versão impressa ISSN 0101-2800
J. Bras. Nefrol. vol.36 no.1 São Paulo jan./mar. 2014
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20140008
As lesões de pele são comuns em pacientes portadores de doença renal crônica (DRC). Essas lesões atingem tanto a estrutura quanto a coloração dérmica.1 Muitas patologias sistêmicas ocasionam manifestações cutâneas, que podem ocorrer antes ou após a manifestação sistêmica. Esses achados são de extrema importância na elucidação diagnóstica.2
A DRC faz referência a um diagnóstico sindrômico de perda progressiva e irreversível da função renal. Caracteriza-se pela degradação das funções bioquímicas e fisiológicas de todos os sistemas do organismo, gerando distúrbios neurológicos, gastrointestinais, cardiovasculares, pulmonares, hematológicos, endócrino-metabólicos e dermatológicos, ocorrendo secundariamente ao acúmulo de catabólitos (toxinas urêmicas), entre outras alterações orgânicas.3
Estudos recentes mostram um aumento da DRC em vários países, sendo que a principal causa é o diabete melito (DM) que, quando não tratada, evolui para o tratamento dialítico. Houve um acréscimo do número de pacientes diabéticos inclusos no processo de substituição da função renal nos últimos anos na maioria dos serviços de diálise, principalmente de pacientes diabéticos tipo 2, inclusive em nosso meio.4
Com o avanço tecnológico, a Nefrologia promoveu um aumento da sobrevida dos pacientes renais crônicos. Houve melhora na qualidade de vida, com terapias de substituição da função renal como diálise peritoneal, hemodiálise ou transplante renal, e, consequentemente, surgiram algumas complicações da DRC e da diálise por tempo prolongado; dentre estas, as lesões de pele e mucosas.4-7
O prurido urêmico acomete mais da metade dos indivíduos dialisados e, quando intenso, gera comprometimento da qualidade de vida dos mesmos.8 A causa do prurido urêmico não está completamente estabelecida. Fatores implicados incluem xerose, hiperparatireoidismo secundário, aumento dos níveis séricos de fosfato e magnésio, proliferação de mastócitos intradérmicos, contato com materiais das membranas de diálise, níveis elevados de histamina no plasma e anemia ferropriva.9,10
O aumento da pigmentação da pele pode ser decorrente da elevada concentração de melanina na camada basal e superficial da derme. O acúmulo de hormônio estimulador de beta-melanócitos (B-MSH) consequente à diminuição da função renal tem sido responsabilizado pela hiperpigmentação cutânea. Dentre outros fatores, o vírus da hepatite C está relacionado com o distúrbio do metabolismo das porfirinas que podem gerar a hiperpigmentação cutânea.11,12
Estima-se que mais de 70% da população em diálise apresenta alterações ungueais como: unhas meio a meio, que se caracteriza por palidez proximal e coloração eritemato-acastanhada na porção distal da unha; ausência de lúnula, sendo característica a não visualização da parte visível da matriz ungueal; hemorragia em estilhas surge como linhas filiformes, longitudinais, de coloração avermelhada escura na região distal da lâmina ungueal, dentre outras.13,14
Os objetivos do presente estudo foram avaliar a prevalência das principais dermatoses em pacientes em programa de hemodiálise em um único centro.
Após aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da Faculdade Assis Gurgacz (Parecer nº 227/2011-CEP/FAG), a pesquisa foi realizada na Renalclin, que atende a 25 municípios da região Oeste do Paraná, para realização de procedimentos dialíticos, hemodiálise e diálise peritoneal. No momento da pesquisa, 162 pacientes se encontravam em tratamento hemodialítico na instituição, sendo que foi oferecida a possibilidade de participação na pesquisa a todos os pacientes em hemodiálise (n = 145). O protocolo de atendimento incluiu: entrevista, exame físico e exames laboratoriais: ureia, creatinina, potássio, cálcio, fósforo, KT/V, TGO, paratormônio, hemoglobina, albumina, ferro sérico, ferritna, % saturação da transferrina e transferrina. O exame clínico foi realizado antes ou após o procedimento de hemodiálise individualmente em consultório anexo. O exame físico foi realizado de forma sistemática, avaliando os cabelos, a pele, as mucosas e as unhas.
