versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.108 no.5 São Paulo maio 2017
https://doi.org/10.5935/abc.20170013
A análise da deformação miocárdica (strain) pode ser realizada com o emprego da ecocardiografia a partir de dados obtidos com a técnica doppler tecidual ou imagens bidimensionais a partir do rastreamento de conjunto de pontos de cinza (speckle tracking), possibilitando o cálculo da deformação longitudinal, circunferencial e radial das fibras miocárdicas.1,2 Análise da deformação miocárdica tem sido recentemente utilizada na avaliação do movimento e da função miocárdica regional e no cálculo do time-to-peak sistólico que estuda a sincronia cardíaca e o acoplamento eletromecânico miocárdico.1 Na prática clínica, a investigação ecocardiográfica convencional é útil na detecção da disfunção miocárdica global, assim como das alterações da contratilidade segmentar ventricular. Na cardiotoxicidade por uso de quimioterápicos podem ocorrer alterações da mecânica cardíaca sem modificar a fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE). Assim, a análise da deformação miocárdica traz informações relevantes na análise da disfunção sistólica ventricular regional em condições subclínicas.2
De forma semelhante, investigações prévias demonstraram que o estudo da deformação miocárdica é capaz de detectar alterações súbitas e precoces na função sistólica de pacientes com doenças valvares, antes mesmo de apresentarem modificações na FEVE.1,3,4 Esse fenômeno se deve a uma significativa diminuição da deformação miocárdica em três diferentes planos espaciais, ocasionando modificações da deformação nos eixos longitudinal, circunferencial e radial.5 Em pacientes que apresentam deformação miocárdica longitudinal reduzida, observa-se deformação radial superior aos parâmetros da normalidade, o que poderia resultar em função ventricular preservada, quando estimada pela FEVE. Aplicações outras ao emprego da deformação miocárdica incluem a amiloidose, cardiomiopatia hipertrófica, disfunção ventricular direita, sarcoidose, no coração do atleta, na dissincronia cardíaca e nas doenças valvares (insuficiência mitral e estenose aórtica).2
O implante transcateter de valva aórtica (do inglês transcatheter aortic valve implantation, TAVI) surgiu como nova opção no tratamento de pacientes portadores de estenose aórtica inoperável ou de alto risco cirúrgico.6 O uso da deformação miocárdica com o emprego da ecocardiografia na avaliação imediata em pacientes portadores de estenose aórtica submetidos a TAVI é muito pouco explorado.
A presente série de casos tem como objetivo demonstrar o comportamento da deformação miocárdica em pacientes com estenose aórtica submetidos à TAVI.
Paciente, feminino, 79 anos, portadora de fibrilação atrial e hipertensão pulmonar, com diminuição da capacidade funcional no último ano. Evidenciado ao ecocardiograma transesofágico tridimensional a presença de estenose valvar aórtica com gradiente transvalvar máximo de 67 mmHg e médio de 39 mmHg, área valvar de 0,5 cm2 e FEVE (método de Simpson) de 60%. A análise strain pré-TAVI foi de -14% e após o implante de prótese aórtica Sapien XT de 23 mm (Edwards Lifescience, USA) observou-se melhora imediata da deformação miocárdica para -20%.
Paciente, masculino, 81 anos, com cirrose por hepatite B e hipotireoidismo, sintomático em classe funcional II (NYHA) por estenose valvar aórtica. Foi realizado o implante de valva aórtica Sapien XT de 26 mm, observando-se melhora imediata do strain de -15% para -22%. A avaliação da dissincronia miocárdica com a análise pelo método do cálculo do time-to-peak sistólico pré TAVI foi de 132 ms para 65 ms após.
Paciente, masculino, 77 anos, portador de estenose aórtica há 10 anos, com piora recente da classe funcional. Evidenciado ao ecocardiograma gradiente transvalvar máximo de 87 mmHg e médio de 49 mmHg, área valvar de 0,7 cm2 e FEVE de 57%. Realizado implante de valva aórtica Sapien XT, 23 mm, observando-se normalização imediata do strain miocárdico pré-procedimento de - 12% para - 20% após procedimento (Figura 1).
Paciente, feminino, 74 anos, portadora de estenose aórtica há 20 anos, classe funcional III (NYHA). Ao ecocardiograma notava-se gradiente transvalvar máximo de 65 mmHg e médio de 38 mmHg, área valvar de 0,6 cm2 e FEVE de 28%. Realizado implante de valva aórtica Sapien XT, 23 mm, havendo melhora imediata do strain miocárdico - 10% para -13% com melhora da FEVE para 34% (Figura 2).
