versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.23 no.9 Rio de Janeiro set. 2018
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018239.11222018
Os Transtornos Alimentares (TA) são doenças graves, descritos como quadros psiquiátricos que atingem, principalmente, adolescentes e adultos jovens do sexo feminino, podendo gerar consequências biológicas e psicológicas com morbidade e mortalidade elevada1,2. São doenças com curso crônico, de difícil tratamento, com desdobramentos para o estado nutricional do indivíduo, podendo favorecer tanto a desnutrição quanto a obesidade3. São expressivamente mais comuns em mulheres (90%) do que em homens (10%), conforme apontado no trabalho de revisão de Teixeira et al.4 realizado com estudos nacionais e internacionais, e se relacionam à maneira como o sujeito vivencia seu corpo e (re)organiza sua imagem corporal5.
Entre os principais TA, encontram-se a anorexia nervosa (AN) e a bulimia nervosa (BN), sendo a bulimia mais frequente que a anorexia, embora esta apresente maior morbimortalidade6. A AN é caracterizada pela recusa do indivíduo em manter peso adequado para sua estatura, medo intenso de ganhar peso, recusa alimentar associada à distorção da imagem corporal, e negação da própria condição patológica2.
Pelo modo como foi concebida na literatura científica desde sua identificação, tornou-se usual associar a ocorrência e a predisposição à doença às mulheres e minimizar sua expressão em homens7, o que deve ser considerado com cautela. Por ser incomum nos garotos, os profissionais de saúde devem estar atentos quando identificam desnutrição grave sem causa aparente, pois o rápido início do tratamento é fundamental para o bom prognóstico8.
Os trabalhos que se dedicam à adolescência como segmento geracional mais atingido pelos TA buscam atribuir o adoecimento às características próprias da idade, como a importância conferida à avaliação dos pares e necessidade de aceitação social, como aspectos predisponentes para desenvolver tais patologias9,10.
Alguns autores no Brasil e exterior têm apontado para a carência de dados etnográficos em instituições de saúde voltadas aos TA11-14. Krauth et al.12 afirmam que mesmo sendo de ocorrência rara, se comparadas a outras patologias, a AN e a BN deveriam ser de grande interesse social em função dos altos custos financeiros para os sistemas de saúde e impacto para a saúde da população, sobretudo juvenil.
Entretanto, no Brasil, são raros os estudos que dimensionam o problema na população sob risco13, bem como os serviços públicos de saúde que atendem os TA13,15. Estudos internacionais apontam escassez de informações disponíveis para orientar os profissionais no tratamento da AN16. Os trabalhos que se dedicam ao ponto de vista dos doentes apontam que, para estes, a AN não significa exclusivamente uma preocupação com a alimentação e o peso, mas uma forma de lidar com a complexidade das relações sociais, sendo surpreendente que os tratamentos ainda invistam em uma perspectiva individualista de cuidado14.
Além disso, há uma lacuna no currículo dos cursos de graduação em saúde, pois em muitos casos não são contemplados conteúdos de modo a capacitar os profissionais e equipes de saúde para lidar com a complexidade do problema13.
O cenário encontrado indica a relevância do tema para a Saúde Coletiva, em especial, para o campo da saúde do adolescente no Brasil17. A pesquisa se desenvolveu em serviço público de saúde na cidade do Rio de Janeiro, evidenciando um contexto institucional de atenção dramático, com os cuidados prestados ao adolescente com TA e seus familiares bastante pulverizados. Torna-se crucial pensar a organização de políticas de saúde e oferta de programas e serviços que possam atender de forma integral a população adolescente com TA.
A investigação teve por objetivos conhecer, do ponto de vista socioantropológico, a dinâmica de funcionamento cotidiano de um serviço público de saúde especializado no atendimento aos TA, bem como o processo de adoecimento vivenciado por adolescentes que enfrentam publicamente a AN. Neste artigo, priorizou-se tratar dos desafios inerentes ao atendimento dos adolescentes, deixando para outro momento sua experiência subjetiva de adoecimento.