A coleta de dados ocorreu no período de dezembro de 2011 a janeiro de 2012. Os critérios de inclusão utilizados foram todos os pacientes em hemodiálise na Renalclin Oeste que assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido autorizando a pesquisa. Os pacientes com necessidades de tratamento dermatológico foram encaminhados para especialistas co-orientadoras do estudo. Os dados foram armazenados em banco de dados do programa Microsoft Excel e analisados por meio das estatísticas descritivas: média aritmética, desvio padrão, valores mínimo e máximo, frequência bruta e percentual. As variáveis contínuas foram comparadas usando o teste t de Student e as categóricas o teste do Qui-quadrado ou Exato de Fisher conforme o tamanho da amostra.
Participaram do estudo 145 pacientes com idade média de 53,7 ± 14,7 anos (variando de 19 a 83 anos), predominando o sexo masculino (64,1%) e a raça branca (90,0%), sendo que 13 não aceitaram participar do estudo e quatro foram a óbito. O tempo médio de diálise foi de 43,3 ± 42,3 meses (variando de dois a 192 meses). A duração da sessão de hemodiálise variou de 3 a 4 horas, com média de 3 horas e 30 minutos. A hemodiálise na Renalclin é realizada em máquinas Fresenius 4008 B (Fresenius Medical Care, Berlim, Alemanha), com fluxo sanguíneo de 300-400 mL/min, utilizando dialisador de polisulfona ou acetato de celulose. A fístula arteriovenosa é a principal via de acesso para a realização da hemodiálise. As prescrições são individualizadas de acordo com as necessidades de cada paciente. A média da dose de eritropoietina utilizada foi de 36.428 U/mês, de calcitriol foi de 1,43 mcg/semana e de ferro parenteral foi de 300 mg/semana. As principais doenças de base foram: hipertensão arterial em 33,8%, diabete melito em 29,6% e glomerulonefrite crônica em 13,1%.
A Tabela 1 apresenta as principais características dos pacientes. Dos 145 pacientes avaliados, quatro apresentaram sorologia positiva para hepatite B, três para hepatite C e um sorologias positivas para ambas as hepatites. Não encontramos em nosso estudo nenhum paciente HIV positivo. As principais dermatoses observadas foram: xerose em 109 (75,2%), ecmose em 87 (60,0%), prurido em 78 (53,8%) e lentigo em 33 (22,8%) pacientes. A Tabela 2 apresenta todas as dermatoses encontradas e a Tabela 3 as manifestações cutâneas e de mucosas observadas nos pacientes em programa de hemodiálise. Quando comparamos os pacientes com e sem prurido, observamos que houve diferença estatisticamente significativa nos níveis de potássio, mais elevados nos pacientes com prurido. Os níveis plasmáticos de fósforo foram superiores no grupo com prurido, porém sem diferença estatisticamente significativa (Tabela 4).
Tabela 1 Principais características dos 145 pacientes em programa de hemodiálise
Variável | Frequência | Porcentagem (%) |
---|---|---|
Sexo | ||
Masculino | 93 | 64,1 |
Feminino | 52 | 35,8 |
Raça | ||
Branca | 128 | 90,0 |
Negra | 17 | 11,7 |
Causa da IRC | ||
Hipertensão arterial | 49 | 33,8 |
Diabete melito | 43 | 29,6 |
Glomerulonefrite | 19 | 13,1 |
Indeterminada | 23 | 15,9 |
Outras | 11 | 7,6 |
Tabela 2 Manifestações em anexos observadas em 145 pacientes em hemodiálise
Dermatoses | Total | Porcentagem (%) |
