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Desafios clínicos e psicossociais no tratamento de um paciente com síndrome de Proteus

Desafios clínicos e psicossociais no tratamento de um paciente com síndrome de Proteus

Autores:

Matheus Bertanha,
Regina Moura,
Marcone Lima Sobreira,
Lied Martins Santiago Pereira,
Rodrigo Gibin Jaldin,
Manuella Pacífico de Freitas Segredo,
Hamilton Almeida Rollo,
Winston Bonetti Yoshida

ARTIGO ORIGINAL

Jornal Vascular Brasileiro

versão impressa ISSN 1677-5449versão On-line ISSN 1677-7301

J. vasc. bras. vol.14 no.4 Porto Alegre out./dez. 2015

http://dx.doi.org/10.1590/1677-5449.005615

INTRODUÇÃO

A Síndrome de Proteus foi originalmente descrita por Cohen e Hayden em 19791 como uma nova desordem caracterizada pelo crescimento descontrolado de tecidos e órgãos. Essa doença foi designada Síndrome de Proteus (SP) por Wiedemann et al. em 19832, como forma de descrever a grande variedade de expressões clínicas, as quais incluem a presença de gigantismo das mãos, pés ou ambas as extremidades, hipertrofia craniofacial3, anormalidades ósseas4, escoliose5, hamartomas de tecidos moles, nevo verrucoso pigmentado, anomalias viscerais e acelerado crescimento nos primeiros anos de vida do paciente6-8. Há apenas aproximadamente 200 casos descritos em todo o mundo9.

Outros quadros foram associados a esta síndrome posteriormente, como: hemi-hipertrofia parcial ou completa, macrodactilia, exocitose, massa giriforme palmar ou plantar, nevo epidérmico linear e tumores de subcutâneo com componente vascular sanguíneo e linfático7,10,11. Parte dessas alterações são encontradas em outras síndromes, como Klippel-Trenaunay, Maffucci e neurofibromatose, entretanto, a SP se diferencia das demais por apresentar, caracteristicamente, malformações mesodérmicas e assimétricas9,12.

O objetivo deste relato é demonstrar a evolução clínica de um paciente portador da SP, o qual apresentava um quadro de grave desnutrição além de problemas psicossociais, que foram revertidos após a amputação dos membros inferiores muito afetados.

PARTE I - SITUAÇÃO CLÍNICA

Uma criança de três anos de idade, do sexo masculino, acompanhado pela Equipe de Cirurgia Vascular, apresentando gigantismo de ambos os pés, gigantismo de perna e coxa esquerdas, nevo verrucoso e hiperpigmentado em coxa, varizes de membro inferior esquerdo e hemangioma plano em dimídio esquerdo, incluindo braço e perna esquerdos, remetendo inicialmente a Síndrome de Klippel-Trenaunay (Figura 1). Entretanto apresentava, ainda, escoliose de coluna cérvico-torácica e hamartoma em hemitórax direito, o que pode então melhor caracterizar o caso como SP (Figura 1).

Figura 1 Hipertrofia de ambas as extremidades inferiores, pior à esquerda (A, B); Hemangioma (C). 

Ao longo de quatro anos foi realizado apenas o acompanhamento clínico da criança. Nenhuma intervenção foi autorizada pelos familiares nesse período. Foram realizados vários exames complementares durante todo o seguimento clínico. Entre eles, o ultrassom duplex vascular (USD) demonstrou que o sistema venoso profundo era normal nos membros inferiores, mas pôde-se observar a presença de uma veia ciática posterior dilatada no membro inferior esquerdo, além de malformações arteriovenosas superficiais com comunicações fistulosas nesse membro. A angiotomografia e a angiorressonância não acrescentaram nada ao obtido pelo USD. Exames de raios X, tomografia computadorizada (TC), ressonância nuclear magnética (RNM), eletrocardiograma (ECG), exames hematológicos e urinários não demonstraram alterações significativas, exceto pelas alterações ortopédicas já descritas.

Durante o acompanhamento, a criança apresentou piora progressiva da hipertrofia dos pés e passou a apresentar deterioração ponderal intensa. Além da desnutrição, houve piora da deambulação causada, principalmente, pela hipertrofia dos pés (Figura 2) e, devido a suas deformidades, tinha um perfil psicológico introvertido, com poucos amigos e relacionamentos sociais fracos.

Figura 2 Paciente apresentando hipertrofia de ambos os membros inferiores, hamartomas, hemangiomas e desnutrição. 

Diante disso, após quatro anos, a família finalmente concordou com a proposta de amputação bilateral dos membros inferiores.

As opções de tratamento para a SP são:

1) Acompanhamento clínico expectante;

2) Embolização das malformações vasculares com microesferas;

3) Cirurgias plásticas reconstrutoras;

4) Amputações de membros.

PARTE II - O QUE FOI FEITO

Uma equipe multidisciplinar composta de ortopedistas, fisioterapeutas, cirurgiões vasculares, cirurgiões plásticos, pediatras e psiquiatras chegou a consenso que a melhor opção seria a realização da amputação transfemoral do membro inferior esquerdo e transtibial do membro inferior direito. Essa opção foi apresentada aos pais da criança e eles aceitaram a sugestão.