Trata-se de um estudo socioantropológico que utilizou o método etnográfico18 para conhecer a dinâmica de funcionamento de um Programa de Transtornos Alimentares (PTA), voltado ao atendimento de adolescentes, situado em um hospital público do Rio de Janeiro, com trabalho de campo realizado entre novembro de 2011 e setembro de 2013. O nome da instituição foi mantido em sigilo por questões éticas.
A abordagem teórica do problema de pesquisa considerou suas dimensões sociológicas19, destacando seu curso crônico20,21e a possibilidade do processo de adoecimento ser apropriado pelo sujeito que sofre como uma via de constituição de si ou, em outras palavras, de individualização22. A fecundidade da perspectiva etnográfica23 em serviços de saúde possibilita acompanhar as interações sociais entre adolescentes, seus familiares e profissionais de saúde, captar os significados e os conflitos envolvidos nas negociações e decisões para o tratamento, bem como conhecer os diferentes modos de compreensão da doença e seu enfrentamento.
A proposta de pesquisa incluiu, em um primeiro momento, observar as reuniões da equipe de profissionais que integram o Programa, as consultas médicas e da nutrição e a sala de espera, onde adolescentes e seus familiares aguardam o atendimento, de modo a captar a dinâmica de funcionamento do serviço ou, segundo Malinowski24, “os imponderáveis da vida real”. Posteriormente, buscou-se entrevistar usuários que se encontravam em atendimento no Programa, para que se pudesse garantir um momento específico de escuta e diálogo com adolescentes em acompanhamento, fora da rotina do atendimento.
Assim, a observação do cotidiano do atendimento foi registrada minuciosamente em diário de campo, pelo período de 22 meses, com visitas semanais da mesma pesquisadora no dia de funcionamento do ambulatório de TA. Em segundo momento, 11 adolescentes entre 12 e 18 anos foram entrevistados, 10 do sexo feminino e um do masculino, o que reflete a distribuição desigual dos TA entre homens e mulheres, uma vez que só haviam dois adolescentes do sexo masculino em atendimento regular no PTA. O critério para inclusão no estudo era estar em acompanhamento no serviço, todos os que cumpriam tal requisito foram convidados para a entrevista. Os nomes utilizados são fictícios, para manter o anonimato dos participantes preservado.
As entrevistas ocorreram ao final dos turnos de atendimento, quando os consultórios estavam vazios. Assim, não se corria o risco de interferir na rotina de atendimentos ou da entrevista ser interrompida. A análise dos dados reuniu o diário de campo, advindo da observação participante, e transcrição das entrevistas, tendo se organizado mediante os eixos de interpretação: a experiência subjetiva de adoecimento por parte dos adolescentes; o atendimento aos adolescentes e seus familiares e a experiência da internação hospitalar25.
Com abordagem interdisciplinar, o PTA vem atendendo adolescentes de ambos os sexos que sofrem de AN e/ou BN. Foi criado em 2005, com ambulatório que funciona semanalmente e conta com equipe formada por psicólogos, clínicos gerais, psiquiatra e nutricionista, além de residentes destas especialidades. Destaca-se a importância desse espaço dentro de um serviço exclusivamente voltado para a saúde adolescente, público reconhecidamente mais atingido pelos TA. No programa, a maioria dos adolescentes tem menos de 16 anos de idade, sendo reconhecidos pela legislação referente à ética em pesquisa com seres humanos como sujeitos “vulneráveis”26. Considerando que os adolescentes frequentavam as consultas acompanhados pelos responsáveis, que terminavam por ocupar o lugar dos filhos na interação com os profissionais de saúde, evitou-se reproduzir no contato da pesquisadora com os adolescentes tal mediação, no que concerne à autorização escrita para a entrevista. Assim, o contato da pesquisadora com os responsáveis era feito em geral na sala de espera, acompanhados de seus filhos, momento em que estes eram convidados para participar da pesquisa, com ciência de seus pais. Avaliou-se na ocasião que a isenção do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) dos responsáveis seria essencial na construção do vínculo entre pesquisadora e adolescentes nesse contexto específico em que o poder decisório dos adolescentes já estava extremamente reduzido pela presença da doença. Uma parcela razoável daqueles que recebem atendimento não o faz por vontade própria, mas constrangidos pelos responsáveis. A inclusão do adolescente em uma pesquisa sem que fosse de seu interesse participar certamente comprometeria os dados obtidos nas entrevistas.
