versão impressa ISSN 2359-4802versão On-line ISSN 2359-5647
Int. J. Cardiovasc. Sci. vol.31 no.4 Rio de Janeiro jul./ago. 2018 Epub 21-Maio-2018
http://dx.doi.org/10.5935/2359-4802.20180025
A vitamina D, quarta vitamina a ser descrita, foi inicialmente caracterizada como um fator capaz de curar o raquitismo, doença caracterizada por desmineralização óssea e deformidades esqueléticas.1
Atualmente, a vitamina D engloba um grupo de moléculas secosteroides derivadas do 7-deidrocolesterol (7-DHC), onde há o metabólito ativo (1α,25-di-hidroxivitamina D ou calcitriol), seus precursores (colecalciferol ou vitamina D3, ergocalciferol ou vitamina D2 e a 25-hidroxivitamina D ou calcidiol), bem como seus produtos de degradação.2 Essas moléculas, em conjunto com suas proteínas carreadoras e receptores, formam um importante eixo metabólico: o sistema endocrinológico da vitamina D.3
A vitamina D ativa apresenta um papel fundamental na regulação da fisiologia osteomineral, em especial no metabolismo do cálcio e do fósforo. Ela está também envolvida na homeostase de vários outros processos celulares, tais como a modulação da autoimunidade e síntese de interleucinas inflamatórias,4 controle da pressão arterial5 e participação nos processos de multiplicação e diferenciação celular.6 O espectro de ação da vitamina D é tão amplo que estudos com microarranjos mostram que a 1α,25-di-hidroxivitamina D tem mais do que 900 genes-alvos potenciais, correspondendo a cerca de 3% do genoma humano.7
Estudos epidemiológicos têm constatado que uma parcela significativa da população mundial, independente de idade, etnia e localização geográfica, apresenta baixos níveis séricos de vitamina D,8 como ilustra a Figura 1. Alguns países chegam a apresentar taxas de deficiência de vitamina D superiores a 50%, como observado no Brasil, Dinamarca e Alemanha.
Figura 1 Prevalência mundial da deficiência de vitamina D em adultos.Adaptado de: Palacios C, Gonzalez L. Isvitamin D deficiency a major global public health problem? J Steroid Biochem Mol Biol. 2014 October; 144PA: 138-145. doi:10.1016/j.jsbmb.2013.11.003.
Pesquisas recentes têm associado níveis séricos inadequados de vitamina D com diversas doenças não relacionadas com o sistema musculoesquelético, tais como câncer (cólon, próstata e mama), doenças autoimunes e inflamatórias (esclerose múltipla, doença de Crohn), depressão e doenças cardiovasculares (DCVs), como hipertensão arterial (HAS), doença arterial coronariana (DAC) e insuficiência cardíaca (IC).9
O objetivo deste trabalho foi revisar a fisiopatologia da vitamina D, descrever sua relação com as DCVs com base nas publicações mais recentes e destacar os resultados da suplementação vitamínica na prevenção de tais patologias.
Nos seres humanos, apenas 10% a 20% da vitamina D provém da dieta, sendo os 80% restantes sintetizados endogenamente.10 Poucos são os alimentos que apresentam quantidades significativas dessa vitamina, dos quais os principais estão listados na Tabela 1.
