versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.108 no.5 São Paulo maio 2017
https://doi.org/10.5935/abc.20170061
A introdução de terapêuticas já padronizadas para o tratamento das principais doenças cardiovasculares, como por exemplo, a insuficiência cardíaca e o infarto do miocárdio, reduziram a mortalidade de maneira significativa. No entanto, as doenças cardiovasculares ainda constituem uma das principais causas de morbimortalidade em todo o mundo. Em consequência, grande número de estudos experimentais são publicados a respeito do tema. Esses estudos investigam, além dos mecanismos envolvidos na gênese da doença cardiovascular, os potenciais alvos terapêuticos, assim como intervenções que se mostrem benéficas para reduzir o tamanho da lesão isquêmica e a progressão da disfunção cardíaca e, consequentemente, diminuam a mortalidade.
Em algumas situações, os resultados de pesquisas pré-clínicas são reproduzíveis em estudos clínicos. Como exemplo, poderíamos citar a influência da obesidade no processo de remodelação cardíaca. Aceita-se que o processo de remodelação desempenhe papel crítico no aparecimento e na progressão da disfunção cardíaca secundária a diferentes estímulos.1 Estudos experimentais mostraram que a obesidade induz remodelação ventricular,2 dado que foi confirmado em estudos clínicos.3,4
No entanto, de modo não raro, o sucesso dos tratamentos experimentais estudados não se reproduz quando aplicados aos estudos clínicos. Nesse sentido, a análise de alguns trabalhos publicados recentemente nos Arquivos Brasileiros de Cardiologia, na área de pesquisa básica/experimental exemplifica esse fenômeno.
Um dos temas de maior interesse, atualmente, em cardiologia, refere-se às estratégias para atenuar a lesão induzida pela isquemia/reperfusão (IR). Assim, no modelo de rato, o hipotireoidismo, associado a níveis diminuídos do óxido nítrico, protegeu o coração da lesão de IR. Do mesmo modo, o exercício físico,6 a administração de tramadol7 e o consumo de nitrato8 foram efetivos em diminuir a lesão induzida por IR no modelo com ratos. Esses e outros resultados positivos de estudos experimentais são ofuscados pelo fato de, até o momento, as estratégias de cardioproteção em estudos clínicos terem apresentado resultados negativos.9
Os motivos para essa frustrante inconsistência entre os estudos experimentais e clínicos são muitos e refletem toda a complexidade da pesquisa translacional.
A primeira dificuldade que pode ser apontada é em relação aos animais utilizados nos estudos experimentais. Podemos observar que grande parte das pesquisas utiliza pequenos animais, geralmente roedores, como alvo da intervenção. É sabido que a fisiologia do sistema cardiovascular de pequenos roedores não é necessariamente igual a de humanos. A elevada frequência cardíaca e as diferenças de fluxos iônicos celulares, incluindo o do trânsito do cálcio, não permitem a extrapolação dos resultados desses estudos para humanos. Adicionalmente, pequenos roedores utilizados nos laboratórios são geneticamente muito homogêneos e, em algumas situações, são virtualmente iguais.10 Apesar do modelo experimental com grandes animais ser mais semelhante ao humano e os grandes animais serem geneticamente mais heterogêneos, a pesquisa envolvendo modelos com animais maiores é muito mais difícil de ser conduzida.
Outro ponto a ser destacado é que a maioria dos estudos experimentais utiliza animais jovens e saudáveis, o que difere de maneira significativa da realidade dos pacientes incluídos nos estudos clínicos. Não é raro os pacientes com doença cardiovascular apresentarem mais de uma comorbidade. Mesmo quando são inseridas comorbidades nos modelos experimentais, essas não são tratadas, como acontece com os pacientes.11 O tratamento dessas comorbidades envolve a utilização de várias medicações, como inibidores da enzima conversora da angiotensina e betabloqueadores, que também exercem efeito cardioprotetor. Consequentemente, algumas vias hormonais moduladoras de processos patológicos podem já estar bloqueadas, mesmo que parcialmente, por essas medicações. Desse modo, a inserção de mais um fator cardioprotetor nos estudos clínicos pode levar a melhorias muito sutis nos desfechos, que acabam não sendo estatisticamente significantes. Além disso, a cardioproteção envolve a ativação de mecanismos multifatoriais e a presença de comorbidades e medicações pode modificar o painel individual de expressão gênica dos pacientes.12
Devemos considerar, também, que o modelo experimental mais comum para estudar as consequências fisiopatológicas do infarto do miocárdio é a ligadura externa da artéria descendente anterior, enquanto que em humanos, a oclusão coronariana é resultado de longo processo inflamatório. Deste modo, as vias de sinalização ativadas podem ser completamente dispares. Mesmo quando são utilizados modelos de camundongos knockout para ApoE na indução de aterosclerose, esta acontece de maneira artificial e não reproduz a realidade do que acontece no humano.13 Adicionalmente, o metabolismo de lipídeos nos camundongos é diferente, sendo que em camundongos há predomínio da lipoproteína HDL, enquanto que em humanos há predomínio de LDL e VLDL.13
Ainda em relação às dificuldades de reproduzir os resultados experimentais em estudos clínicos no infarto do miocárdio, em humanos um dos pilares do tratamento é a instituição da reperfusão o mais rapidamente possível. Essa medida por si só já apresenta grande sucesso em diminuir tamanho do infarto e mortalidade, sendo que o efeito benéfico de qualquer intervenção adicional pode ser minimizado nos estudos clínicos.14
Outra limitação da pesquisa translacional é a transposição das doses utilizadas em animais para humanos, bem como do tempo de início e duração do tratamento. A droga ou substância deve atingir concentração adequada no tecido alvo, ao mesmo tempo em que não pode ser excessiva, por conta dos riscos dos efeitos colaterais. Como consequência, algumas vezes podem ser utilizadas doses sub-terapêuticas nos estudos clínicos. Um exemplo disso é o estudo PREMIER, que avaliou o efeito do inibidor seletivo de metaloproteinases de matriz PG 116800 em pacientes após o infarto do miocárdio. Nesse estudo, devido ao risco de surgimento de síndrome musculoesquelética, um dos efeitos colaterais da administração de inibidores de metaloproteinases de matriz, foi utilizada dose inferior à que se mostrou efetiva nos estudos pré-clínicos em porcos. Assim, apesar de ser terapêutica promissora, esse estudo não mostrou qualquer efeito do PG 116800 nos desfechos clínicos.15
Pelo exposto, apesar das contribuições da pesquisa experimental na área da cardiologia serem inquestionáveis, permanece o desafio para a maior transposição, no mínimo de tempo possível, dos resultados obtidos na bancada para a prática clínica.