versão impressa ISSN 1808-8694versão On-line ISSN 1808-8686
Braz. j. otorhinolaryngol. vol.81 no.4 São Paulo jul./ago. 2015
http://dx.doi.org/10.1016/j.bjorl.2014.09.009
Os cânceres de laringe e de hipofaringe representam quase 45% de todas as doenças tratadas no nosso hospital terciário, no Departamento de Otorrinolaringologia, especializado em Oncologia.
A prevalência de fístula faringocutânea após cirurgia de laringe e faringolaringe é relatada como sendo entre 9% e 25%.1 , 2 Sua ocorrência aumenta consideravelmente o tempo de permanência desses pacientes no hospital e, consequentemente, o custo do tratamento.3Além disso, sua ocorrência pode causar, entre outros danos físicos e psicológicos, atraso no início das terapias complementares (como radioterapia/quimioterapia) e, consequentemente, atraso na recuperação destes pacientes com câncer.
Até o momento nenhum estudo propôs uma regra de decisão clínica (RDC) para a previsão de fístula faringocutânea após laringectomia total e faringolaringectomia primária ou de resgate, com ou sem esvaziamento cervical, e os fatores preditivos mais significativos tem sido mal avaliados.4 Assim, nosso objetivo foi obter esta RDC de uma amostra de pacientes deste hospital. Com a sua criação, tivemos a intenção de incentivar a mudança no comportamento clínico, com o intuito de prevenir contra o desenvolvimento desta complicação e, assim, facilitar a redução de custos desnecessários, bem como melhorar a qualidade de vida dos pacientes.
Estudo de coorte retrospectivo (estudo de coorte histórica longitudinal), que inclui, consecutivamente, todos os pacientes que realizaram laringectomia total/faringolaringectomia, devido a câncer da laringe e de hipofaringe, no Departamento de Otorrinolaringologia do Hospital, de fevereiro de 2006 a junho de 2011. Todos os pacientes diagnosticados com câncer laríngeo e faringolaríngeo foram avaliados pela equipe antes do tratamento final. Somente procedimentos compatíveis com laringectomia total com ou sem faringectomia parcial e fechamento primário do defeito da faringe foram considerados neste estudo. As cirurgias foram realizadas por quatro cirurgiões diferentes, dois com 10 ou mais anos de experiência, e dois com menos.
Esta condução do estudo foi aprovada pelo Comitê de Ética do Hospital.
Todas as variáveis e ocorrências de desfecho foram coletadas pelo pesquisador principal (SC) nos prontuários da instituição, entre agosto de 2011 e janeiro de 2012, O acompanhamento foi feito até os pacientes receberem alta.
Conduzimos uma revisão sistemática para identificar todos os fatores de risco preditivos para o desenvolvimento de fístula faringocutânea descritos na literatura disponível ( resultados não relatados neste artigo).4
Reunimos todas as variáveis consideradas como pertinentes à nossa avaliação, a saber:
a. Fatores relacionados com o paciente: classificação da ASA (American Society of Anesthesiologists) (tabela 1), consumo de álcool (alto consumo, se o paciente bebesse regularmente mais de 1L de bebida alcoólica por dia; e ex-consumidores e baixo consumo se bebessem de 0-4 copos/dia), nível de hemoglobina pré-operatório (< 12,4 g/dL ou ≥ 12,4 g/dL), valor de albumina pré-operatório (< 37 g/L ou ≥ 37 g/L) e presença de comorbidades importantes (como diabetes melito (DM), doenças pulmonares obstrutivas crônicas (DPOC), doença cardíaca e doença hepática);
Tabela 1. Classificação ASA (Sistema de Classificação de Risco da American Society of Anesthesiologists)
Classe ASA | Definição de classe |
---|---|
I | Paciente normalmente saudável |
II | Paciente com doença sistêmica leve |
III | Paciente com doença sistêmica não incapacitante |
IV | Paciente com doença sistêmica incapacitante que é ameaça constante à vida |
V | Paciente moribundo do qual não se espera sobrevivência por 24 horas, com ou sem cirurgia |
Fonte: Amir Qaseem, Vincenza Snow; Nick Fitterman; E. Rodney Hornbake; Valerie A. Lawrence; Gerald W. Smetana; Kevin Weiss, Douglas K. Owens; Clinical Efficacy Assessment Subcommittee of the American College of Physicians; Risk Assessment for and Strategies To Reduce Perioperative Pulmonary Complications for Patients Undergoing Noncardiothoracic Surgery: A Guideline from the American College of Physicians. Annals of Internal Medicine. 2006 Apr;144(8):575-580.