Tabela 1 Algumas fontes alimentares de vitamina D. Adaptado da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia11
Alimento | Porção | Quantidade de vitamina D por porção |
---|---|---|
Salmão selvagem | 100 g | 600 - 1.000 UI de vitamina D3 |
Salmão de criação | 100 g | 100 - 250 UI de vitamina D3 |
Sardinha em conserva | 100 g | 300 UI de vitamina D3 |
Cavala em conserva | 100 g | 250 UI de vitamina D3 |
Atum em conserva | 100 g | 230 UI de vitamina D3 |
Óleo de fígado de bacalhau | 5 mL | 400 - 1.000 UI de vitamina D3 |
Gema de ovo | 1 unidade | 20 UI de vitamina D3 |
Cogumelos frescos | 100 g | 100 UI de vitamina D2 |
Cogumelos secos ao sol | 100 g | 1.600 UI de vitamina D2 |
A estrutura molecular das vitaminas D2 e D3 é muito semelhante. O ergocalciferol difere do colecalciferol por possuir uma dupla ligação entre os carbonos 22 e 23 e um grupo metil no carbono 24, como mostra a Figura 2. Ambos são sintetizados por intermédio da energia proveniente da fotólise (radiação solar) sobre os seus precursores: ergosterol (vitamina D2) e 7-DHC (vitamina D3). Após a ingestão pelo homem, ambas seguem a mesma via de metabolização no fígado para dar origem à 25-hidroxivitamina D.11
Figura 2 Moléculas de vitamina D2 e D3, com a diferença do grupo metil (CH3) presente na primeira e ausente na segunda (setas).Extraído de: Peixoto PV et al. Hipervitaminose D em animais. Pesq. Vet. Bras. 32(7):573-594, julho 2012.
A síntese endógena da vitamina D inicia-se nas camadas profundas da epiderme, onde o precursor 7-DHC está armazenado na camada bilipídica das membranas celulares. A radiação ultravioleta B (UVB) promove a fotólise do 7-DHC levando à formação de uma molécula secosteroide, a pré-vitamina D3. Esta é termoinstável e sofre reação de isomerização induzida pelo calor, convertendo-se na vitamina D3. A melanina da pele compete pelo fóton de radiação, diminuindo a disponibilidade de fótons para fotólise do 7-DHC, daí a observação de níveis mais baixos de vitamina D em negros.11
Ao atingir o fígado, as vitaminas D2 e D3 sofrem hidroxilação pelo citocromo P450 e dão origem à 25-hidroxivitamina D, que é a forma predominante na circulação. No sangue, cerca de 85 a 90% da 25-hidroxivitamina D se encontra ligada à proteína ligadora de vitamina D (VDBP), 10 a 15% se encontra ligada à albumina e o restante, menos de 1%, circula na forma livre. Na literatura, há poucos dados sobre a biodisponibilidade da vitamina D ligada à albumina, portanto, a expressão “biodisponibilidade da vitamina D” é utilizada para a forma da 25-hidroxivitamina D que não está ligada à VDBP.12
Ao atingir os tecidos-alvos, a 25-hidroxivitamina D é convertida pela enzima 1α-hidroxilase em 1α,25-di-hidroxivitamina D, que é a forma metabolicamente ativa da vitamina.
Os efeitos da 1α,25-di-hidroxivitamina D são mediados pelo seu receptor VDR, que pertence à família de receptores nucleares 1. Tanto a enzima 1α-hidroxilase quanto o receptor VDR são encontrados em quase todas as células humanas, inclusive nos cardiomiócitos13 e nas células musculares lisas vasculares.14 Modelos experimentais com ausência de VDR possibilitam o entendimento da atividade tissular específica do receptor. Como exemplo, a ausência de VDR resulta em aumento da massa ventricular, aumento dos níveis de peptídeo natriurético tipo B (brain natriuretic peptide, BNP) e desregulação das metaloproteinases cardíacas e dos fibroblastos, promovendo uma matriz extracelular fibrótica e levando à dilatação ventricular e desacoplamento eletromecânico.15 Após ligação da vitamina D ao VDR, o complexo formado promove a ativação ou a supressão gênica, com o auxílio de proteínas corregulatórias. Por outro lado, o VDR também apresenta respostas rápidas não genômicas pela indução de canais de cálcio voltagem-dependentes, levando a um aumento do influxo celular de cálcio e ativação de outros mensageiros, como o AMP cíclico, a proteína quinase A e a fosfolipase C.16
A diretriz americana para avaliação, prevenção e tratamento da deficiência de vitamina D17 estabelece que o estoque corporal dessa vitamina seja mensurado através da dosagem sérica da 25-hidroxivitamina D com os seguintes pontos de corte: (i) deficiência, quando menor ou igual a 20 ng/mL, (ii) insuficiência, quando entre 20 e 30 ng/mL e (iii) suficiência, quando maior que 30 ng/mL.