Figura 2 Análise do strain miocárdico pré (Figura 2A : -10%) e após (Figura 2B: -13%) implante de prótese aórtica por via percutânea. Figura 2C: demonstração com o emprego da ecocardiografia transesofágica bidimensional da prótese aórtica normo implantada, figura da esquerda (plano longitudinal), figura da direita (plano transversal). Figura 2D: demonstração com o emprego da ecocardiografia transesofágica tridimensional da prótese aórtica normo implantada, visão "en face". Paciente do caso 4.
A evolução da estenose valvar aórtica acarreta uma sobrecarga de pressão na parede miocárdica, levando ao aumento da espessura cardíaca. A hipertrofia ventricular progride conforme a estenose aórtica torna-se mais importante, um mecanismo de adaptação para a manutenção da função ventricular. Porém, esse mecanismo compensatório é finito, desencadea aumento do volume ventricular esquerdo (remodelamento positivo) e queda da fração de ejeção ao longo do tempo.4
Lancellotti et al.,5 em estudos com o emprego da ecocardiografia, observaram as seguintes alterações em pacientes portadores de estenose aórtica:
paciente assintomático com estenose aórtica importante apresenta aumento significativo da pós-carga global do ventrículo esquerdo;
o aumento da pós-carga ventricular afeta negativamente a função miocárdica, principalmente na deformação axial, apesar da fração de ejeção normal;
pós-carga elevada é prevalente nos pacientes com estenose aórtica de baixo fluxo, quando a complacência arterial sistêmica está reduzida; e
o estado de baixo fluxo relaciona-se a uma função diastólica prejudicada e redução da deformação miocárdica. As deformações miocárdicas longitudinal, radial e circunferencial estão significativamente prejudicadas nos pacientes com pós-carga elevada. Em uma fase inicial da estenose valvar aórtica, todavia, ocorre redução apenas da deformação miocárdica longitudinal, relacionada principalmente às alterações nas fibras cardíacas subendocárdicas. As deformações radial e circunferencial podem estar, paradoxalmente, vicariantes neste período. Subsequentemente, com a progressão da severidade da estenose aórtica, ocorre, agora, a diminuição da deformação radial e circunferencial em razão de modificações das fibras da camada média miocárdica que apresentam alinhamento espacial de forma circunferencial.
As diretrizes atuais preconizam a troca da valva aórtica em pacientes com estenose valvar aórtica sintomáticos ou assintomáticos com redução da fração de ejeção.6,7 Quando comparados a pacientes com função sistólica preservada, aqueles com fração de ejeção reduzida apresentam evolução clínica mais desfavorável após a correção valvar.4 Em pacientes com função ventricular preservada, a análise da deformação miocárdica permite detectar precocemente alterações subclínicas da mecânica miocárdica, o que poderia, após o procedimento, resultar positivamente em maior sobrevida e qualidade de vida dos pacientes.
Em estudo de Delgado et al.,4 a cirurgia da troca valvar aórtica melhorou os parâmetros analisados pelo speckle tracking, apesar de a fração de ejeção ter permanecido inalterada. Adicionalmente, esses autores reportaram a melhora da deformação miocárdica após a troca valvar. Isso solidifica a capacidade da análise da deformação miocárdica em detectar alterações súbitas na função sistólica nos pacientes com estenose aórtica severa.
Em outro estudo, Bauer et al.,3 avaliando 8 pacientes submetidos a TAVI, demostraram que houve melhora na função sistólica global e regional do ventrículo esquerdo, mesmo nos pacientes com fração de ejeção reduzida.
De forma semelhante, Sebastian et al.6 constataram, 12 meses após o procedimento, a melhora da mecânica miocárdica em pacientes submetidos a TAVI. Becker et al.7 evidenciaram resposta positiva da deformação miocárdica com 7 dias e 6 meses após o procedimento de TAVI. Especificamente, ocorreu melhora da fração de ejeção de 51±6% pré-TAVI para 54±4% e 57±3%, 7 dias e 6 meses após o procedimento; para a análise da deformação miocárdica circunferencial, observou-se melhora de -14,9±1 pré-TAVI para -16,1±1,2 e -17,3±1,5 em 7 dias e 6 meses após TAVI, respectivamente.
Da mesma maneira, no presente relato de 4 casos, observamos significativa melhora da análise da deformação miocárdica imediatamente após a TAVI. Três pacientes apresentavam FEVE preservada e um (Caso 4), apresentava disfunção ventricular importante, tendo sido observada melhora tanto na FEVE quanto na deformação miocárdica longitudinal, imediatamente após o procedimento. Esses dados confirmam que a função ventricular esquerda nas valvopatias depende diretamente da pós-carga, e o alívio imediato dessa variável pode interferir positivamente nos desfechos clínicos. A relação causal entre a recuperação imediata da deformação miocárdica após TAVI - mesmo em pacientes com função ventricular esquerda preservada - e os benefícios nos sintomas e na morbimortalidade devem ser explorados em estudos futuros.