versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.108 no.3 São Paulo mar. 2017
https://doi.org/10.5935/abc.20170040
De 1º a 10 de maio de 1997, realizou-se, na cidade de Gramado (RS), o Primeiro Seminário Brasileiro de Epidemiologia Cardiovascular,1 nos moldes em que a Federação Mundial de Cardiologia vinha promovendo em várias partes do mundo desde 1968 com o título Seminários Didáticos Internacionais de Dez Dias sobre Epidemiologia Cardiovascular e Prevenção.2
A iniciativa partiu da Assessoria Científica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do Departamento de Cardiologia Clínica e do Comitê de Epidemiologia e Saúde Pública da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), sob patrocínio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), da World Heart Federation (na época ainda chamada International Society and Federation of Cardiology) e da Fundação Interamericana do Coração.
Junto aos dois coordenadores, Aloyzio Achutti e Bruce Duncan, vários professores nacionais (Annick Fontbonne, Eduardo de Azeredo Costa, Emílio Moriguchi, Jorge Pinto Ribeiro, Maria Inês Reinert Azambuja, Maria Inês Schmidt, Paulo Lotufo, Rosely Sichieri e Sérgio Bassanesi), e três convidados internacionais (Teri Manolio, Diretor de Epidemiologia e Biometria do National Heart, Lung and Blood Institute; Ulrich Grueninger, chefe de Pesquisa e Educação Médica do Swiss Federal Office of Public Health; e Woody Chambless, do Departamento de Bioestatística da University of North Carolina) ministraram as atividades. Os 40 participantes eram de 10 Estados brasileiros.
Além de conceitos básicos de epidemiologia e estatística, e de tópicos relacionados à etiologia e à prevenção das doenças cardiovasculares, fizeram parte do programa temas que, embora atualmente consagrados, eram novos no Brasil naquele momento, como medicina baseada em evidências e revisão sistemática/metanálise. Em época do início da implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) e da preocupação com as doenças crônicas não transmissíveis como problema de saúde pública, este encontro singular capacitou e incentivou líderes brasileiros no campo de prevenção cardiovascular − vários dos quais posteriormente assumiram posições de liderança nacional. Houve amplo debate e, desde o primeiro dia, dedicou-se um tempo para a elaboração de um documento que apresentou três diferentes perspectivas de prevenção: individual, local e populacional. Este documento recebeu a denominação de Declaração de Gramado3 e teve ampla divulgação nacional e internacional.
Para a consolidação do documento, foi realizada uma discussão pela internet, por meio de e-mail − o qual, naquela ocasião, era usado por somente 23 dos participantes. A partir desta experiência, com mensagens que começavam com a saudação "prezados amigos do coração", teve início um grupo social que foi denominado AMICOR, por sugestão de Eduardo de Azeredo Costa.4 No decorrer do tempo, criou-se um site, e a designação AMICOR também foi utilizada pela ProCOR, lançada 2 meses depois, durante a Terceira Conferência Internacional sobre Cardiologia Preventiva, por iniciativa do Professor Bernard Lown (Boston, Estados Unidos). O nome AMICOR também foi adotado durante algum tempo pela SBC em seu site, com o nome de ProCOR/AMICOR, e posteriormente em 2004, como um blog de nome AMICOR.
De lá para cá, muita coisa aconteceu, em termos de saúde pública brasileira. No entanto, a doença isquêmica do coração se mantém como principal causa de morbimortalidade no Brasil,5 e as desigualdades sociais continuam tendo enorme impacto direto na mortalidade precoce por doenças cardiovasculares em nosso país.6-8 Em pleno início de 2017, quando a Declaração de Gramado completa 20 anos, algumas mazelas que acometem a saúde pública brasileira evidenciam que há muito a ser feito a curto, médio e longo prazo, para enfrentar com maior êxito a carga avassaladora da doença cardiovascular no Brasil.
Por outro lado, como já estava evidente no Seminário e é cada vez mais claro hoje, na maioria das vezes, as doenças cardiovasculares podem ser prevenidas por ações de saúde pública que envolvem o controle de fatores de risco, assim como pelo manejo clínico otimizado dos pacientes. Ao se conferir o site do Global Burden of Disease, observa-se que a mortalidade padronizada pelas doenças cardiovasculares no Brasil de 1995 para 2015 caiu 36%.9 Cálculos recentes utilizando metodologia levemente diferente sugerem até declínio maior − acima de 2% ao ano.10 Esta redução pode ser observada em diferentes estudos brasileiros, em vários contextos e faixas etárias.11-15
Atribuir causas para mudanças na incidência da doença ao nível populacional é sempre difícil. No entanto, melhoras como as que foram vistas certamente são em parte resultado de milhares de pequenos avanços decorrentes de múltiplas ações e atores no setor de saúde. Gostaríamos de considerar que o Seminário de Gramado, realizado no já longínquo ano de 1997, foi uma destas ações e que pode ter contribuído para os avanços de impacto prático vistos na saúde cardiovascular da população.
A redução das doenças cardiovasculares no Brasil e no mundo é uma tarefa complexa, que depende de inúmeros agentes e de um esforço continuado. Assim, em 2012, foi publicada, nos Arquivos Brasileiros de Cardiologia a "Carta do Rio de Janeiro",16 elaborada sob os auspícios da SBC durante o III Brasil Prevent/I América Latina Prevent, referendando a meta global de redução de 25% na mortalidade precoce por doenças não transmissíveis até 2025, estabelecida na World Health Assembly (WHA). A carta foi assinada pela SBC, Sociedad Interamericana de Cardiologia, American Heart Association, European Society of Cardiology e World Heart Federation, e avançou em estabelecer deliberações de ações concretas para atingir metas globais.
Entre estas deliberações, muitas já podiam ser observadas como fundamentais desde a Declaração de Gramado, como "Implementar ações para aquisição de informação epidemiológica, incluindo mortalidade e morbidade cardiovascular, execução e manutenção de registros já existentes em alguns dos signatários, visando o desenvolvimento de estratégias que promovam o planejamento das ações de saúde" e "Criar um fórum internacional de discussão permanente para monitorar as ações voltadas para prevenção, diagnóstico e tratamento dos fatores de risco cardiovascular na América Latina", do qual o grupo AMICOR poderia ser considerado um embrião.
Como consta no final da Declaração do Gramado:3 "Por fim, mesmo tendo em vista os enormes avanços científicos e tecnológicos já alcançados ou em perspectiva na cardiologia, é cada vez mais necessária a construção de um paradigma de saúde e doença que viabilize o benefício de tais conquistas a toda a população. Para tanto, se fazem necessárias uma reforma na educação médica e na educação dos demais profissionais da saúde, paralelamente a uma ampla discussão na qual participe a cultura popular, contribuindo para a evolução do modelo assistencial, do tradicional biomédico, para o biopsicosocial, com ênfase na saúde e não somente na doença".
Assim, cabe a todos nós manter a mobilização por uma prevenção cardiovascular efetiva e baseada em evidências, considerando os valores da sociedade. Ações como a do Seminário Brasileiro, com discussão profunda de tópicos relevantes e objetivos estratégicos, podem se multiplicar e ter impacto significativo no longo prazo.