Alguns fatores de risco para a hipovitaminose D vêm sendo observados e estão relacionados com a exposição solar, hábitos alimentares e absorção intestinal. Assim, destacam-se: estilo de vida indoor (privação de sol), uso de protetores solares, idade avançada, distância do Equador, pele negra, poluição do ar, tabagismo, má-absorção alimentar (síndromes disabsortivas), medicamentos (anticonvulsivantes, glicocorticoides) e doença renal e hepática.10,17
Apesar da elevada prevalência da deficiência de vitamina D na população adulta e das crescentes evidências de sua associação com as DCVs, as diretrizes americana e brasileira recomendam que não seja realizada mensuração rotineira dos níveis séricos de 25-hidroxivitamina D na população geral, apenas nos pacientes pertencentes a populações consideradas de risco para esta hipovitaminose.10,17
Embora inúmeros trabalhos tenham confirmado uma associação entre vitamina D e DCV, uma relação de causa-efeito entre ambas permanece sem esclarecimento.
Nesta revisão, abordaremos a associação da deficiência da vitamina D com as principais patologias cardiovasculares e, posteriormente, analisaremos alguns resultados com a reposição vitamínica.
A associação da deficiência de vitamina D com a HAS tem sua base no sistema renina-angiotensina-aldosterona (SRAA). A renina é sintetizada pelas células justaglomerulares renais e estimula a produção de angiotensina II (a partir da angiotensina I) e aldosterona, que aumentam a pressão arterial (PA) diretamente por vasoconstrição e indiretamente por retenção hidrossalina.18 Uma ativação aumentada inapropriada do SRAA tem sido reportada em estudos com camundongos knockout em VDR e 1α-hidroxilase.19 A vitamina D atua inibindo a expressão gênica da renina, diminuindo sua síntese e, com isso, impedindo a hiperestimulação desse sistema.20
O Third National Health and Nutrition Examination Survey (NHANES-III),21 um amplo estudo populacional que analisou uma amostra de 12.644 americanos, mostrou que a PA sistólica e a pressão de pulso correlacionam inversamente com níveis de 25-hidroxivitamina D. Esses resultados foram confirmados por análises de subgrupos, nos quais aumentos na PA associados à idade foram significativamente menores em indivíduos suficientes em vitamina D.22 A prevalência de HAS também foi associada com deficiência de vitamina D em outros estudos amplos como o German National Interview and Examination Survey23 e o British Birth Cohort.24 Um estudo realizado no Brasil com 91 idosos hipertensos mostrou que a concentração sérica de 25-hidroxivitamina D esteve inversamente associada com a PA e positivamente associada com a frequência semanal de consumo de peixes.25
Poucos estudos prospectivos têm avaliado a associação entre vitamina D e mudanças na PA ou surgimento de HAS. Em 2015, van Ballegooijen et al.26 acompanhou 5.066 pessoas sem HAS da cidade holandesa de Groningen que tiveram nível sérico de vitamina D mensurado e que foram seguidas por 6,4 anos. Ao final do seguimento, 1.036 (20,5%) desenvolveram HAS e, como esperado, baixos níveis de vitamina D foram associados com maior risco de desenvolvimento da doença.26
O diabetes tipo 1 decorre da destruição autoimune das células beta pancreáticas levando à deficiência completa da produção de insulina. Já para o desenvolvimento de diabetes tipo 2, os principais mecanismos envolvidos são disfunção das células beta, resistência periférica à insulina e inflamação sistêmica. Há evidências de que a deficiência de vitamina D esteja relacionada com todos estes processos.27