---|---|---|
Cabelos | ||
Queda de cabelo | 48 | 33,1 |
Cabelo seco | 39 | 26,9 |
Queda do pelo corporal | 9 | 6,2 |
Hirsurtismo | 1 | 0,7 |
Unhas | ||
Onicólise | 33 | 22,7 |
Unhas meio a meio | 32 | 22,0 |
Ausência de lúnula | 29 | 20,0 |
Hemorragia em estilhas | 28 | 19,3 |
Hiperqueratose subungueal | 20 | 13,8 |
Onicomicose | 16 | 11,0 |
Linhas de Beau | 4 | 2,7 |
Paroniquia | 2 | 1,4 |
Coiloniquia | 2 | 1,4 |
Leuconiquia | 1 | 0,6 |
Tabela 3 Manifestações cutâneas e de mucosas observadas em 145 pacientes em hemodiálise
Dermatoses | Total | Porcentagem (%) |
---|---|---|
Pele | ||
Xerose | 109 | 75,2 |
Ecmose | 87 | 60,0 |
Prurido | 78 | 53,8 |
Lentigo | 33 | 22,8 |
Ceratose | 33 | 22,8 |
Púrpura senil | 23 | 15,9 |
Ca da pele | 5 | 3,4 |
Escoriações neuróticas | 5 | 3,4 |
Membranas Mucosas | ||
Aftas | 25 | 17,2 |
Língua saburrosa | 21 | 14,5 |
Hipercromia conjuntival | 8 | 5,5 |
Queilite angular | 4 | 2,7 |
Herpes simples | 3 | 2,0 |
Tabela 4 Características dos pacientes em programa de hemodiálise comparando aqueles com e sem prurido
Variável | Com Prurido(n = 78) | Sem Prurido(n = 67) | Valorde p |
---|---|---|---|
Sexo | |||
Masculino | 52 (66,6%) | 41 (61,1%) | 0,493* |
Feminino | 26 (33,3%) | 26 (38,8%) | |
Idade | 54,3 + 15,3 | 52,9 + 14,0 | 0,569† |
Raça Branca | 69 (88,5%) | 59 (88,1%) | 0,940* |
Causas de DRC | |||
Hipertensão arterial | 25 (32,0%) | 24 (35,8%) | 0,691* |
Diabete melito | 24 (30,7%) | 19 (28,4%) | 0,765* |
Glomerulonefrite | 10 (12,8%) | 9 (13,4%) | 0,914* |
Exames laboratoriais | |||
Ureia Pré | 136 + 40,8 | 137 + 379 | 0,879† |
Ureia Pós | 44 + 18,1 | 45 + 17,6 | 0,737† |
Creatinina | 10,3 + 3,1 | 10,9 + 4,0 | 0,321§ |
Potássio | 5,8 + 1,2 | 5,1 + 1,4 | 0,001† |
PRU | 0,66 + 0,0 | 0,66 + 0,0 | ‡1,000† |
Cálcio | 9,2 + 0,9 | 9,0 + 1,2 | 0,265§ |
Fósforo | 6,3 + 6,0 | 5,9 + 1,8 | 0,577§ |
Paratormônio | 317,6 + 435,8 | 335,4 + 238,0 | 0,757§ |
Hemoglobina | 10,8 + 2,0 | 10,6 + 1,9 | 0,540† |
*Teste de qui-quadrado;
†Teste t para variâncias homogéneas;
‡Teste exato de Fisher;
§Teste t para variâncias não homogéneas.
Com o avanço tecnológico, a Nefrologia promoveu um aumento da sobrevida dos pacientes renais crônicos, melhora na qualidade de vida dos mesmos por meio das terapias de substituição da função renal como diálise peritoneal, hemodiálise ou transplante renal e, consequentemente, surgiram algumas complicações inerentes ao método dialítico ou à doença de base, dentre elas as lesões de pele.2,4,6
O envolvimento cutâneo na DRC é caracterizado por uma heterogeneidade de manifestações, e muitos pacientes apresentam várias lesões associadas, conforme mostrado em nosso estudo. As principais dermatoses observadas foram xerose, ecmose, prurido e consequentes escoriações e o lentigo, dentre outras manifestações de pele, anexos e de mucosas.4,15,16
A xerodermia é uma complicação frequentemente relatada pelos doentes renais crônicos terminais e a literatura revela uma prevalência ao redor de 70% pacientes em programa dialítico, dado corroborado por nosso estudo. O mecanismo fisiopatogênico da xerose é desconhecido, podendo estar numa anormalidade estrutural ou funcional das glândulas écrinas em indivíduos com DRC em estágio avançado14-16.