O procedimento foi realizado em um único ato operatório: amputação transfemoral à esquerda e transtibial à direita. No intraoperatório, no membro inferior direito, a pele e demais tecidos profundos eram de aspecto normal; no entanto, no membro inferior esquerdo existiam malformações vasculares, com emaranhados de vasos com fibrose e trombose, sem sangramento ativo, e fístulas arteriovenosas superficiais. Os procedimentos foram realizados sem intercorrências. No pós-operatório, a cicatrização do lado direito ocorreu de forma adequada e rápida. Porém no lado esquerdo, o mesmo lado das malformações vasculares, ocorreu deiscência e a cicatrização deu-se de forma lenta, por segunda intenção. Infecção do sítio operatório deiscente foi tratada com antibióticos e a cicatrização completa ocorreu após dois meses.

Após um ano das amputações, a criança já estava adaptada e reabilitada com próteses em ambos os membros inferiores e estava recuperada da desnutrição (Figura 3). Também apresentou melhora psicossocial, com recuperação da autoconfiança, ressocialização, apresentando mais disposição para participar de jogos e brincadeiras normais para a idade. Teve bom desempenho intelectual escolar, acompanhando sem dificuldade as atividades apropriadas para a idade.

Figura 3 Seguimento pós-cirúrgico com reabilitação com próteses de membros inferiores e melhoria nutricional. 

DISCUSSÃO

O diagnóstico da SP permanece difícil nos dias atuais13,14 e os critérios para o diagnóstico são controversos8. Clinicamente, a doença envolve o aparecimento de hipertrofias de pele, tecido conectivo, cérebro, ossos e outros tecidos. O mapeamento genético da SP identifica uma mutação de ativação somática da AKT1. Essa enzima é chamada de v-aktmurinethymoma viral oncogenehomolog 1 (AKT1), orproteíno-quinaseB-alfa (PKB-ALPHA), a qual pertence à superfamília das proteíno-quinases. A AKT1 é um dos mais importantes mediadores de resposta à insulina, fator de crescimento similar à insulina1 (IGF1) e à glicose. A ativação somática da mutação da AKT1 promove crescimento desproporcional dos tecidos e também favorece surgimento de neoplasias15.

O tratamento da SP costuma ser complexo16. Lesões envolvendo ovários e testículos devem ser tratadas agressivamente devido ao risco de neoplasias17. Lesões gastrointestinais e renais podem ser tratadas conservadoramente, com seguimento rigoroso por exames de imagem seriados18. Nos pulmões podem ocorrer alterações enfisematosas, por vezes demandando pneumectomias19. O envolvimento da bexiga é raro20. Avaliações das vias aéreas e tonsilas devem ser feitas antes das cirurgias, uma vez que são frequentes malformações21, o que pode dificultar a intubação orotraqueal. Os distúrbios craniofaciais ocorrem em cerca de 30% dos pacientes e o tratamento reconstrutivo deve ser feito precocemente, por se tratar de um quadro evolutivo3,22,23. Como é alta a incidência de neoplasias, é fundamental a sua pesquisa sistemática24.

As extremidades costumam apresentar deformidades de grandes proporções, abrangendo tecidos moles, ossos e vasos sanguíneos. O tratamento com cirurgia plástica reconstrutora é desafiador e, muitas vezes, impeditivo25, devido à associação com malformações de sistemas vasculares profundos. Consequentemente, em alguns casos, a alternativa restante é a amputação do membro acometido; entretanto observa-se, frequentemente, resistência dos familiares a esse tratamento.

Neste caso, quando foi proposta a amputação dos membros inferiores, por não haver tratamento restaurador possível, houve relutância dos pais em aceitá-la, o que acabou por retardar o tratamento definitivo, agravando o estado nutricional e psicológico do paciente. Entretanto, com a evolução do quadro, os pais aceitaram a cirurgia, que teve boa evolução, permitindo que logo se iniciasse a reabilitação com uso de próteses, às quais o paciente se adaptou com facilidade. Houve boa reintegração social, melhora do estado ponderal e, consequentemente, da sua qualidade de vida.

Em conclusão, as deformidades da SP têm uma grande variedade de apresentações clínicas e deformidades complexas que podem causar um forte impacto negativo na autoestima do paciente. O tratamento deve ser realizado por equipe multidisciplinar, muitas vezes tendo cunho paliativo e, algumas vezes, quando uma cirurgia reconstrutiva é impossível, acaba necessitando de amputações maiores para preservar a vida de pacientes muito afetados. Apesar de as amputações representarem uma situação extrema, elas podem trazer bons resultados por possibilitarem a reabilitação física com uso de próteses, permitindo a reintegração à sociedade, além de promoverem a recuperação nutricional. A SP é uma doença pouco compreendida e rara, contudo os portadores de SP apresentam limitações graves e, assim, a apresentação desses casos raros pode ser útil como orientação para o tratamento de situações semelhantes.

REFERÊNCIAS

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