Desse modo, o Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro aprovou a supressão do TCLE dos pais ou responsáveis, sendo a solicitação de autorização formal (TCLE) e vínculo da pesquisadora estabelecido diretamente com os adolescentes, dimensão que se revelou crucial para a aproximação, interação e imersão no universo social destes usuários.
Desde a definição de um diagnóstico preciso, o manejo dos conflitos familiares que eclodem a partir da doença de um filho adolescente, as muitas ocasiões em que os pacientes abandonam o tratamento, com recaídas e novas internações, até o enfrentamento dramático das tentativas de suicídio, são muitos os desafios postos aos profissionais de saúde que acolhem adolescentes com TA.
A relação entre equipe de saúde e adolescentes atendidos no PTA era mediada pelos familiares, sendo comum que eles entrassem no consultório acompanhando as filhas (durante a pesquisa, a maioria de adolescentes atendidos eram mulheres, por isso optou-se por tratá-las no feminino), embora isso não ocorresse com todos os profissionais. É reconhecido que a avaliação da saúde das crianças é frequentemente baseada nas respostas dos pais27. Por estarem acostumados aos atendimentos em pediatria, em que estavam sempre presentes, ou mesmo por não confiarem que suas filhas estariam aptas a estabelecer uma relação médico-paciente de forma autônoma, os responsáveis não aprovavam a postura profissional de serem ouvidos em momento distinto do atendimento. Muitos sentiam necessidade de falar à equipe o que ocorria, acreditando que detinham conhecimento profundo sobre o que se passava e, por vezes, deixando pouco espaço para as adolescentes.
Na presença dos responsáveis, muitas vezes as adolescentes não se expressavam, mesmo quando as questões eram nomeadamente a elas dirigidas. Pareciam evitar o contato com o mundo que as cerca, embora seu silêncio enunciasse mais a respeito de sua condição do que se tentassem responder aos questionamentos dos profissionais de saúde28. A introspecção de adolescentes com AN é uma característica reconhecida de seus portadores e consistentemente estabelecida na literatura científica29,30. Ao contrário, os responsáveis costumavam ser bastante participativos, fornecendo detalhes íntimos da vida das adolescentes, que talvez demorassem a ser por elas revelados. O desafio da equipe é considerar ambos adolescente-filho/a e responsáveis como uma díade que se complementa, sem menosprezar o relato e o vínculo com quem está adoecido e necessitando receber tratamento.
Muitos dos avanços no tratamento da AN eram baseados em acordos travados entre o profissional de saúde e a adolescente. Strauss et al.31 destacam que o processo de negociação dos pacientes com profissionais de saúde é um aspecto significativo para o entendimento da organização hospitalar. Mas há ainda as negociações dos profissionais com as usuárias e suas famílias. A cada semana pequenas mudanças eram duramente negociadas e, por menores que fossem, as usuárias anunciavam que não conseguiriam cumpri-las, revelando o grau de sofrimento envolvido no enfrentamento da doença e nas atitudes necessárias a sua recuperação.