b. Fatores relacionados com a doença: a classificação de N (com base no AJCC Cancer Staging Manual, 2010 - 7ª edição), intervenção cirúrgica realizada (laringectomia total ou faringolaringectomia);
c. Fatores relacionados com o tratamento: radioterapia apenas (Rt) ou quimiorradioterapia (QRT) antes da cirurgia, e traqueostomia anterior a cirurgia.
Deficiência nutricional e perda de peso foram excluídas da análise, pela falta de dados suficientes disponíveis nos prontuários avaliados (120 em falta).
Quanto ao resultado, o desenvolvimento de fístula faringocutânea foi confirmado clinicamente em consultas diárias pós-operatórias por mais de um observador (cirurgião e residente), com expressão de saliva e análise do trajeto da ferida fistulosa.
Todas as variáveis foram categóricas e sua presença em cada grupo (com ou sem desenvolvimento de desfecho) foi comparada através do Qui-quadrado ou teste exato de Fisher, quando aplicável. A significância foi considerada como um valor-p inferior a 0,05.
Seguimos a recomendação de inclusão de 10 a 15 indivíduos por variável preditiva avaliada.5 Como foram analisadas as associações entre 13 variáveis e desfechos, incluímos pelo menos 130 indivíduos.
É comum observar-se que, ao se realizar uma análise multivariada, há uma mudança no nível de significância das várias variáveis preditivas. Assim, em vários artigos,5 - 7 as variáveis são incluídas na análise multivariada quando um valor de p < 0,2 é observado na análise univariada. Dessa maneira, tem-se a certeza de que todas as variáveis pertinentes e potencialmente preditivas são estudadas. Usamos os mesmos critérios para detectar quais variáveis deveriam ser incluídas no nosso modelo derivado.
Dessa forma, para a derivação do modelo preditivo, realizou-se a análise multivariada, através de regressão logística.
Depois que o modelo preditivo foi criado, a área sob a curva ROC (AUC) foi calculada e, através do "melhor ajuste" das coordenadas da curva, foram criadas quatro categorias de risco: alto risco (4), alto risco médio (3), baixo risco médio (2) e baixo risco (1). A sensibilidade, especificidade, valores preditivos e razão de verossimilhança com intervalo de confiança de 95% (IC 95%) foram calculados. Todas as análises estatísticas foram realizadas utilizando-se o programa SPSS versão 18.0.
No total, 171 indivíduos foram incluídos, caracterizados na tabela 2.
Tabela 2. Caracterização da amostra de acordo com o estágio TNM (7ª ed.; 2010) e características demográficas
Característica | Frequência (n = 171) | % |
---|---|---|
Características demográficas | ||
Sexo masculino | 166 | 97,1 |
Idade (> 60 anos) | 75 | 43,9 |
Hábitos de Tabagismo (> 20 cigarros/dia) |
142 | 83 |
Estágio | ||
I | 1 | 0,6 |
II | 5 | 2,9 |
III | 38 | 22,2 |
IVa | 120 | 70,2 |
IVb | 7 | 4,1 |
T | ||
Tis | 1 | 0,6 |
T1 | 1 | 0,6 |
T2 | 5 | 2,9 |
T3 | 45 | 26,3 |
T4a | 119 | 69,6 |
N | ||
N0 | 83 | 48,5 |
N1 | 25 | 14,6 |
N2a | 28 | 16,4 |
N2b | 17 | 9,9 |
N2c | 13 | 7,6 |
N3 | 5 | 2,9 |
Todos os participantes apresentavam estadiamento M0 e o fechamento da faringe foi realizado com duas camadas (músculos e mucosa) de sutura contínua ou grampeador (usado sempre que possível).
