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Deficiência de vitamina D (DVD): o responsável por doenças cardiometabólicas?

Deficiência de vitamina D (DVD): o responsável por doenças cardiometabólicas?

Autores:

Chaoxun Wang

ARTIGO ORIGINAL

Jornal de Pediatria

versão impressa ISSN 0021-7557

J. Pediatr. (Rio J.) vol.90 no.1 Porto Alegre jan./ev. 2014

http://dx.doi.org/10.1016/j.jped.2013.10.001

Geralmente, acredita-se que a vitamina D desempenhe um papel na manutenção da saúde dos ossos e na regulação da homeostase do fosfato de cálcio. Esse reconhecimento limitado da função dessa vitamina remonta à sua descoberta por meio da luta contra o raquitismo, há quase um século. Estudos adicionais revelam outras funções que a vitamina D exerce em nossos órgãos; sua importância na saúde dos ossos é simplesmente a ponta do iceberg.

Até o momento, estudos indicaram que o receptor da vitamina D é bastante ubíquo, sendo encontrado em todos os órgãos humanos mais importantes, incluindo coração, cérebro, fígado, rins, ossos, sistema urinário e glândulas paratireoides.1 , 2 Vale a pena notar que os receptores de vitamina D estão presentes em alguns tecidos aparentemente não relacionados, como por exemplo, todos os tipos de células imunológicas, células β pancreáticas, neurônios, bem como células vasculares lisas, células epiteliais e cardiomiócitos em sistema cardiovascular. Por meio desses receptores amplamente distribuídos, a vitamina D regula, direta ou indiretamente, a expressão de mais de 200 genes.3 Isso explica parcialmente o porquê de a deficiência de vitamina D ter sido relacionada a diferentes tipos de doenças, como, por exemplo, hipertensão, esclerose múltipla, câncer de cólon e diabetes. Devido ao polimorfismo do gene receptor da vitamina D, há uma variação individual com relação à reação à vitamina D. O progresso recente com relação ao estudo do mecanismo de regulação do receptor da vitamina D avançou bastante a compreensão das doenças relacionadas à vitamina D.

Dentre todas as pesquisas sobre a função da vitamina D fora do sistema ósseo, a correlação entre a deficiência de vitamina D (DVD) e as doenças cardiometabólicas tem sido o ponto principal. Existe alguma relação causal entre a DVD e as doenças cardiometabólicas? Em caso positivo, qual seria a causa e qual seria a consequência? Apesar de ainda não haver uma resposta definitiva com base nos resultados atuais, o acúmulo de evidências aponta claramente para uma estreita correlação entre as duas.

Pesquisas em diferentes campos e perspectivas fornecem evidências que apoiam a conclusão de que a DVD e as doenças cardiometabólicas estão estreitamente relacionadas. Primeiramente, os resultados combinados do estudo transversal do NHANES, do estudo de coorte do HPFS (Estudo de Acompanhamento de Profissionais de Saúde) e da pesquisa do NHS I (Estudo de Saúde dos Enfermeiros) revelaram a correlação reversa entre o nível de 25 (OH) D e pressão sanguínea.4 , 5 Outro estudo de controle aleatório detalhado confirmou, ainda, que a vitamina D reduziu a pressão sistólica, mas não afetou a diastólica.6 , 7 Em segundo lugar, nosso conhecimento sobre a DVD e a diabetes tipo 2 (DMT2) provém, em grande parte, de um estudo epidemiológico. Um estudo transversal indicou que o nível sérico de 25 (OH) D na DMT2 foi drasticamente reduzido.8 E um estudo de coorte mostrou que um nível menor de 25 (OH) D pode ser utilizado como um biomarcador para prever o desenvolvimento e progresso da DMT2.9 Acredita-se que a suplementação de vitamina D pode regular a sensibilidade à insulina e, portanto, melhora a resistência à insulina e beneficia até mesmo a secreção de células β pancreáticas.10 Em terceiro lugar, mostrou-se que o nível basal de DVD em adultos está inversamente relacionado ao risco de 10 anos da síndrome metabólica, e é independente de fatores como sexo, idade, peso, estação do ano e fumo.9 Uma pesquisa transversal confirmou que a DVD foi relacionada ao desenvolvimento da síndrome metabólica em populações adultas, jovens e de adolescentes,11 e a DVD foi inversamente relacionada ao ganho de circunferência abdominal em cinco anos, triglicérides (TG), nível da glicemia de jejum e resistência à insulina. Além disso, um estudo de coorte recente confirmou que o nível de 25 (OH) D adequado pode reduzir em grande parte a mortalidade por todas as causas, e a mortalidade cardiovascular em pacientes com síndrome metabólica.12 Por fim, estudos de coorte transversais e prospectivos descobriram uma maior incidência de doença cardiovascular na população com DVD,13 e que a DVD aumenta muito o risco de morte cardíaca causada por insuficiência cardíaca e parada cardíaca súbita em caucasianos candidatos à angiografia coronária.14

Os estudos acima apenas mencionam crianças e jovens, e os autores Kelishadi et al.15 exploraram a relação entre a DVD, a resistência à insulina e os fatores de risco relacionados a doenças cardiometabólicas, como glicemia, pressão sanguínea, gordura no sangue e obesidade por meio de pesquisas em crianças obesas com suplementação de vitamina D. A partir de seus resultados, os autores concluíram que a suplementação de vitamina D foi benéfica ao controle de doenças cardiometabólicas em crianças e jovens obesos. Essa é a evidência a respeito da correlação entre a DVD e as doenças cardiometabólicas em populações mais jovens.