A equimose é uma alteração cutânea comum em hemodialisados, ocorrendo secundariamente a distúrbios plaquetários. Elevadas concentrações de ureia podem levar a alterações da agregação plaquetária, ocorrendo também o acúmulo de ácido guanidinossuccinico. Esse ácido inibe a atividade plaquetária induzida pela adenosina difosfato, consistindo, assim, em um dos fatores responsáveis pelo sangramento urêmico.15,16
A causa do prurido urêmico não é completamente compreendida, há fatores desencadeantes como xerose, hiperparatireodismo secundário, elevados níveis séricos de fosfato e magnésio, proliferação de mastócitos intradérmicos, materiais das membranas de diálise, aumento dos níveis de histamina no plasma e anemia ferropriva. Pode se apresentar de forma localizada ou generalizada, e é um sintoma frequente da DRC, especialmente em pacientes em programa dialítico.17,18 Em nosso estudo, 53,8% dos pacientes apresentaram prurido, dado semelhante ao observado por Lupi et al. em estudo recente.15,16,19
Quando comparamos pacientes com e sem prurido observamos níveis mais elevados de potássio e fósforo naqueles com prurido, o que pode apontar para uma falta de aderência dietética ou menores doses de diálise nestes indivíduos. Verificamos que o KT/V encontra-se baixo, e o tempo de diálise abaixo do recomendado. Uma melhor abordagem do paciente adequando a dose de diálise pode reduzir a incidência do prurido.
A estomatite aftosa crônica é uma afecção frequente da mucosa bucal, caracterizando-se pelo aparecimento de lesões ulcerativas em qualquer região da mucosa oral. As lesões podem variar em tamanho, número e local de acometimento. Geralmente, regridem de forma espontânea, podendo ser recorrente. Possui etiologia multifatorial, estando relacionada a traumas, ou doenças sistêmicas, como as infecções e as doenças imuno-hematológicas. Em nossa pesquisa, encontramos uma prevalência de 17,2%.20,21
Alterações da língua foram observadas em 14,5% dos pacientes, caracterizando a língua saburrosa (língua branca e pregueada), dado menos frequente do que observado por Junior et al., em estudo realizado em 2001, no qual verificaram a ocorrência superior a 50%, caracterizando a língua saburrosa como a alteração de mucosa mais frequente.4,21
Foram encontradas outras desordens capilares como queda de cabelo em 33,1% e cabelo seco em 26,9%. Sua causa nos hemodialisados crônicos tem sido atribuída à heparina, às desordens endócrinas, à hipervitaminose A, às toxinas acumuladas e à terapia medicamentosa utilizadas no manejo da DRC ou ao efeito de drogas, como betabloqueadores, indometacina, metildopa, cimetidina e alopurinol, bem como a anemia ferropriva.4,8,11
As manifestações ungueais observadas em nosso estudo foram onicólise em 22,7%, unhas meio a meio em 22% e ausência de lúnula em 20%. Martinez et al., em estudo recente realizado numa população brasileira, observaram ausência de lúnula em 62,9% dos pacientes e unhas meio a meio em 14,4% dos mesmos, alterações mais frequentes na população dialítica quando comparada com controles.14,15,21,22
A ausência de lúnula caracteriza-se pela não visualização da parte visível da matriz ungueal, podendo ocorrer em consequência de uma variedade de manifestações metabólicas, incluindo a anemia. A hemorragia em estilhas surge como linhas filiformes, longitudinais, de coloração avermelhada escura, na região distal da lâmina ungueal, sendo uma manifestação ungueal frequente nestes pacientes.14,15,21,22
Lentigo, púrpura senis e a alteração da cor da pele também foram observadas em nosso estudo. Acredita-se que a palidez ocorre devido à anemia crônica e o tom amarelo-acinzentado se deva ao acúmulo de carotenoides e pigmentos nitrogenados na derme. Já a hiperpigmentação pode ser decorrente do excesso de melanina na camada basal e superficial da pele. Múltiplas análises levam a crer que o lentigo, púrpuras e outras dermatoses ocorrem devido ao envelhecimento acelerado da pele de acordo com o tempo de diálise.4,13,16
Manifestações cutâneas são muito comuns em doentes renais crônicos e influenciam na qualidade de vida desses pacientes. Com o avanço da medicina, estes pacientes são melhor conduzidos atualmente e algumas dermatoses tornaram raras, como a neve urêmica. Porém, algumas dermatoses ainda são de difícil controle como a xerodermia e o prurido urêmico. Verificamos em nosso estudo a presença de mais do que uma dermatose por paciente. Outros estudos são necessários para melhor caracterização e manejo destas dermatoses.