Durante um seguimento médio de 30 dias, 48 indivíduos (28,1%) desenvolveram fístula faringocutânea no pós-operatório. Todos foram classificados como ASA 2 ou 3; dentre os 79,2% de alto consumo de álcool, quase 48,9% tinham nível de hemoglobina pré-operatório abaixo de 12,5 g/dL, 16,7% eram diabéticos, 6,2% tinham algum grau de DPOC, 22,9% apresentavam disfunção hepática ou algum grau de doença cardíaca, 8,3% tinham sido submetidos à radioterapia antes da cirurgia, e 18,8% haviam sido submetidos à quimioterapia / radioterapia prévia, e, em 58,3%, houve necessidade de realizar uma traqueostomia de emergência antes da cirurgia eletiva, 45% foram realizadas em caráter de urgência e 13,3% foram traqueostomias eletivas.
Observou-se que os pacientes com estágio avançado (IVA e IVB) apresentaram maior número absoluto de fístulas faringocutâneas (n = 40), embora não tenha sido estatisticamente significante (p = 0,25). No entanto, os 87 pacientes remanescentes nessas fases (representando cerca de 50% da amostra) não desenvolveram fístula. Foi realizada uma análise uni e multivariada, com a inclusão dos fatores relevantes obtidos pela revisão sistemática previamente realizada,4 e que apresentavam potencial para inclusão no modelo de previsão a ser desenvolvido, como explicado anteriormente (tabela 3).
Tabela 3. Análise univariada e multivariada da relação entre as variáveis incluídas na RDC e a frequência de fístula faringocutânea
Variáveis | Todos | Com fístula | Sem fístula | Análise univariada |
Análise multivariada |
---|---|---|---|---|---|
n (%) | n (%) | n (%) | Valor p | Valor p | |
ASA | |||||
2 | 107 (63) | 25 (51,1) | 82 (68) | 0,05a | 0,005 |
3 | 62 (36,2) | 23 (48,9) | 39 (32) | ||
Álcool | |||||
Pesado | 126 (73,7) | 38 (79,2) | 88 (71,5) | 0,34a | 0,361 |
Pré-hemoglobina | |||||
< 12,4 g/dL | 65 (39,6) | 22 (48,9) | 43 (36,1) | 0,15a | 0,665 |
Pré-albumina | |||||
< 37,0 g/L | 30 (34,1) | 7 (25) | 23 (38,3) | 0,24a | 0,07 |
Comorbidades | |||||
DM | 25 (14,6) | 8(16,7) | 17 (13,8) | 0,63a | 0,72 |
DPOC | 18 (10,5) | 3 (6,2) | 15 (12,2) | 0,4a | |
Doença hepática | 39 (22,8) | 11 (22,9) | 28 (22,8) | 1a | |
Cardiopatia | 42 (24,6) | 11 (22,9) | 31 (25,2) | 0,85a | |
N | |||||
N0 | 83 (48,6) | 21 (43,8) | 62 (50,4) | 0,25b | 0,933 |
N1 | 25 (14,6) | 8 (16,7) | 17 (13,8) | ||
N2a + N2b + N2c | 58 (33,9) | 17 (9,94) | 41 (23,96) | ||
N3 | 5 (2,9) | 2 (1,16) | 3 (1,74) | ||
Localização | |||||
Laringe | 67 (39,2) | 18 (10,5) | 49 (28,6) | 0,86a | 0,539 |
Faringolaríngea | 104 (60,8) | 30 (62,5) | 74 (60,2) | ||
Pré-Rt | |||||
Sim | 12 (7,0) | 4 (8,3) | 8 (6,5) | 0,74a | |
QRT prévia | |||||
Sim | 15 (8,8) | 9 (18,8) | 6 (4,9) | 0,01a | 0,120 |
Traqueostomia pre | |||||
Sim | 77 (45) | 28 (58,3) | 49 (39,8) | 0,04a | 0,144 |
Rt, radioterapia; QRT, quimiorrradioterapia; pre, pré-operatória; DM, diabetes melito; DPOC, doença pulmonar obstrutiva crônica. a Teste de Fisher. b Teste de Qui-quadrado.
Observamos que ASA 2 e 3, QRT prévia, traqueostomia realizada antes da cirurgia e baixo nível de hemoglobina foram associados ao desenvolvimento de fístula na análise univariada. Na análise multivariada, apenas a classificação ASA manteve sua significância estatística (p < 0,05). Albumina, QRT prévia e traqueostomia realizadas antes da cirurgia mostraram potencial preditivo (p < 0,2) para inclusão em nosso modelo.