A vitamina D pode atuar na função das células beta por ligação direta aos receptores VDR e pela expressão local da enzima 1α-hidroxilase. A vitamina D pode aumentar a sensibilidade à insulina por estimulação da expressão de VDR nos tecidos periféricos e ativação dos receptores PPAR (receptores ativados por proliferadores de peroxissomos), fator este implicado na regulação do metabolismo de ácidos graxos nos músculos esqueléticos e no tecido adiposo. Por outro lado, a vitamina D também pode atuar por vias indiretas na secreção e na sensibilidade da insulina através da regulação da concentração e do fluxo de cálcio nas membranas das células beta e nos tecidos periféricos.27
Estudos observacionais evidenciaram que a incidência e a prevalência de diabetes tipo 1 são mais elevadas nos países de maior latitude e que a doença é mais frequentemente diagnosticada nos meses de inverno.28 Alguns estudos têm relacionado o déficit de vitamina D em gestantes com a incidência de diabetes tipo 1 nas crianças após o nascimento.29 Outros estudos avaliaram o papel protetor da suplementação de vitamina D na infância precoce contra o desenvolvimento de diabetes tipo 1, evidenciando menor incidência da doença naquelas crianças que fizeram suplementação da vitamina.30
Com relação à resistência insulínica e ao diabetes tipo 2, os resultados têm sido conflitantes. Alguns estudos têm associado baixas concentrações de 25-hidroxivitamina D com resistência insulínica e disfunção de células beta pancreáticas em populações ocidentais.31 Ao estudarem 1.807 indivíduos coreanos saudáveis, Ock et al.,32 relataram recentemente que a vitamina D apresenta uma associação inversa com resistência insulínica.32 Avaliando a relação entre hipovitaminose D, diabetes e DAC, Nardin et al.,33 avaliaram 1.859 pacientes submetidos a angiografia eletiva para pesquisa de coronariopatia e concluíram que o diabetes não é um preditor independente de hipovitaminose D, porém pacientes diabéticos com deficiência de vitamina D apresentaram maior prevalência e severidade de DAC.33 Em estudo recente, Schafer et al.,34 seguiram mais de 5.000 mulheres idosas por 8,6 ± 4,4 anos com o objetivo de investigar uma possível relação entre os níveis de vitamina D e surgimento de diabetes tipo 2; os autores concluíram que os níveis séricos de vitamina D não foram preditores independentes de incidência de diabetes tipo 2 nesta população.34
Evidências recentes apontam que a deficiência de vitamina D está associada com a obesidade e com outros componentes da síndrome metabólica.35
Baixos níveis de 25-hidroxivitamina D são comuns em indivíduos obesos, e muitos estudos têm evidenciado uma relação inversa entre os níveis séricos de vitamina D e o índice de massa corporal (IMC).36 A vitamina D também tem sido associada com a distribuição de gordura regional, e níveis elevados da vitamina têm sido associados com menor quantidade de gordura visceral e subcutânea.37 Algumas explicações propostas para essa associação são: diferenças na ingestão dietética entre indivíduos obesos e não obesos, menor exposição solar entre indivíduos obesos, menor biodisponibilidade da vitamina D na obesidade e metabolismo da vitamina D alterado em indivíduos obesos.38
Wortsman et al.,39 propuseram a hipótese do sequestro de vitamina D no tecido gorduroso para explicar a prevalência de baixos níveis dessa vitamina em indivíduos obesos.39 Eles demonstraram que indivíduos obesos apresentavam menores incrementos séricos de 25-hidroxivitamina D quando comparados a indivíduos não obesos sob as mesmas condições de exposição solar e ingestão vitamínica. Como a vitamina D é lipossolúvel, os autores propuseram que a vitamina deveria se acumular no tecido adiposo e não estar prontamente disponível na circulação, o que levaria a níveis séricos reduzidos da vitamina.