Diante das dificuldades de adesão ao tratamento, os profissionais lidam de modo diferenciado, deixando surgir o despreparo para abordar certos comportamentos próprios dessa etapa da vida. Alguns profissionais de saúde sentiam-se impotentes, coniventes com o agravamento de uma situação que poderia se prolongar por semanas, diante da recusa ou incapacidade da adolescente em alterar sua alimentação, rotina e ingestão de medicamentos. Outros profissionais, talvez por desespero ou aflição diante do que não conseguiam mudar, rompiam com a paciente justamente nesses momentos críticos. Na verdade, os pacientes “difíceis” de tratar impõem enormes desafios e impasses na relação profissional de saúde x usuário. Cabe refletir se esses entraves não se devem, em parte, pelas dificuldades do profissional de estabelecer vínculos ou mesmo pela inabilidade para lidar com pacientes adolescentes, tendo em vista que nem todos recebem formação específica para tal.
Também havia desencontros entre exigências da equipe e as condições sociais da adolescente e de sua família para cumpri-las. Uma das adolescentes acompanhadas nunca conseguia comparecer aos atendimentos dentro do horário previsto e rotineiramente chegava quando os profissionais de saúde estavam prestes a finalizá-los. Ela se atrasava, faltava muito, desaparecia do serviço, mas no meio do turbilhão de questões pessoais próprias da adolescência, sua família perdeu tudo que tinha, enfrentando sérias limitações financeiras. A equipe, no entanto, não considerava o esforço de seu pai e da própria adolescente em, na medida do possível, permanecer frequentando os atendimentos.
O comentário de um dos membros da equipe de saúde a respeito das “férias” das adolescentes, ou seja, do não comparecimento ao serviço, revela o quanto as idas e vindas no processo de tratamento são frequentes, esperadas e integram o cotidiano da atenção aos TA. Tais “desistências” e recuos são difíceis de serem compreendidos pela equipe, incumbida da missão de tornar possível a recuperação. A opinião de que as adolescentes “cansam” do tratamento é compartilhada por toda equipe e evidencia a complexidade do problema, o que também corrobora para a compreensão das recaídas e abandonos temporários do tratamento.
Havia casos em que a relação dos pais com o profissional de saúde era tão intensa que, em dado momento, se desgastava e a adolescente se via obrigada a trocar de profissional ou ficar um tempo sem aquele atendimento. Os conflitos familiares, sempre presentes às consultas, permeando a relação entre pais e filhos e entre famílias e equipe consomem emocionalmente os profissionais de saúde. Há que se ter muita habilidade para escutas diferenciadas em momentos distintos ou em conjunto, quando a consulta necessita da presença de ambos. Exigir serenidade, maturidade e equilíbrio emocional das famílias frente à gravidade do adoecimento das filhas também pode ser muito além do que elas podem dar. Tal equação torna o desafio de tratá-las mais penoso para quem está na linha de frente, preocupados com rotinas alimentares, ganho de peso, equilíbrio do organismo, sem poderem alterar as dinâmicas familiares que presenciam.
As usuárias desenvolviam relações diferenciadas com os profissionais da equipe. Como a rotina do atendimento impõe circular entre todos os profissionais (psicologia, clínica médica, nutrição, psiquiatria), acabavam por falar o que desejavam para um profissional e na consulta subsequente expressavam não desejar falar novamente o que já foi dito. Contavam para algum profissional que não estavam tomando a medicação, mas pediam segredo para o restante da equipe e para a família. Ou seja, elas selecionavam o que dizer, a quem dizer, em qual momento.
Algumas usuárias tentavam manipular os profissionais, utilizando-se da opinião de outros membros da equipe. Os próprios responsáveis assumiam que, muitas vezes, eram “enrolados” pelas filhas. A sinceridade dos responsáveis era premiada com a credibilidade da equipe, que passava a dar total apoio ao “responsável-vítima”, deixando a adolescente em segundo plano. Já a adolescente passava a ser vista com desconfiança, mesmo sem necessariamente ter feito algo para merecê-la, tornando o estabelecimento de um vínculo com a equipe ainda mais difícil. O poder de manipulação de indivíduos com TA é consensual entre os profissionais de saúde, embora as famílias por vezes condenem moralmente tal atitude. Cabe à equipe de saúde salientar que essa postura adolescente não é uma falha moral, de caráter, mas sim um dos sintomas do quadro dos TA32.