Apesar de a albumina não ter atingido significância estatística na nossa análise univariada, e por haver muitos valores da albumina ausentes em nossa amostra (85 em falta), observou-se que a sua exclusão do modelo reduziu substancialmente a sua validade (em particular no que diz respeito à sensibilidade).
O consumo de álcool, a hemoglobina pré-operatória < 12,5 g/ dL, a presença de DM, a classificação N, a localização e a extensão do tumor primário e nenhuma Rt prévia não foram associados ao desenvolvimento de fístula, mas aumentaram a precisão prognóstica da RDC (em relação ao equilíbrio sensibilidade-especificidade) e, assim, foram também incluídos.
Para desenvolver o modelo, incluímos, portanto, todas as variáveis pré-operatórias analisadas que apresentaram um valor de p < 0,2, e também aquelas consideradas importantes pela revisão sistemática préviamente realizada pelo nosso grupo.4 Os melhores resultados foram obtidos usando o seguinte modelo:
Escore de risco = (4,98 × classificação ASA) + (1,97 × consumo de álcool) + (5,10 × quimioterapia/radioterapia) + (2,40 × traqueotomia) + (0,75 × hemoglobina pré-cirurgia) + (0,69 × extensão local) + (1,01 × classificação N) + (0,75 × presença de diabetes melito) + (3,03 × albumina pré-cirurgia).
Este modelo apresentou uma área sob a curva ROC (AUC) de 0,74 (IC 95% 0,61-0,86), como mostrado na figura 1.
Figura 1. Área do modelo sob a curva ROC. Linha marmórea, linha de referência de AUC 0,5; linha azul, escore de modelo; linha verde, quatro categorias do modelo.
Propusemos a estratificação do escore dos modelos em quatro diferentes categorias de risco: risco baixo (para um valor de escore ≤ 9,88), médio-baixo (entre 9,881 e 12,25), médio-alto (entre 12,26 e 17,1) e alto (para um valor de escore > 17,1). Esta estratificação apresentou os valores de precisão prognóstica na tabela 4. Os valores para os pontos de corte foram selecionados por uma avaliação de coordenadas AUC e também de acordo com os que forneceram o melhor ajuste.
Tabela 4. Estratificação de risco de desenvolvimento de fístula faringocutânea para o modelo
Fístula faringocutânea | Grupos de risco | Total | |||
---|---|---|---|---|---|
Baixo risco | Baixo risco médio | Alto risco médio | Alto risco | ||
Não | 17 (89%) | 16 (80%) | 22 (73%) | 4 (24%) | 59 |
Sim | 2 (11%) | 4 (20%) | 8 (27%) | 13 (76%) | 27 |
Total | 19 | 20 | 30 | 17 | 86 |
Cerca de metade dos participantes (48%) que desenvolveram uma fístula faringocutânea foi classificada como sendo de alto risco. Ao associar os três maiores grupos de risco (alto + médio alto + baixo risco médio), 92% do desenvolvimento de fístulas poderiam ter sido previstas. Observamos, também, que, o aumento do grau de risco, foi positivamente associado ao desenvolvimento de fístula (p < 0,001 para Qui-quadrado para associação e análise de tendências).
Observamos uma alta especificidade para o grupo de alto risco (93%), com razão de verossimilhança positiva moderadamente alta (LR +) de (7,10) e valor preditivo positivo (VPP) e negativo (VPN) com resultados altos (76% e 79%, respectivamente) (tabela 5). Para os três grupos de risco, médio-baixo/médio alto e alto, a sensibilidade foi de 92%, razão de verossimilhança negativa (LR) de 0,25 e VPN de 89%.
Tabela 5. Estratificação de risco de modelo Cat2 e medidas de validade para as diferentes notas de corte
Corte | Fístulas n (%) |
Se % (IC 95%) |
Espec % (IC 95%) |
LR+ (IC 95%) |
LR− (IC 95%) |
VPP % (IC 95%) |
VPN% (IC 95%) |
---|---|---|---|---|---|---|---|
Alto risco (4) | 13 (48) |
48 (29-67) |
93 (86-99) |
7,10 (2,5-19,7) |
0,55 (0,38-0,80) |
76 (56-96) |
79 (70-89) |
Risco alto médio (3) + risco alto (4) |
21 (77) |
77 (62-93) |
55 (43-68) |
1,76 (1,2-2,5) |
0,39 (0,18-0,83) |
44 (30-58) |
84 (73-95) |
Risco baixo médio (2) + alto médio (3) + alto (4) |
25 (92) |
92 (82-102) |
28 (17-40) |
1,30 (1,0-1,5) |
0,25 (0,06-1,03) |
37 (25-48) |
89 (75-103) |
Se, sensibilidade; Espec, especificidade; LR+, probabilidade positiva; LR-, probabilidade negativa; VPP, valor preditivo positivo; VPN, valor preditivo negativo; IC 95%, intervalo de confiança.
