
A concentração e a recente internacionalização de empresas de planos de saúde, tal como evidenciado pela trajetória da Amil, admite diversas acepções. No sentido mais convencional, o setor de planos e seguros de saúde é altamente concentrado. Em julho de 2015, a Amil mantinha 7,5% do total de contratos de planos de assistência médica. Sob o enfoque regional, 62,5% das empresas estavam sediadas na Região Sudeste 40. Em terceiro lugar, o setor pode ser considerado como regressivo ou concentrado pelo ângulo da renda dos clientes. Observa-se uma associação positiva entre renda familiar e cobertura por planos privados de saúde. Em 2008, 2,6% dos brasileiros estavam vinculados a planos privados na faixa inferior a um salário mínimo, a proporção foi de 4,8% para a faixa de 1 a 2 salários mínimos, 9,4% para os situados na faixa de 2 a 3, 18% na faixa entre 3 e 5, 34,7% na faixa de 5 a 10 salários mínimos e 76% na faixa de 20 salários mínimos e mais (Agência Nacional de Saúde Suplementar. Informações detalhadas ANS tabnet. http://www.ans.gov.br/anstabnet/, acessado em 14/Jul/2015).
A internacionalização das empresas de planos de saúde brasileiras foi prévia à autorização da Lei nº 9.656 de 1998. Similarmente, os investimentos dos fundos nacionais e internacionais em redes hospitalares e de diagnóstico antecederam a legislação que permitiu a participação do capital estrangeiro em atividades assistenciais pela Lei nº 13.097 em 2015. Todavia, operações do porte da aquisição da Amil exigiram respaldo da legislação e parecer da Advocacia Geral da União, sugerindo que as normas legais e suas interpretações são relevantes para assegurar confiabilidade aos investidores estrangeiros. A falta de sincronia entre as práticas empresariais de internacionalização e a legislação sugere uma complacência das autoridades públicas diante de estratégias que anteciparam mudanças nas regras de capitalização.
O regime de acumulação financeirizada das empresas de planos de saúde no Brasil difere do observado nos Estados Unidos. Enquanto a Amil abriu ações na Bolsa de Valores e permaneceu sob estrito controle de seus proprietários fundadores, a UnitedHealth Group não tem controlador definido, seu capital é considerado pulverizado e a administração do grupo empresarial é profissionalizada 41. A compra da Amil envolveu aquisições das ações da UnitedHealth pelo seu ex-principal proprietário, tornando-o, paradoxalmente, o maior investidor individual e único estrangeiro a integrar o conselho de administração do maior grupo empresarial do setor de planos de saúde e informações dos Estados Unidos 42. A preservação do controle proprietário sugere o não acionamento das estratégias de redistribuição dos lucros e dividendos entre trabalhadores, inclusive profissionais de saúde e pequenos investidores individuais.
Embora a expansão das empresas de planos e seguros de saúde tenha ocorrido inclusive nos ciclos econômicos de menor crescimento, é plausível supor uma desaceleração dos investimentos no setor. Em 2012, as expectativas de investidores internacionais como Stephen Hemsley presidente e CEO (chief executive officer) da UnitedHealth eram otimistas.
"O Brasil emergiu como um mercado de crescimento e evolução consistente dos planos e serviços de saúde. Sua economia em crescimento, classe média em ascensão e políticas de estimulo de favorecimento do setor de saúde suplementar o fazem um mercado com alto potencial de crescimento" 41.
No entanto, parte dessas previsões não se confirmou. A conjuntura recessiva, que se anunciou a partir da posse da Presidência da República em 2014, restringiu a ampliação do mercado. Portanto, a reedição e renovação de políticas púbicas de suporte à privatização, inclusive aquelas que estimulam a financeirização, assumem centralidade nas agendas públicas.
Os referenciais conceituais advindos das reflexões sobre financeirização e regime de acumulação, contribuem à compreensão dos processos de reestruturação societária do setor de planos de saúde. Foi possível observar um relativo desacoplamento entre a valorização do capital de uma empresa que comercializa planos de saúde e o número de seus clientes. No entanto, essa constatação não admite inferências para outros grupos econômicos ou empresas do setor, nem mesmo para cada empresa integrante da Amil, na medida em que não houve detalhamento do desempenho de cada uma, inclusive daquelas envolvidas com a prestação de serviços como hospitais e estabelecimentos de diagnóstico.
O Brasil participa da história da financeirização do capitalismo desde o seu início, quer em função das demandas expressivas por crédito, quer por sua condição de potência emergente, na qual foram viabilizados, graças às altas taxas de juros, retornos elevados. Assim, a inserção na economia mundial impôs uma racionalidade financeira à parcela do empresariado e promoveu os setores rentistas nacionais. As empresas de planos de saúde, consolidadas no final do século XX, tornaram-se uma plataforma de investimentos financeiros no início do novo século.
As evidências sobre a importância das políticas públicas para a expansão dos diferentes regimes de acumulação das empresas de planos de saúde ‒ o autofinanciamento, o dependente da escala das operações de intermediação entre oferta e demanda por assistência médico-hospitalar e o financeirizado ‒ são notórias e reconhecidas até por investidores estrangeiros. O descompasso entre o crescimento dos planos de saúde e a economia pode ser justificado por duas ordens de razões. A primeira, que é a mais difundida, remete ao anseio da população por garantia de acesso e uso de serviços. A segunda, mesmo que ainda pouco estudada, concerne ao painel de normas legais de suporte ao setor privado e ainda às concepções de autoridades públicas sobre a inexorabilidade e por vezes virtuosidades da segmentação do sistema de saúde no Brasil.
A tentativa de abrir a caixa-preta da esfera financeira de um setor voltado a cuidar da saúde é um desafio considerável, implica esquadrinhar espaços financeiros internacionais, examinar a lógica interna da adesão às estratégias de financeirização e mapear tensões e conflitos entre agentes sociais e, compreender a gênese e o curso das políticas que tecem o pano de fundo para viabilizar mercados, especialmente para evitar interpretações alicerçadas em previsões abstratas.
Portanto, o esforço para sistematizar uma parte do fenômeno que incide sobre empresas brasileiras que atuam no setor assistencial de saúde não é conclusivo. Apesar das tentativas de contornar lacunas conceituais e metodológicas, imprecisões decorrentes das fontes de informações e mescla de abordagens conferem ao trabalho um caráter descritivo e necessariamente provisório, seu principal mérito é a identificação de pistas para novas investigações.