Entretanto, existem algumas ressalvas na pesquisa de Kelishadi et. al.15 Primeiramente, um grupo de controle de pessoas com peso normal era necessário, porque não havia dados mostrando que o nível de vitamina D nessas crianças obesas era inferior ao da população com peso normal; essa foi a suposição dos autores com base em um resultado anterior.16 Caso não houvesse diferença óbvia dos níveis de vitamina D entre os objetos de estudo e a população normal, a base lógica da interferência da vitamina D seria uma preocupação.

Em segundo lugar, para atender à exigência de análise estatística, os autores projetaram com cuidado o experimento para se certificar de que houvesse, no mínimo, 20 amostras em cada grupo, e que houvesse um resultado positivo em cada um deles. Entretanto, os autores não descreveram em detalhes os padrões que aplicaram para decidir quais amostras seriam incluídas, principalmente a forma como diferenciar uma simples obesidade da obesidade secundária que deve ser excluída. Ainda não se sabe se a suplementação de vitamina D seria efetiva para pacientes com obesidade secundária, nos quais existe uma probabilidade de DVD. Não ficou claro por que os autores escolheram crianças e jovens obesos de 10 a 16 anos, e é muito provável que a validade da precisão e conclusão dos dados pode ter sido comprometida, devido à inconsistência da linha de base de diferentes populações incluídas no estudo. Para definir os fatores de risco cardiometabólico e a síndrome metabólica, os autores aplicaram os últimos pontos de corte estabelecidos pelo National Heart, Lung, and Blood Institute para a faixa etária pediátrica e o índice cMetS (valor contínuo da síndrome metabólica) conforme recomendado pela Associação Americana de Diabetes e a Associação Europeia para o Estudo da Diabetes com relação a crianças e adolescentes, respectivamente. Questiona-se se esses padrões são adequados para o estudo e refletem a verdadeira situação da população de interesse. Analisando a pesquisa anterior relacionada à DVD e a doenças cardiometabólicas, é natural supor que o pequeno conjunto de amostras e a seleção amostral inadequada é um motivo importante para os resultados negativos obtidos pelos autores.17 , 18 Portanto, caso os autores tivessem expandido o tamanho de sua amostra e aplicado padrões de seleção amostral mais rigorosos, eles possivelmente poderiam ter observado o impacto da vitamina D no nível de glicemia de jejum e pressão sanguínea, tornando seus resultados mais convincentes e valiosos às aplicações clínicas e práticas.

Ademais, os autores deveriam ter considerado a administração e eficácia dos medicamentos. Uma cápsula de vitamina D foi administrada oralmente no estudo e é senso comum que a administração oral está sujeita a possíveis dificuldades de absorção, afetando, assim, o nível de vitamina D dos objetos de estudo e interferindo no resultado e na conclusão do experimento. Adicionalmente, a dosagem da suplementação de vitamina D, a frequência de administração e os possíveis efeitos colaterais da vitamina D deviam ter sido levados em consideração.

Além disso, a duração do tratamento da suplementação de vitamina D e a validade da análise estatística são possíveis fatores que afetam o resultado do estudo. Por exemplo, seria significativo comparar subgrupos masculinos e femininos.

Resumindo, devido às ressalvas do planejamento e da análise do experimento descritas acima, apesar de Kelishadi et al.15 terem obtido dados positivos que apoiam sua hipótese de que a DVD está correlacionada a doenças cardiometabólicas em populações mais jovens, deve-se ter cautela ao interpretar seus resultados em aplicações práticas, e seria melhor confirmá-los com conjuntos de amostras maiores e planejamentos de estudo mais cuidadosos, caso necessário. Por exemplo, foi mencionado por Kelishadi et al.15 que existem vários relatórios sobre a irrelevância da DVD e das doenças cardiometabólicas em diferentes faixas etárias da populações. Relatamos um resultado semelhante em outro trabalho.19

Resumindo, na pesquisa por amostragem disponível em modelo animal ou em humanos sobre essa questão, independentemente do método a ser utilizado - uma simples observação ou um estudo de controle aleatório sistemático - encontramos uma grande discrepância a respeito da conclusão final; por exemplo, ainda pouco se compreende se existe uma relação causal entre a DVD e as doenças cardiometabólicas. O campo exige pesquisas de ensaios clínicos randomizados (ECR) mais bem concebidos e de maior qualidade para aprofundar a função precisa da DVD em doenças cardiometabólicas.

Finalmente, apesar de haver falhas no estudo de Kelishadi et al.,15 seus resultados ainda são valiosos para o campo e avanço da pesquisa sobre a DVD, expandindo a análise em direção à população obesa mais jovem, que é mais propensa às doenças cardiovasculares. Essa é uma pesquisa pioneira sobre o benefício da suplementação de vitamina D para a resistência à insulina e fatores de risco relacionados à obesidade na população jovem. Ela não apenas atende à necessidade atual de fortalecimento do estudo e de prevenção de doenças crônicas não infecciosas, mas também abre uma nova janela e ajuda a pavimentar um caminho em direção a estudos adicionais relacionados à DVD e às doenças cardiometabólicas.

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