Também foram calculadas as medidas de validade prognóstica para a classificação ASA para comparar com os resultados de Farwell et al.,8 e os valores obtidos estão na tabela 6. Assim, nosso modelo derivado é estatisticamente superior à classificação ASA, quando comparadas as medidas de validade de prognóstico.
Tabela 6. Estratificação de risco de classificação da ASA e medidas de precisão
ASA | Fístula n (%) |
Se % (IC 95%) |
Espec % (IC 95%) |
LR+ (IC 95%) |
LR- (IC 95%) |
VPP % (IC 95%) |
VPN% (IC 95%) |
---|---|---|---|---|---|---|---|
ASA 3 | 23 (48,9) |
47 (33-62) |
67 (59-76) |
1,48 (1-2,2) |
0,76 (0,57-,03) |
37 (25-49) |
76 (68-84) |
Se, sensibilidade; Espec, especificidade; LR+, probabilidade positiva; LR-, probabilidade negativa; VPP, valor preditivo positivo; VPN, valor preditivo negativo; IC 95%, intervalo de confiança.
As regras de decisão clínica (RDC) são instrumentos utilizados para aumentar a precisão dos profissionais de saúde na avaliação diagnóstica e prognóstica por meio do resumo da probabilidade de uma ocorrência de um determinado desfecho.
A fístula faringocutânea representa uma importante complicação pós-operatória nos pacientes laringectomizados. Até o momento, nenhuma RDC foi produzida para determinar o risco de desenvolvimento de fístula, motivo pelo qual realizamos este estudo. Como foram estudadas 13 variáveis, houve uma exigência na inclusão de 130 a 195 participantes. Nosso estudo incluiu 171, de forma que consideramos este número adequado.5Decidimos usar quatro categorias, a fim de manter o equilíbrio entre o melhor ajuste do modelo e a aplicação clínica, isto é, se por um lado com um maior número de categorias podemos ajustar a classificação de maneira mais eficaz ao escore de AUC original; por outro lado, a aplicabilidade clínica melhora com um menor número de categorias.
Na nossa análise, a incidência de fístula faringocutânea foi de 28,1%, que se assemelha a valores obtidos por outros autores.9 - 14
Para a maioria dos autores, o sexo masculino foi o mais representativo (em nossa amostra, 97,1%) e a ocorrência de fístula foi mais frequente em torno do 10º ao 15º dia do pós-operatório, como foi observado em 38% dos nossos casos.1 , 15 - 23
Nossa análise mostrou, de acordo com outros estudos,17 , 24 , 25 que, para o estágio avançado (IVA e IVB), parece haver uma maior incidência de fístula. Entretanto, esta relação não se mostrou estatisticamente significante em nosso estudo e nem em outros estudos da literatura.1 , 10 - 13 , 15 , 16 , 18 - 23 , 26 - 29
Confirmamos, em nossa análise univariada, que a QRT e a traqueostomia prévia são fatores associados à formação de fístula faringocutânea, assim como já observado por outros autores.9 , 12 , 13 , 24 , 26 , 30 , 31 A traqueostomia antes da cirurgia, entretanto, ao contrário dos nossos achados, não foi considerada um fator de risco para a fistulização por diversos autores,15 , 18 , 20 - 22 , 25 - 28 , 31 Na análise multivariada, estas variáveis permaneceram como potenciais fatores preditivos para o desenvolvimento da fístula, como alguns autores já haviam concluído.24 , 30
Em nossa análise univariada, a radioterapia antes da cirurgia não foi significante para o desenvolvimento da fístula faringocutânea, assim como já observado por outros autores.2 , 11 , 14 , 18 , 20 , 21 , 25 - 29 , 32 , 33 A sua inclusão no modelo final não adicionou mudanças significativas na precisão, por isso não foi incluída.