Por vezes, é difícil para os profissionais de saúde compreenderem os conflitos inerentes à adolescência, o que acaba por comprometer a relação entre ambos. Por estarem em busca de autonomia, aceitar o auxílio adulto pode ser entendido pelo adolescente como uma inabilidade para resolver seus problemas sozinhos. Ocorre também que os adultos muitas vezes identificam um problema na vida do adolescente que para este não necessariamente representa um incômodo. Ao contrário, as queixas dos adolescentes podem ser concebidas pelos adultos como secundárias, subjetivas, irrelevantes e fruto de uma “fase difícil” do ciclo de vida33.
Nos serviços de saúde, além do despreparo para atender adolescentes, há também o juízo de valor da equipe para com este grupo, considerado “mal-educado” e “permissivo” entre seus pares, aumentando as dificuldades de relacionamento e da criação de vínculos34. Independente de posicionamento pessoal ou inabilidade para escuta e respeito ao adolescente é preciso reforçar a necessidade de se manter uma postura ética enquanto profissional de saúde35.
Em campo, foi possível acompanhar casos de TA difíceis de serem tratados em que as tentativas de suicídio e os cortes/mutilações corporais eram frequentes. Por vezes, essas situações eram identificadas como formas de os adolescentes atraírem a atenção dos adultos, sendo banalizandas: “no fundo é pra chamar a atenção”. Tal compreensão revela o quão duro é para uma equipe que não foi necessariamente “treinada” para atender TA, e talvez não tenha desejo e/ou habilidade para trabalhar com a população adolescente, ter que fazê-lo. Por se tratar de um serviço público, os profissionais têm uma capacidade limitada para se recusar a atender esse ou aquele caso, ainda que não estejam seguros para fazê-lo.
O Manual de Atenção à Saúde do Adolescente36 da Secretaria de Saúde da cidade de São Paulo traz como tema as “Características do profissional e a relação médico-adolescente”, fornecendo as recomendações abaixo, que podem ser estendidas a todos os profissionais de saúde:
Atender adolescentes requer interesse, tempo e experiência profissional. Para obter uma consulta frutífera, é fundamental o bom relacionamento médico/adolescente, unicamente possível se o médico GOSTAR de trabalhar com jovens, pois estes têm uma sensibilidade apurada e logo percebem falta de interesse ou empatia. O profissional deve mostrar competência, firmeza e autoridade sem, no entanto, parecer autoritário. O médico deve escutar mais do que falar e não julgar ou dar palpite. Mas deve esclarecer e informar onde for necessário, sempre com retidão, honestidade e veracidade, o que é diferente de advertir. [...] O adolescente deve identificar-se como sendo ele o cliente, mas, por outro lado, pais e/ou responsáveis não poderão permanecer à margem do atendimento, pois poderão beneficiar-se com informações e esclarecimentos36.
Pela quantidade de “regras” e “detalhes” preconizados para o bom atendimento ao adolescente, não é incomum a insegurança dos membros de uma equipe de saúde em atendê-los. Nesse sentido, destaca-se a importância das definições dentro do serviço de saúde serem tomadas de modo coletivo pela equipe. Com as incertezas que envolvem questões morais, legais e éticas, a insegurança se intensifica se o profissional de saúde é obrigado a arcar sozinho com tais decisões35.
Diferentes documentos35-37voltados aos profissionais de saúde que atendem adolescentes apresentam a mesma recomendação: atividades em grupo, visando proporcionar um espaço de troca de vivências, onde o adolescente sinta-se seguro. Num grupo, cada participante torna-se menos frágil, menos solitário e suas ideias, dúvidas, sentimentos e experiências podem ser valorizados pelo outro36.
