versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.35 no.8 Rio de Janeiro 2019 Epub 12-Ago-2019
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00139319
Em Editorial publicado em 2013 1 (p. 2141), afirmávamos que “...na ciência não podemos nos contentar com caminhos já trilhados”. Sim, como pesquisadores do campo da saúde coletiva nos cabe buscar, por meio da ciência, caminhos para enfrentar os grandes desafios colocados para a saúde das populações. Precisamos aprofundar, por exemplo, o debate voltado para o avanço de uma ciência de “consequência” 2, seja no campo da epidemiologia, das ciências humanas, da política de saúde. Não basta identificar mecanismos causais, compreender os limites da assistência prestada pelo Sistema Único de Saúde (SUS), reconhecer a importância da fala das pessoas no diagnóstico dos problemas e acesso aos serviços de saúde. Tudo isso é extremamente importante, mas precisamos avançar no sentido de apontar caminhos que enfrentem a complexidade dos problemas estudados.
Complexo não é complicado. Um problema complexo, a nosso ver, é aquele cuja conformação envolve múltiplos relacionamentos e laços de feedback que equilibram e garantem a estabilidade dinâmica do sistema. A pergunta aqui não é a causa da crescente prevalência de obesidade no mundo, como consequência das forças da indústria de alimentos, do agronegócio, dos desertos alimentares, mas como enfrentá-la 3. Todos nós gostaríamos que o Guia Alimentar para a População Brasileira4 tivesse um grande impacto na redução da prevalência da obesidade. E se isso não acontece é exatamente pela estabilidade de um sistema complexo.
Como abordar problemas que não apresentam uma cadeia causal linear, na qual A causa B que tem como desfecho C? Até mesmo a ideia de “desfecho” limita, nesse caso, a compreensão. O problema exige que se considere o conjunto, os diferentes atores e pontos de vista. E para enfrentá-lo, a simplificação é necessária, sempre de forma coerente, sem perder a visão do todo, trazendo à tona, de forma explícita, os pressupostos e modelos mentais, criando uma visão compartilhada 5. O único critério que permite reunir pontos de vista tão diferentes e multidisciplinares, da economia à ciência da nutrição, da epidemiologia à gestão do SUS, da política à qualidade do alimento disponível nas comunidades carentes, é a ação, a perspectiva de uma intervenção coordenada sobre o problema identificado.
Nesse caminho, diferentes métodos coexistem (e mesmo se contradizem). Alguns qualitativos, qualificados como abordagens de “soft system approach”, outros mais quantitativos 5. O que talvez seja comum a todos é a necessidade de sair da zona de conforto, de simplificar sim, mas de forma a garantir que a visão do todo não se perca. Precisamos, como pesquisadores do campo da saúde coletiva, mudar nosso modelo mental, mantendo uma atitude de aprendizado permanente 6.
São inúmeras as situações-problema do campo da saúde coletiva. É frequente, que frente a um problema (e por isto se justifica a denominação de situação-problema) imediatamente venha a ideia de que “bastaria” uma medida relativamente simples. Bastaria controlar a população de vetores, embora “there’s no evidence that any recent vector-control interventions, including massive spraying of insecticides, have had any significant effect on...” 7 (p. 1802). Ou, uma vez que os medicamentos adequadamente indicados sejam prescritos, seria possível controlar a hipertensão. Para isso “bastaria” que os hipertensos seguissem corretamente a receita, o que nem mesmo entre pessoas esclarecidas, com nível superior completo, se verifica 8. E por que caem as coberturas vacinais, estratégia tão bem-sucedida no controle de inúmeras doenças? Vítimas do próprio sucesso? 9.
No atual contexto de retrocesso das políticas sociais, no qual se constrói deliberadamente a rejeição à ciência 10, é indispensável adotar formas de abordar os desafios da saúde coletiva que contribuam para a ação multidisciplinar, juntando pesquisadores, gestores e população, integrando cultura, saberes e ciência. CSP espera que a comunidade da saúde coletiva responda a esse desafio.