A classificação ASA, ao contrário de outros estudos,8 , 21 , 34 foi significante como fator de risco para o desenvolvimento de fístula tanto na análise uni quanto na multivariada, o que demonstra que a presença de comorbidades pré-operatórias e o estado funcional do paciente têm uma grande importância no desenvolvimento de complicações intra e pós-cirúrgicas.
Poucos autores avaliaram o valor preditivo da classificação ASA8 para este desfecho, apesar de sua importância ter sido demonstrada em nossa amostra, o que reflete o papel fundamental do controle pré-operatório das comorbidades do paciente. Paradoxalmente, avaliando cada comorbidade separadamente (DM, DPOC, doença hepática e doenças do coração), elas não demonstraram associação significante com o desenvolvimento de fístula (tanto na análise uni quanto na multivariada). Neste aspecto, a evidência disponível é contraditória, já que alguns autores relatam os mesmos resultados,11 , 13 enquanto outros autores encontraram uma relação significante entre a fístula e essas comorbidades.1 , 12 , 15 , 16 , 20 , 21 , 34
Depois da análise multivariada, a hipoalbuminemia pré-operatória (< 3,7 g/L) foi um fator independente para o desenvolvimento de fístula faringocutânea, o mesmo tendo sido observado por outros autores.12 , 15 , 20 , 34
Na literatura disponível, não encontramos uma regra de decisão clínica desenvolvida especificamente para estratificar pacientes por seu risco de desenvolver fístula faringocutânea após faringolaringectomia e laringectomia total.
Resumidamente, observou-se, para o grupo de alto risco, uma alta especificidade e, portanto, capacidade de determinar entre os pacientes de maior risco os que não irão desenvolver fístula faringocutêna. Por outro lado, o modelo apresentou alta sensibilidade para os grupos de indivíduos de médio/baixo + médio/alto + de alto risco que irão desenvolver uma fístula. Em um ambiente hospitalar, isso possibilita a distribuição dos recursos econômicos e pessoais direcionados principalmente para os pacientes com maior probabilidade para a ocorrência de complicações pós-operatórias, permitindo que os profissionais de saúde atuem de maneira mais intensiva e precoce nos períodos pré-operatório e pós-operatório no grupo de risco identificado.
Sabemos bem das terríveis consequências da fístula faringocutânea na qualidade de vida e prognóstico do paciente. Além disso, os recursos econômicos direcionados para o tratamento desta complicação acarretam num grande ônus financeiro que pode afetar o sistema de saúde de qualquer país do mundo.
Devemos ressaltar que o modelo derivado apresenta algumas limitações. A coleta das variáveis foi realizada retrospectivamente e, portanto, a fonte não era tão completa e precisa como seria com uma base prospectiva. Citamos como exemplos a ausência de dosagem de albumina nos registos pré-operatórios de 85 pacientes e a ausência de registros que caracterizassem o estado nutricional do paciente antes da cirurgia. Independentemente dos fatores limitantes, desenvolvemos uma RDC de fácil aplicação com valores significantes de precisão do prognóstico, ou seja, a área sob a curva ROC (AUC) de 0,76 (IC 95% 0,64-0,87).
Desenvolvemos um modelo matemático estatisticamente calculado com uma boa precisão para detectar os grupos com risco médio/alto de desenvolvimento de fístula faringocutânea. Esse modelo poderá permitir uma melhor distribuição dos recursos econômicos e pessoais voltados para os pacientes com maior probabilidade de ocorrência desta complicação. Os pontos mais fortes deste estudo são o fato de que ele representa a primeira RDC adequada e específica produzida para a estratificação de risco de desenvolvimento de fístula faringocutâneas que, adicionalmente, apresentou valores significativos de validade prognóstica. As principais limitações são seu caráter retrospectivo e unicêntrico e o pequeno tamanho da amostra. Apesar dessas limitações, nosso RDC teve um desempenho melhor que a classificação ASA - já validada para a predição deste desfecho.
Esta RDC é apresentada como uma proposta de validação multicêntrica prospectiva tardia, avaliação de confiabilidade e otimização. Gostaríamos também de avaliar a sua aplicabilidade prática entre profissionais de saúde e, portanto, fazer uma análise do impacto econômico e facilidade de uso da implementação entre os serviços de saúde em nosso país.