Por outro lado, Drincic et al.,40 sugeriram que a diferença nos níveis séricos de vitamina D entre obesos e não obesos estaria relacionada ao volume de distribuição da vitamina, o qual é maior nos indivíduos obesos e que justificaria os níveis séricos mais baixos nestes indivíduos.40
O tabagismo é um fator de risco para DCV e inflamação sistêmica, e a vitamina D tem sido associada com ambas estas condições. Lee et al.,41 estudaram 560 indivíduos coreanos com 60 anos ou mais, com o objetivo de investigar a associação entre vitamina D e marcadores inflamatórios e avaliar se essa associação muda de acordo com o perfil tabágico desses pacientes.41 Os autores observaram que há uma associação significativa entre deficiência de vitamina D e proteína C reativa de alta sensibilidade (PCR-US) e que o tabagismo exerce um efeito modificador nessa associação, onde indivíduos fumantes têm uma associação mais forte entre deficiência de vitamina D e PCR-US que indivíduos não fumantes.41
Com o objetivo de relacionar características de estilo de vida com a deficiência de vitamina D, Skaaby et al.,42 realizaram um estudo longitudinal com 4.185 indivíduos com um tempo de seguimento de 5 anos. Neste estudo, análises multivariadas de mensurações séricas repetidas de 25-hidroxivitamina D foram utilizadas para avaliar a associação da deficiência vitamínica com IMC, prática de atividade física, tipo de dieta (mais saudável versus menos saudável), consumo de álcool e tabagismo. Como resultados, níveis séricos mais baixos de vitamina D foram associados com maior IMC, menor nível de atividade física, consumo de dieta menos saudável, maior consumo de álcool e tabagismo.42
A DAC tem sido associada à deficiência de vitamina D, porém os mecanismos fisiopatológicos dessa associação ainda não estão bem compreendidos. As principais evidências que sugerem tal associação são o fato do VDR estar presente tanto no miocárdio quanto nas células vasculares e a demonstração por estudos epidemiológicos de que a incidência tanto da DAC quanto da hipovitaminose D aumenta nos meses de inverno e nos países mais distantes do Equador.43
A deficiência de vitamina D parece ser comum no infarto agudo do miocárdio (IAM) e estudos preliminares indicam uma possível associação entre essa deficiência vitamínica com prognóstico do IAM a curto e longo prazo.43 Além disso, a hipovitaminose D parece predispor a eventos cardíacos adversos recorrentes, devido à sua associação com o número de artérias coronárias acometidas, com as complicações do IAM e com o remodelamento cardíaco.44
O Health Professionals Follow-up Study acompanhou 18.225 homens durante 10 anos e observou uma associação entre baixos níveis de vitamina D e maior risco de IAM, mesmo após controle de outros fatores de risco.45 Estudos prospectivos também têm encontrado uma alta prevalência de deficiência de vitamina D em pacientes hospitalizados com IAM. Um estudo multicêntrico realizado com 239 pacientes com síndrome coronariana aguda (SCA) mostrou que 96% dos indivíduos apresentavam baixos níveis de vitamina D à admissão hospitalar.46
Alguns estudos evidenciam uma potencial associação independente entre deficiência severa de vitamina D e mortalidade intra-hospitalar em pacientes com SCA. Correia et al.,47 estudaram 206 pacientes com SCA e encontraram que os indivíduos que apresentavam níveis séricos de vitamina D mais baixos que 10 ng/mL apresentaram uma taxa de mortalidade cardiovascular intra-hospitalar de 24%, significativamente maior que a observada nos demais pacientes (4,9%).47
A IC tem sido associada com deficiência de vitamina D. Shane et al. demonstraram uma alta prevalência de deficiência de vitamina D em pacientes com IC, assim como uma correlação inversa entre níveis séricos de vitamina D com função ventricular esquerda e severidade da doença.48