Além disso, as atividades em um programa para adolescentes devem apresentar um enfoque amplo, retirando o foco dos aspectos técnicos e biológicos, envolvendo também questões psicossociais, sociais, culturais, políticas, lembrando que o profissional de saúde deve sentir-se apto para lidar com esta complexidade de saberes38.
Aliado às dificuldades de alguns profissionais para lidar com aspectos peculiares do atendimento aos adolescentes, existe o enorme desafio de tratar e buscar a recuperação de uma pessoa acometida por TA. Os indivíduos com esse transtorno são descritos como resistentes às intervenções, o que contribui para um dos mais altos índices de recusa e desistência prematura do tratamento39.
Uma das razões para a resistência no tratamento é o fato de que muitas pessoas com AN negam estar doentes, pois consideram que buscam o emagrecimento por “conta própria”. Por outro lado, em determinado momento do adoecimento podem conseguir identificar as implicações negativas sobre a sua saúde, sobre sua vida e de pessoas próximas provocando sentimentos de perda de controle40.
Pacientes com AN raramente procuram tratamento por iniciativa própria, possuem pouca motivação para mudar e o resultado dos tratamentos geralmente fica abaixo do esperado pela equipe de saúde41. Além disso, é comum o paciente reconhecer no profissional de saúde um inimigo que quer engordá-lo42, o que nem sempre significa que eles não desejam ser tratados
O desafio a ser enfrentado pelos profissionais de saúde inclui reconhecer as diferenças entre adolescentes, sempre respeitando os significados que eles atribuem à sua doença. Para isso, precisam compreender que as experiências e as perspectivas de adolescentes sobre o adoecimento e o tratamento podem ser radicalmente distintas do ponto de vista que a equipe de saúde se sente confortável para atuar43.
Pelas dificuldades apresentadas, cabe pensar que todo relacionamento é uma “via de mão dupla”. O cotidiano da equipe de saúde do programa é de muita dedicação e esforço sem, no entanto, receberem um estímulo positivo sobre o seu trabalho. O paciente que se recupera de uma doença demonstra gratidão pela equipe que o atendeu, mas, no caso dos TA, a recuperação envolve que as adolescentes ganhem peso e isso acaba por desmotivá-las e as afastam ainda mais da equipe de saúde, que precisa estar constantemente estimulada, mesmo com realidade tão adversa.
A despeito do programa observado estar inserido em um serviço mais amplo de saúde do adolescente, nem sempre a forma como a assistência estava organizada se moldava as suas necessidades e aspirações. Quando indagadas na entrevista, a maioria das adolescentes avaliou bem o programa. Dentre os motivos destacados para a avaliação positiva do atendimento recebido, encontram-se o fato de tê-las ajudado a perceber que o que faziam era prejudicial para sua saúde e para as condições do atendimento, reunindo espaço físico, profissionais de saúde e exames disponíveis. A única adolescente que afirmou achar “chato” ter que ir aos atendimentos atribuiu sua opinião ao fato de ter que “ficar conversando”. Na verdade, sua queixa residia em, na mesma manhã, precisar repetir quase as mesmas coisas por três ou quatro vezes em cada um dos atendimentos que recebia, o que tornava esse fluxo exaustivo. Assim, além de repetitivo, as consultas se tornam desmotivantes.
O questionamento médico Você não consegue pensar em um modo mais adulto de resolver isso?! é ilustrativo de como é difícil ser adolescente. Por um lado, elas estão no serviço de saúde, levadas pelos familiares e muitas vezes atendidas na presença deles, completamente tuteladas, sem voz, sendo a todo o tempo delas exigido a submissão e a obediência às regras da instituição. De outro, querem que elas se comportem como adultas, que encarem os problemas típicos dessa etapa da vida como adultas, sendo que comumente ainda são tratadas como crianças.