A deficiência de vitamina D tem sido associada com eventos adversos graves, tais como hospitalização por IC e mortalidade. Liu et al.,49 reportaram em um estudo com 548 pacientes que baixos níveis de 25-hidroxivitamina D estavam associados com níveis mais elevados de BNP, assim como maior taxa de hospitalização por IC e maior taxa de mortalidade por todas as causas.49 No estudo LURIC, um estudo de coorte prospectivo com 3.299 pacientes submetidos a coronariografia, os níveis de N-terminal (NT)-proBNP estiveram relacionados de maneira inversa com os níveis de vitamina D.50
Já em relação à IC com fração de ejeção normal (ICFEN), estudos têm evidenciado resultados divergentes em relação à sua associação com a deficiência de vitamina D. Em 2013, Lagoeiro et al. estudaram 85 pacientes ambulatoriais com suspeita de ICFEN, dos quais 32 apresentavam ICFEN confirmada, e observaram uma correlação negativa entre a deficiência de vitamina D e a relação E/E’.51 Por outro lado, Pandit et al.52 realizaram em 2014 um estudo retrospectivo com 1.011 pacientes e não constataram uma associação significativa entre os níveis de vitamina D e a performance diastólica do ventrículo esquerdo.52
Apesar de evidências demonstrando uma associação entre a vitamina D e a IC, o mecanismo exato pelo qual a deficiência desta vitamina leva a piores desfechos clínicos em pacientes com IC ainda não está claramente estabelecido. Um mecanismo potencial poderia ser através da síndrome cardiorrenal ou piora da função renal.53 Sabe-se que os sistemas cardiovascular e renal são inter-relacionados e que a piora de um pode influenciar o outro. A progressão da síndrome cardiorrenal envolve a hiperativação do SRAA e do sistema nervoso simpático, assim como a inflamação sistêmica, que podem levar a distúrbios eletrolíticos e distúrbios na regulação de fluidos, causando disfunção endotelial, podendo levar ao remodelamento ventricular esquerdo e fibrose miocárdica. Essas mudanças geram um ciclo vicioso no qual a piora na função destes sistemas contribui para mais deterioração dos mesmos.54
Há evidências que suportam que a vitamina D seja um importante regulador da progressão da síndrome cardiorrenal. A desregulação no metabolismo da vitamina D devido a uma atividade reduzida da enzima 1α-hidroxilase e à depleção de VDBPs devido à proteinúria são responsáveis pela deficiência de vitamina D nos pacientes renais crônicos e, dada a elevada prevalência de insuficiência renal crônica nos pacientes com IC, essas mudanças podem ser prevalentes nesses pacientes.55
Outras evidências que suportam o papel da deficiência de vitamina D na patogênese da síndrome cardiorrenal relacionam-se com o envolvimento do SRAA e de citocinas inflamatórias. A deficiência de vitamina D leva à hiperativação do SRAA, contribuindo para o remodelamento ventricular esquerdo e surgimento e ou agravamento da IC.56 A deficiência de vitamina D pode levar a um aumento na produção e liberação de citocinas inflamatórias que podem ter efeito negativo direto ou indireto no miocárdio, contribuindo para apoptose celular, hipertrofia, fibrose, remodelamento ventricular e efeitos inotrópicos negativos, além de aumento na fibrose renal e insuficiência renal.57
As estatinas são agentes muito efetivos na prevenção cardiovascular primária e secundária em pacientes de alto risco.58 Entretanto, os efeitos colaterais mais frequentemente observados no sistema musculoesquelético, como a mialgia, têm sido comumente observados em pacientes tratados com estatinas e estes efeitos afetam diretamente a aderência ao tratamento com estes medicamentos.