A indagação acima surgiu quando uma adolescente chegou para atendimento com ferimentos advindos dos cortes que provocou em seu corpo. É preciso muita sensibilidade para lidar com esses casos e, muitas vezes, a família não está preparada, não é algo simples de se compreender e enfrentar. Os familiares ficam perdidos e não encontram esse amparo no programa, posto que não há uma atividade prevista para acolher os pais e orientá-los a respeito.
Ao pedir que qualificassem o “bom atendimento” recebido, as adolescentes destacaram a quantidade de informação fornecida, demonstrando que valorizam o profissional de saúde bem capacitado, ou o simples fato deste ter se preocupado, tentado ajudar, feito alguma coisa. Poder expressar o que sentem é por elas valorizado: Aqui! Aqui é muito legal... Ah... porque aqui eles conversam... eles se preocupam com o que a gente pensa... com o que a gente está sentindo... Ter autonomia para falar o que se deseja em um atendimento voltado para adolescentes (e não para os adultos!) era algo que as surpreendia positivamente, quando na realidade deveria ser a norma.
Além das perguntas repetitivas, elas também avaliaram como prejudicial no atendimento recebido o fato do profissional de saúde ficar constantemente condenando as atitudes adolescentes e não as “escutar direito”, ao não dar voz aos pacientes e não basear seu atendimento naquilo que está sendo por elas relatado. Mais de uma adolescente sinalizou que receber “muita pressão” tem sido a pior coisa para o tratamento. Natasha, 16 anos, explica de forma clara como avalia tal situação:
(respira fundo) eu acho que quando você começa a querer obrigar “você tem!”, é ruim! Pressionar... Porque a gente já sente uma pressão da gente, porque a gente sabe que é ruim! [...] então, tem uma pressão das pessoas, da sociedade e a gente ser pressionado pra melhorar uma coisa que a gente não controla, já é mais difícil. É muita pressão!
Ao solicitar aos adolescentes entrevistados dicas para organização de um programa para atendimento aos TA foi quase unânime a sugestão de realização de atividades em grupo/conjuntas entre os pacientes, que promovam a sociabilidade entre adolescentes que sofrem de TA.
Eu acho legal quando você coloca pessoas que já passaram por isso... Porque eu lembro na minha primeira consulta [...] você já tá com medo, aí você vê uma pessoa que melhorou! Já é uma esperança sabe? Você vê que não é só você que sofre com aquilo... (Natasha, 16 anos)
Seria legal ter umas meninas que já passaram por isso e se curaram, estão bem, seguindo com a vida, sem se preocupar com a aparência. [...] Pra gente ver que é possível! (Silvia, 16 anos)
Eu vi uma garota aqui uma vez, aquela garota parecia uma caveira de verdade! Assim, eu tenho um problema, mas talvez eu ajude ela... (Ester, 13 anos)
Acho que o que funcionaria era não fazerem do tratamento uma forma de punição [...] se elas vieram pra cá e for uma série de perguntas, uma coisa séria, um ambiente hostil, não vai funcionar! (Yasmin, 17 anos)
Ao refletir sobre algumas recomendações para melhorar a assistência à saúde prestada aos adolescentes com TA, os grupos de apoio seriam uma estratégia certamente bem-vinda, tanto pelos familiares que verbalizavam o quanto estavam perdidos, quanto pelas adolescentes que buscavam compartilhar sua experiência de adoecimento com outras passando pela mesma situação. No entanto, cabe destacar que o desejo de participar de atividades conjuntas não foi unânime, assim, além de serem consultadas sobre a participação nestas atividades grupais, elas não podem ser implementadas de modo padronizado, posto que há uma diversidade imensa nas maneiras de se vivenciar a adolescência.