Estudos observacionais mostram que a mialgia pode ocorrer em cerca de 15 a 20% dos indivíduos tratados com estatinas.59 Porém, na prática clínica diária, há evidências de que essa prevalência seja ainda maior. Os VDR estão presentes nas células musculares e baixos níveis de vitamina D estão associados com hipotonia, fraqueza muscular proximal e dor musculoesquelética inespecífica.60 Recentemente, estudos têm reportado que a deficiência de vitamina D está associada a uma maior prevalência de mialgia induzida por estatinas.61
Em 2014, Shantha et al.,62 realizaram um estudo retrospectivo com 5.526 pacientes com posterior análise prospectiva na qual os pacientes foram acompanhados por 7 anos. Os pacientes que tiveram nível sérico mensurado de vitamina D e iniciaram tratamento com estatina foram considerados como grupo de exposição. O objetivo era analisar a associação entre mialgia induzida por estatina e o nível de vitamina D, bem como estabelecer um ponto de corte no nível de vitamina D que demonstrasse elevada acurácia para o surgimento de mialgia. Os autores concluíram que níveis baixos de vitamina D estavam associados com mialgia e que um ponto de corte de 15 ng/mL para a vitamina D apresentava uma elevada acurácia para predizer o surgimento de mialgia induzida por estatina.62
Em 2015, Morioka et al.,63 realizaram estudo com 5.907 pacientes com o objetivo de analisar se o nível de vitamina D modificaria a associação entre o uso de estatina e o surgimento de dor musculoesquelética. Os autores concluíram que o grupo com nível de vitamina D abaixo de 15 ng/mL e em uso de estatina apresentou uma chance aproximadamente duas vezes maior de desenvolver dor musculoesquelética do que os pacientes também com nível de vitamina D abaixo de 15 ng/mL mas sem tratamento com estatina.63
Trabalhos prospectivos e randomizados são necessários para comprovar a real associação entre a deficiência de vitamina D e o surgimento de mialgia induzida por estatinas. Além disso, o mecanismo fisiopatológico que poderia explicar essa associação ainda precisa ser elucidado.
A elevada prevalência mundial de deficiência de vitamina D, ou pelo menos da sua forma mensurável no sangue, a 25-hidroxivitamina D, em parte pode ser explicada por determinantes genéticos. Em 2010, um importante estudo multicêntrico realizado por Wang et al. destacou que os níveis séricos de vitamina D podem ser influenciados por variações genéticas envolvendo sua síntese (7-DHC), hidroxilação (CYP2R1, CYP24A1) e a sua proteína de transporte (VDBP).64
A maior parte dos estudos que analisam a associação entre deficiência de vitamina D e DCV são epidemiológicos, o que torna difícil a distinção entre associação e causalidade. Neste contexto, a randomização mendeliana (RM) é uma abordagem alternativa para estimar a relação causal entre exposições biológicas modificáveis e um desfecho clínico de interesse, utilizando-se de variantes genéticas (single nucleotide polymorphisms - SNPs) como variáveis instrumentais. Assim, a RM utilizando dados sumarizados permite combinar resultados já publicados em estudos anteriores, tornando-se uma alternativa relevante para investigação de causalidade.65
Alguns estudos utilizaram a RM para investigar uma possível relação de causalidade entre deficiência de vitamina D e DCV. Com relação à HAS, Vimaleswaran et al.,66 encontraram que níveis aumentados de vitamina D poderiam reduzir o risco de desenvolvimento de DCV, evidenciando uma relação de causalidade.66 Por outro lado, para diabetes mellitus67 e DAC,68 os resultados de estudos com RM não têm apontado uma relação de causalidade, onde a deficiência de vitamina D parece ser um fator confundidor.
A partir das crescentes evidências de associação entre deficiência de vitamina D e DCV, muitos autores têm pesquisado o papel da suplementação de vitamina D na prevenção e no tratamento dessas patologias.
Um estudo randomizado realizado por Hsia et al.,69 com 36.282 mulheres na pós-menopausa avaliou a suplementação de vitamina D 200 UI mais carbonato de cálcio duas vezes ao dia ou placebo, durante um tempo de seguimento de 7 anos, e encontrou que a suplementação de vitamina D não reduziu o risco cardiovascular.69 Este foi um dos poucos estudos randomizados que avaliou o impacto da vitamina D na redução de desfechos duros, considerados como incidência de IAM, acidente vascular encefálico (AVE) e morte relacionada à DAC.
Com relação à HAS, os trabalhos com reposição de vitamina D apontam resultados divergentes. Uma importante revisão sistemática e metanálise publicada por Wu et al.70 compreendendo 36.806 pacientes não observou um efeito significativo da suplementação de cálcio com vitamina D nas variações de PA sistólica e diastólica em comparação à não suplementação dos mesmos.70
No diabetes mellitus, os trabalhos envolvendo suplementação de vitamina D têm se mostrado desapontadores. Um estudo envolvendo 70 crianças com diabetes tipo 1 de início recente, a suplementação com calcitriol teve um efeito modesto na função pancreática residual das células beta, porém a redução da hemoglobina glicosilada após 1 ano de tratamento não foi estatisticamente significativa.71 Com relação ao diabetes tipo 2, os resultados dos estudos são muito divergentes, talvez pela não padronização da dose de suplementação de vitamina D ou da utilização de pequenas amostras nestes estudos. Uma metanálise envolvendo 35 estudos controlados avaliou o impacto da suplementação de vitamina D em pacientes saudáveis e indivíduos com deficiência de vitamina D, obesidade, pré-diabetes e diabetes. Em comparação com placebo, a vitamina D não exerceu efeito sobre a resistência à insulina, secreção de insulina e hemoglobina glicosilada.72
Em relação à obesidade, muitos estudos têm avaliado o efeito da suplementação de vitamina D com e sem adição de cálcio no peso e composição corporal. Na maioria destes estudos, não houve efeito significativo da vitamina D sobre o IMC ou sobre a composição corporal. 73
A DAC também parece não sofrer influência significativa com suplementação de vitamina D. Um importante estudo denominado RECORD74 envolvendo 5.292 indivíduos comparou os efeitos da administração de vitamina D, cálcio, vitamina D com cálcio ou placebo nos eventos cardiovasculares. Foi observado que embora a vitamina D possa exercer um papel protetor na IC, não parece proteger contra IAM e AVE. Uma metanálise de 51 estudos controlados encontrou que a suplementação de vitamina D não tem impacto significativo no IAM.75
Na IC, parece haver algum benefício com a suplementação de vitamina D, apesar dos mecanismos de atuação ainda não serem bem estabelecidos. Estudos recentes reportaram que em indivíduos com IC já estabelecida e com deficiência de vitamina D, a suplementação vitamínica está associada com melhora na sobrevida.76
As DCV permanecem como a principal causa de mortalidade em diversos países do mundo. Entender os mecanismos fisiopatológicos envolvidos, bem como seus fatores de risco, é fundamental para o planejamento de estratégias de prevenção e tratamento.
Nos últimos anos, muitos trabalhos têm relacionado a deficiência de vitamina D às DCVs, com uma influência direta sobre o prognóstico. A partir do entendimento dessa associação, o foco dos pesquisadores tem sido na correção da deficiência vitamínica com o intuito de prevenir doenças e melhorar o prognóstico de doenças já estabelecidas. Porém, até o momento, faltam dados consistentes para indicar a reposição da vitamina D no contexto de doenças cardíacas.
Um ponto que merece destaque é a ampla variação na prevalência da deficiência de vitamina D no cenário mundial. Como a síntese endógena da vitamina D é dependente da exposição solar e esta varia de acordo com a latitude, talvez o nível sérico de referência para a vitamina D seja também diferente entre os países de acordo com a exposição solar.
Não se sabe ao certo se os resultados dos estudos com suplementação de vitamina D têm sido desapontadores devido à incapacidade de atuação da vitamina na doença já estabelecida ou se os estudos têm utilizado dosagens inadequadas na suplementação. Torna-se importante entender quais seriam as doses necessárias para manter os níveis séricos de vitamina D acima do desejado, bem como a realização de dosagens seriadas da 25-hidroxivitamina D com o intuito de manter os níveis dessa vitamina adequados durante todo o tempo de seguimento.