A proposta de uma atividade mais estimulante que promova a integração em uma fase da vida onde o desenvolvimento das relações de sociabilidade é central e o que almejam. Um programa que se volte a esse público não pode minimizar a criação de vínculos entre suas usuárias e entre seus pais27,44, como forma de propiciar redes de ajuda mútua, grupos de apoio terapêutico para assim estimularem e atraírem o interesse das adolescentes em seguir com os atendimentos.
Buscando reunir algumas propostas dos adolescentes entrevistados, seria interessante integrar novos objetivos ao tratamento, aliados à promoção da sociabilidade entre eles, retirar o foco da recuperação do peso corporal, das calorias, das gorduras e atribuir importância ao que eles destacam como necessário: construção de uma boa relação terapêutica, atenção aos seus aspectos emocional e psicossocial, transferência gradual da atenção para outras atividades da vida cotidiana, ligadas aos estudos, diversão, lazer... Eles reivindicam cada vez mais responsabilidades que os possibilitem exercitar diferentes níveis de autonomia. Seria importante que o serviço de saúde buscasse um equilíbrio entre as dificuldades e os pontos fortes de cada adolescente, além de se preocupar com os abandonos intermitentes, fazendo com que elas verdadeiramente saibam que a recuperação é importante para a equipe de saúde45.
Outra proposta possível à resolução da queixa expressa pelos adolescentes sobre a necessidade de repetir as mesmas informações em três ou quatro consultas consecutivas, numa mesma manhã, seria o atendimento coletivo por parte da equipe de saúde. Assim, um ambiente acolhedor poderia ser criado para que adolescentes se sentissem estimulados a falar e pudessem ser ouvidos pela equipe como um todo, evitando o seu desgaste e de seus familiares.
Levando-se em consideração a realidade nacional de atenção aos TA, os aspectos levantados nesta investigação podem inspirar novas propostas que contemplem a capacitação/qualificação dos profissionais de saúde para fornecer o cuidado adequado a adolescentes; remuneração financeira adequada da equipe de saúde, comumente formada por profissionais que atuam voluntariamente, motivados por interesse em ensino e pesquisa nessa área de conhecimento, o que incrementa as dificuldades em se estruturar uma equipe interdisciplinar estável e competente11.
Grande parte dos serviços de saúde destinados aos TA está alocada em universidades públicas, cuja distribuição orçamentária muita vezes inviabiliza a contratação de profissionais especializados apenas para atuarem nesses espaços. Às dificuldades de se manter os serviços disponíveis e de criar novos centros para tratamento, soma-se a inexistência de qualquer diretriz ou política pública voltada para a assistência aos TA11, bem como qualquer esforço por parte do Estado para se determinar a prevalência destes transtornos no país46.
Destaca-se a relevância de inserir os TA na agenda de discussões sobre a atenção à saúde adolescente e a definição de um plano de atuação futuro, contemplando o investimento em formação de pessoal especializado. Torna-se necessária a ampliação do debate no país, posto que este permanece incipiente, sobre a definição de políticas públicas de saúde que tenham como foco a garantia de acesso dos portadores de TA a um serviço de saúde voltado às suas necessidades, com estrutura física adequada e profissionais de saúde capacitados.
Temos que valorizar o trabalho que vem sendo realizado, com todas as dificuldades apontadas, que são correntes em outros serviços públicos de saúde, e marcas características do contexto nacional de cuidados aos TA. Mas é preciso fazer muito mais. Desde a busca pelo espaço para a pesquisa, a realidade de atenção aos TA se revelou dramática. A reconstrução do itinerário terapêutico destes adolescentes foi uma tarefa impossível de se cumprir, tendo em vista a escassez e pulverização de iniciativas que não dialogam entre si. A alternativa de uma pesquisa etnográfica foi especialmente fecunda para dar visibilidade a tal problemática e atribuir centralidade àqueles adolescentes que muitas vezes não são ouvidos, permanecendo mudos mesmo tendo muito a dizer.